Crónicas da Infâmia
3 - Da inocência à violência
Vi, enlevada , um daqueles registos videográficos que circula pela internet e que nos reenviam indefinidamente.
É um registo surpreendente. Ferido de uma simplicidade crua e autêntica.
Uma criança trôpega e insegura, ensaiando os primeiros passos, sai de casa e descobre o paraíso.
Chove. E , tal como a criança, a chuva cai trémula, incipiente. Gota a gota, escorre-se num gotejar lento e espaçado. É, então, o tempo da descoberta.
A chuva, o novo mundo, que se abre aos olhos de uma criança. E ela ri e sorri num brilho tão intenso que nunca haverá olhar algum que não o vislumbre.
As gotas caem e rolam-lhe pelo rosto. A criança exulta entre a infinda alegria e o puro deslumbramento. Agarrá-las , prendê-las, senti-las dão ao momento a fantástica dimensão da inocência. O encanto com as pequenas descobertas da pródiga natureza, o enamoramento primevo, inicial.
Todos nós, em tempo remoto, tivemos momentos de extraordinárias descobertas. Enchem a memória dos dias felizes. Se o mundo se aquietasse perante a beleza do universo em que gravita, talvez estes dias de ira se extinguissem .
A barbárie saiu à rua. Anda à solta.
As imagens que nos chegam, diariamente, são assustadoras. Um mundo revolto em violência.
Violência fermentada pela insanidade do Homem.
Horror, incúria, xenofobia, fanatismo/extremismo religioso, totalitarismo, delinquência, exploração, opressão, prepotência, “ coisificação” do ser humano são algumas das formas de violência que se gladiam em terreno de pungente opróbrio.
Chocantes, sucedem-se episódios brutais, reais, de uma crueldade inenarrável mas devastadora.
Morre-se aqui, ali, acolá, lá longe , por todo o mundo.
Mata-se sem quê, sem por quê e menos ainda para quê?
Imparáveis, os números avançam na ausência de dígitos precisos, mas , Deus meu, com gente. Muita. Rostos que emergem no sangue que se esvai e que se mostra às objectivas de quem os regista.
É na Ucrânia: Jovens que se manifestam.
É na Ucrânia: Homens que se confrontam.
É na Ucrânia que se enfrentam, se esgrimem e se abatem.
É na Ucrânia : O(s) poder(es) a clamar o Poder.
Para Weber , o poder está fatalmente ligado à violência, postulado que Hannah Arendt recusa. O poder, para Arendt, assenta na consensualidade de uma acção solidária e nunca instrumental onde a verdade é a pedra angular: “ a persuasão e a violência podem destruir a verdade , mas não substitui-la. A verdade é determinante para o entendimento do poder . O poder repousa sobre a reunião de homens iguais que partilham a Liberdade que é o verdadeiro” conteúdo e sentido original da coisa política”. Quando o poder se esvazia desse conteúdo transforma-se em violência.
Mas ei-la pelo Mundo. Os homens iguais chamaram todos os abutres.
Na Nigéria, lançaram fogo a um indefeso colégio, na noite em que os estudantes internos dormiam. Jovens , confusos e inexperientes sucumbiram numa carnificina inconfessável que homens iguais permitiram.
Na China, esfaquearam, mutilaram e assassinaram quem nem o nada tinha de temer. Eram , apenas, homens iguais que esperavam um comboio, numa recôndita estação ferroviária.
Na Venezuela, país onde os mortos reinam, perseguem-se , picam-se e debicam-se os pobres e os ricos desiludidos pela fome , pela escassez. País onde o poder grassa sem regra , sem jaez. País, onde a opressão paira e os homens iguais a repudiam.
Na Tailândia, as ruas enchem-se de gente, de crianças que não resistem às balas de quem as dispara. .
Morre-se porque não há lugar para os homens iguais.
No Brasil, a pobreza organiza-se em Passeatas que , em cada esquina, se descobre num confronto desigual.
Tomba um, tombam dois e tombam dezenas sem que o poder dos homens iguais o entenda.
Na Síria, tudo é permitido. Guetos que são as ruínas de escombros de tanta gente perecida. Trincheiras onde as crianças deambulam, enquanto os silvos da guerra ensandecem os homens que nunca serão iguais.
E por cá, sim, por Portugal, onde jazem “o conteúdo e o sentido “ da autêntica res publica?
No pacote das medidas incessantemente extraordinárias?
Na estreita largueza das mentes iluminadas?
Nos esvaídos arremessos que se lançam e se cruzam no Parlamento de tantos homens iguais?
Nas iníquas e continuadas propostas que se pensam e se elaboram na subtileza do vil disfarce que vincula e gera a violência da miséria?
E se a infâmia anda por aqui, urge expurgá-la para que a violência não se acomode.
Expurguemo-la . Todos, em uníssono, no gesto que define os homens verdadeiramente iguais.
Praia da Rocha, 6 de Março de 2014
Praia da Rocha, 6 de Março de 2014
Maria José Vieira de Sousa
realismo
ResponderEliminargosto muito, muito bom
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