Por Baptista Bastos
No Museu do Neorealismo, em Vila Franca de Xira, foi inaugurada, no último sábado, uma exposição, que estará aberta até 26 de Setembro, sobre a vida e a obra de António Borges Coelho. Este homem modesto e discreto, investigador incansável e de uma probidade exemplar, é um dos dois ou três maiores historiadores portugueses contemporâneos. Como se escreve no texto que antecede o livro da exposição, ele navegou sempre no outro lado do rio, onde estão aqueles que, "em baixo fazem andar a História." Uma obra monumental, de características únicas, acrescentada, agora, com o fascinante "Donde Viemos", primeiro volume da História de Portugal, a que Borges Coelho, com 82 anos, meteu ombros.
Prisões nas masmorras do fascismo, perseguições de todo o jaez e estilo, dificuldades inúmeras, obstáculos inauditos jamais tiraram do belo rosto deste português maior o sorriso infantil, nem lhe toldaram a capacidade de recomeçar. "Não guardo ressentimento de coisa alguma", disse, na sessão de abertura, acrescentando a sua inabalável convicção nas infinitas possibilidades do homem. É muito difícil ouvir-lhe lamúrias, queixumes ou manifestações, por breves que fossem, de rancores. Ele dá sempre a volta às coisas negras e expõe logo a certeza de que a História é como "procurar a luz para ver as sombras."
Não há maniqueísmo no trabalho majestoso de António Borges Coelho; mas há, isso sim, a procura da grandeza do homem, mesmo quando o homem se deixa envolver pelas sombras. Os livros que tem publicado são a demonstração dessa busca soberana entre as demais: o que nos fez, o que atraiu, o que nos galvanizou e o que nos esmoreceu. Sem jamais se deixar hipnotizar pelo que escreve (e como escreve, este prosador sem par!), ele não passa pela História como um espelho pelo caminho. Desvenda o porquê das coisas, as causas e os despojos. Escreve a olhar para trás, para andar sempre para a frente. Borges Coelho ensina-nos, com a simplicidade, a decência e o escrúpulo, que é na tentativa de escrever que reside a coragem de escrever, e que, em História, não se acredita nem deixa de se acreditar: em História, ou se a conhece, ou não.
A exposição no Museu do Neorealismo é um esforço assinalável pela honestidade do propósito e pela justiça do alcance. António Borges Coelho tem pago, pela inteireza de carácter e de convicções, o preço de deliberados "esquecimentos" e de omissões propositadas. Os seus pares, os seus amigos, numerosos, variados, exactos e inamovíveis, assistem à mediatização de medíocres, premiados e incensados por uma Televisão ignorante, por um jornalismo sem alma e sem critérios de valor e por estratégias políticas desprovidas de elevação. Com o encantador sorriso de garoto que ilumina a sua face e nos ilumina a nós, seus parceiros e companheiros de vida e de batalhas, ele passa de lado e vai à vida: horas e horas de trabalho à banca do zelo, da honra da rectidão.
Não sabe dizer que não. Não se nega a um pedido, a uma solicitação de palestrar. Nunca fala de si nem dos tormentos passados. O pudor impede. A educação impossibilita. Como é possível não gostar, não apreciar este homem que fez da vida uma outra moral em acção, e a quem apetece aplicar a frase de Malraux sobre André Gide: o contemporâneo capital.
Casou-se na cadeia. Com uma mulher que Salazar também encafuara na prisão. Costumo pensar que não há ela sem ele, nem ele sem essa escora fundamental do edifício por ambos construído. Uma memória a dois, que se expande nesse fixar o que fica, nesse ficar o que o tempo deixou para trás. "A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento", escreveu Milan Kundera, em "O Livro do Riso e do Esquecimento." Isso mesmo.
A história como memória e interpretação do que a memória dos homens nos legou em livros e em acções. Eleger como os fundamentos das coisas o trabalho, as fadigas do "povo meudo" de que falou Fernão Lopes e cuja lição modelar Borges Coelho tem seguido, com interpretações próprias e exemplares.
É indispensável ler a obra de António Borges Coelho. Não se deixe manobrar, meu Dilecto; não volte as costas ao conhecimento; não desconheça donde viemos para saber quem somos. Sobretudo para saber quem somos. Sem fadiga, enfrentando todos os óbices, desafiando todas as dificuldades, António Borges Coelho tem entregue a sua vida a esse cuidado e a essa tarefa. Para se entregar a nós, Dilecto, para se entregar a nós!
