sábado, 7 de maio de 2011

O centenário de José Maria Arguedas


JOSÉ MARÍA ARGUEDAS:  conhece este  escritor?
                                                                                Por Manoel de Andrade*
No entardecer do dia 28 de novembro de 1969, um sábado, eu aguardava um amigo costarriquense no Café Goyesca, na Praça San Martin, centro de Lima. Era Francisco Rojas, estudante de arquitetura que eu conhecera em março daquele ano, em Assunção. Ele chegou com uma frase nos lábios:

-- Arguedas se dió un balazo y agoniza.

Há cerca de um mês eu lera, em Cusco, seu livro Os Rios Profundos e, por meu crescente interesse pelo indigenismo, o poeta Luís Nieto, aconselhou-me a procurá-lo na Universidade Nacional Agrária de La Molina, em Lima, onde Arguedas era professor. Eu chegara à capital peruana acerca de duas semanas, mas, envolvido numa intensa atividade cultural, aguardava alguns contatos feitos naqueles dias, a fim de encontrar os caminhos para entrevistá-lo. A notícia me deixou perplexo, estupefato e olhando fixamente nos olhos de meu amigo eu, repentinamente, me lembrei da minha chegada a La Paz e da morte, alguns dias depois, do guerrilheiro Inti Peredo a quem eu também fizera os trâmites para encontrar. Arguedas já tentara o suicídio, em 1966, decepcionado culturalmente com a política indigenista do Peru, e agora, diante de um espelho, no banheiro da própria Universidade onde lecionava, dera um tiro na cabeça. Deixou para fazer isso num sábado, como confessou em carta, para evitar que os alunos fossem prejudicados. Sempre me perguntei o que leva um escritor ao suicídio, por tratar-se justamente de alguém com um profundo significado da vida, com um mágico compromisso consigo mesmo, com seu tempo e com a humanidade. Havia tantos casos, e alguns muitos tristes, na literatura. Casos que me tocavam mais de perto como o do nosso poeta Pedro Nava, também com um tiro na cabeça, em maio de 1984, no Rio de Janeiro. O “poético” suicídio da grande poetisa argentina, Afonsina Storne, que entrou caminhando pelo mar adentro e desapareceu nas ondas. Os casos mais célebres, de Maiakovski e Hemingway e o mais emocionalmente triste, da cantora Violeta Parra. Quais os motivos de um desfecho tão lamentável para quem tem tanta beleza para dar ao mundo? O sociólogo francês Émile Durkhein fala de causas sociais, provenientes de sociedades carentes de integração, como sempre foi, etnicamente, a sociedade peruana onde viveu e sofreu, culturalmente, o escritor e etnólogo José María Arguedas, visceralmente identificado com a causa indígena.
Eu respirava ainda na atmosfera cultural d’ Os Rios Profundos, em cujas páginas mergulhara nos conflitos de um universo heterogêneo de duas culturas assimiladas pelo jovem Ernesto, o personagem autobiográfico do seu famoso romance. Foi a obra que me abriu a primeira janela para olhar a paisagem literária do indigenismo através da transculturação, pela qual a oralidade dos povos indígenas da América, aplastada pela colonização espanhola, é resgatada pela palavra escrita da literatura indigenista -- no exemplo pioneiro de Miguel Angel Astúrias, traduzindo do quiché, em 1926, o Popol Vuh, livro sagrado dos maias, seguido por Arguedas e posteriormente por Roa Bastos, com o guarani. Em Os Rios Profundos esse processo transparece em cada página, numa luta cultural antropofágica, explicitada numa prosa traduzida com poesia e lirismo e onde o quéchua e o castelhano mesclam-se recriando trechos de canções de amor à vida e à natureza.
No dia seguinte, domingo, todos os jornais traziam, em manchete, o gesto trágico do grande narrador peruano do século XX. O fato enlutou o país e deixou consternado os meios intelectuais, ideólogos e militantes de esquerda e, sobretudo, muitas lideranças agrárias e indígenas com as quais Arguedas tinha contato, defendendo e buscando sua identidade perdida, lutando pela pureza da sua cultura e pela redenção de suas degradantes condições econômicas e sociais. Este foi, na verdade, o dramático enredo biográfico do escritor, como Ernesto, no romance Os Rios Profundos.
No mês em que Arguedas se suicidou, novembro de 1969, o guerrilheiro Hugo Blanco, preso desde 1963, escreve-lhe duas cartas. A primeira no dia 14 e a segunda dia 25, quatro dias antes do tiro que o levou à morte. Foram originalmente escritas em quéchua e retratam a intimidade de ambos com a cosmogonia indígena, expressando, numa linguagem quase sempre poética, a singela grandeza e a cruciante miséria do mundo andino. Mesmo nas vésperas de sua morte, Arguedas não demonstra nenhuma amargura pessoal ao responder ao amigo. Assumindo seu invejável engajamento político como escritor, denuncia, exalta a luta social e política e respira com o ar puro da esperança. Quanto ao guerrilheiro, com sua “pena de morte” comutada para “25 anos de reclusão” não cede um milímetro nas suas convicções, contando a Arguedas as glórias e os calvários de sua “via sacra” revolucionária, do significado de sua luta inabalável pelo movimento indígena e de sua crença no advento de um mundo novo. As duas cartas de Hugo Blanco e a resposta de Arguedas estão entre os mais belos documentos indigenistas que tenho lido