Artigo de Opinião de Baptista Bastos, publicado no "Jornal de Negócios", em 26/03/2010
No Museu do Neorealismo, em Vila Franca de Xira, foi inaugurada, no último sábado, uma exposição, que estará aberta até 26 de Setembro, sobre a vida e a obra de António Borges Coelho. Este homem modesto e discreto, investigador incansável e de uma probidade exemplar, é um dos dois ou três maiores historiadores portugueses contemporâneos. Como se escreve no texto que antecede o livro da exposição, ele navegou sempre no outro lado do rio, onde estão aqueles que, "em baixo fazem andar a História." Uma obra monumental, de características únicas, acrescentada, agora, com o fascinante "Donde Viemos", primeiro volume da História de Portugal, a que Borges Coelho, com 82 anos, meteu ombros.
Prisões nas masmorras do fascismo, perseguições de todo o jaez e estilo, dificuldades inúmeras, obstáculos inauditos jamais tiraram do belo rosto deste português maior o sorriso infantil, nem lhe toldaram a capacidade de recomeçar. "Não guardo ressentimento de coisa alguma", disse, na sessão de abertura, acrescentando a sua inabalável convicção nas infinitas possibilidades do homem. É muito difícil ouvir-lhe lamúrias, queixumes ou manifestações, por breves que fossem, de rancores. Ele dá sempre a volta às coisas negras e expõe logo a certeza de que a História é como "procurar a luz para ver as sombras."
Não há maniqueísmo no trabalho majestoso de António Borges Coelho; mas há, isso sim, a procura da grandeza do homem, mesmo quando o homem se deixa envolver pelas sombras. Os livros que tem publicado são a demonstração dessa busca soberana entre as demais: o que nos fez, o que atraiu, o que nos galvanizou e o que nos esmoreceu. Sem jamais se deixar hipnotizar pelo que escreve (e como escreve, este prosador sem par!), ele não passa pela História como um espelho pelo caminho. Desvenda o porquê das coisas, as causas e os despojos. Escreve a olhar para trás, para andar sempre para a frente. Borges Coelho ensina-nos, com a simplicidade, a decência e o escrúpulo, que é na tentativa de escrever que reside a coragem de escrever, e que, em História, não se acredita nem deixa de se acreditar: em História, ou se a conhece, ou não.
A exposição no Museu do Neorealismo é um esforço assinalável pela honestidade do propósito e pela justiça do alcance. António Borges Coelho tem pago, pela inteireza de carácter e de convicções, o preço de deliberados "esquecimentos" e de omissões propositadas. Os seus pares, os seus amigos, numerosos, variados, exactos e inamovíveis, assistem à mediatização de medíocres, premiados e incensados por uma Televisão ignorante, por um jornalismo sem alma e sem critérios de valor e por estratégias políticas desprovidas de elevação. Com o encantador sorriso de garoto que ilumina a sua face e nos ilumina a nós, seus parceiros e companheiros de vida e de batalhas, ele passa de lado e vai à vida: horas e horas de trabalho à banca do zelo, da honra da rectidão.
Não sabe dizer que não. Não se nega a um pedido, a uma solicitação de palestrar. Nunca fala de si nem dos tormentos passados. O pudor impede. A educação impossibilita. Como é possível não gostar, não apreciar este homem que fez da vida uma outra moral em acção, e a quem apetece aplicar a frase de Malraux sobre André Gide: o contemporâneo capital.
Casou-se na cadeia. Com uma mulher que Salazar também encafuara na prisão. Costumo pensar que não há ela sem ele, nem ele sem essa escora fundamental do edifício por ambos construído. Uma memória a dois, que se expande nesse fixar o que fica, nesse ficar o que o tempo deixou para trás. "A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento", escreveu Milan Kundera, em "O Livro do Riso e do Esquecimento." Isso mesmo.
A história como memória e interpretação do que a memória dos homens nos legou em livros e em acções. Eleger como os fundamentos das coisas o trabalho, as fadigas do "povo meudo" de que falou Fernão Lopes e cuja lição modelar Borges Coelho tem seguido, com interpretações próprias e exemplares.
É indispensável ler a obra de António Borges Coelho. Não se deixe manobrar, meu Dilecto; não volte as costas ao conhecimento; não desconheça donde viemos para saber quem somos. Sobretudo para saber quem somos. Sem fadiga, enfrentando todos os óbices, desafiando todas as dificuldades, António Borges Coelho tem entregue a sua vida a esse cuidado e a essa tarefa. Para se entregar a nós, Dilecto, para se entregar a nós!
Artigo de Opinião de Baptista Bastos, publicado no "Jornal de Negócios", em 26/03/2010
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