Naquele fins de 1969 o nome de Arguedas e de Hugo Blanco eram lembrados nos encontros com gente de esquerda com quem eu conversava em Lima. Traduzidas do quéchua as três cartas foram publicadas e eram lidas e comentadas, sobretudo por intelectuais comprometidos com o indigenismo. Não somente se lamentava a morte do escritor, mas se rememorava a saga do famoso guerrilheiro peruano, então cumprindo a pena de 25 anos na ilha de “El Frontón”, onde chegou em 1966 transferido da prisão de Arequipa. Arguedas, como romancista, poeta, antropólogo e professor já era um escritor reconhecido nacionalmente, com muitos prêmios, altos cargos universitários e distinções acadêmicas.
Ele já era a mais honrosa imagem intelectual do indigenismo -- ao lado de Manuel Scorza e Ciro Alegría -- e neste sentido uma referência nas reuniões literárias daqueles dias que sucederam seu suicídio. Toda a obra de Arguedas e sobretudo Todas las sangres – que motivou a primeira carta de Hugo ao autor -- é um exemplo de compromisso com a história do povo indígena, seja como receptor secular de inomináveis injustiças e de vítima encurralada pelos longos conflitos agrários entre o “feudalismo” colonial e o capitalismo, seja pela desconstrução de sua identidade nacional discutindo o destacado papel do índio nas transformações da sociedade peruana, cuja causa Arguedas sempre defendeu alimentando como escritor o sonho de uma comunidade indígena modernizada e integrada na sociedade peruana.
José Maria Arguedas Altamirano nasceu em 18 de janeiro de 1911 em Andahuaylas e não creio que o centenário de nascimento de um escritor latinoamericano tenha sido comemorado com tanto respeito e reconhecimento. Infelizmente seu nome é pouco conhecido no Brasil ainda que Os rios profundos já tenha sido publicado aqui pela Paz e Terra em 1977 e  pela Cia das Letras em 2005. Sua obra tem sido analisada apenas no meio acadêmico entre alunos e professores de literatura hispanoamericana e língua espanhola.
Em meio a este estranho distanciamento o Instituto Cervantes de São Paulo está promovendo, de 11 a 14 de maio, o evento José María Arguedas, en su centenario: indigenismo, vida y literatura”. Integrando os debates estará o narrador, poeta e ensaísta peruano Enrique Rosas Paravacino, com quem me congratulo pela excelência e precisão com que vem traçando, em conferências dadas este ano em todo o Peru, o justo perfil de Arguedas: “cuya estatura intelectual, moral y estética se halla al nivel de los más insignes exponentes de la cultura latinoamericana del siglo XX”. A essa merecida imagem eu acrescento a do abnegado militante pela causa indígena, dedicando-lhe a sua imensa alma de poeta, explícita no lirismo de sua carta a Hugo Blanco, bem como de seu incansável trabalho como antropólogo, numa luta obstinada para preservar a cultura dos seus antepassados incas e que, num gesto triste, sangrou tragicamente o seu destino, indignado pelo desprezo com que se tratava a cultura quéchua.
Quantas homenagens está fazendo o Peru a um de seus filhos mais ilustres mas também tão incompreendido nos últimos anos de sua vida! Por certo não foi o gatilho que ele acionou em novembro de 1969 que o matou. Arguedas “foi morto” lentamente pela indiferença ou pela inveja de alguns “grandes intelectuais” peruanos que não quiseram enxergar a sua genialidade. Sua mais importante novela Todas las sangres, de 1964, que tanto sensibilizou Hugo Blanco, é um vigoroso enredo indigenista que traça o perfil moral e cultural do homem andino ante os conflitantes interesses trazidos pelo progresso e pela voracidade e crueldade da ambição. Contudo foi tratada com desprezo pelos “sábios” do Instituto de Estúdios Peruanos e rejeitada como texto de estudos sociológicos, em 1965. O reconhecimento posterior da grandeza cultural dessa obra provou que eles estavam errados, contudo o justo ressentimento de Arguedas, declinado em sua carta de despedida, foi por certo o primeiro tiro que atingiu seu coração:
"Creio que hoje minha vida deixou, completamente, de ter razão de ser. Destroçado meu lar pela influência lenta e progressiva da incompatibilidade entre minha esposa e eu: convencido da inutilidade ou impraticabilidade de formar um novo lar com uma jovem a quem peço perdão; quase demonstrado por dois sábios sociólogos e um economista, também hoje, que o meu livro "Todas las sangres” é negativo para o país, não tenho mais nada para fazer neste mundo.
Creio que minhas forças declinam irremediavelmente.
Peço perdão aos que me estimaram por tudo de incorreto que tenha feito contra alguém, ainda que não me lembre nada disso. Tentei viver para servir aos outros. Eu vou ou irei para a terra em que nasci e procurarei morrer ali de imediato. Que me cantem em quíchua de vez em quando, onde quer que seja enterrado em Andahuaylas, e ainda que os sociólogos encarem como piada esse apelo -- e com razão -- acredito que o canto me chegará não sei onde nem como.
Sinto algum terror ao mesmo tempo que uma grande esperança. Os poderes que dirigem aos países monstros, especialmente aos Estados Unidos, que, por sua vez, dispõem o destino dos países pequenos e de todas as pessoas, serão transformados. Talvez haja para o homem em algum tempo a felicidade. A dor existirá para que seja possível reconhecer a felicidade, vivida e transformada em fonte de infinito e triunfante alento.
Perdão e adeus. Que Célia e Sybila me perdoem.
José María Arguedas.
(O quíchua será imortal(...). E isso não se mastiga, só se fala e se escuta.)
* Poeta brasileiro

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