sábado, 26 de dezembro de 2009

A interminável pouca-vergonha


Baptista Bastos
A interminável pouca-vergonha
Assisti, entre o bocejo e o espanto, à última sessão deste ano da Assembleia da República. Gosto muito de escrever Assembleia da República. Esta coisa de ser antigo é uma chatice mas traz vantagens. Como também escrevi sobre outro tempo, escrevi, logicamente, sobre a Assembleia Nacional do salazarismo. E perguntava-me como era possível que homens como Mário de Figueiredo e conselheiro Albino dos Reis, entre outros, que se diziam republicanos, colaborassem naquela farsa monstruosa. Feitas as comparações, apesar de tudo, esta Assembleia, com amolgadelas morais e de carácter, é muito diferente da outra.
Na outra, ninguém insultava ninguém, a não ser quando nasceu, no marcelismo, a "ala liberal", e um grupo de gente nova acreditou que podiam modificar o regime "por dentro." É impossível. Na democracia também foi tentado alterar, do "interior", este e aquele partido. Em vão. A História está aí para nos ensinar. Mas parece que ninguém deseja aprender. O que, em tempos recuados, foi uma espécie de espírito de missão (tanto nos começos da República como nos anos imediatos ao 25 de Abril), transformou-se numa batalha pelas regalias individuais.
Olho a cara destes deputados e, com a excepção de dois ou três, nenhum me convence. Está-lhes no rosto a marca do oportunismo, o sinal de que se encontram ali para tratar da vidinha. As coisas terão de ser fatalmente assim? Vejo e ouço um rapaz velho, que foi da Jota, trepou a deputado europeu, e, agora, na primeira linha da bancada "socialista", solta vitupérios a fim de obedecer à estratégia partidária.
Nada daquilo é sério, nada daquilo é decente. O moço, vestido como um ancião dos tempos da Assembleia Nacional, grave, soturno e inquietante, é um ressurrecto, um ser de lonjuras, cheio de mofo e de ranço. Não está ali para dizer nem sequer uma frase importante; está ali para "fazer número", para ser o eco do que lhe sussurraram. Sinto vergonha por aquele rapaz velho, sem sal e sem pimenta, as faces entorpecidas por um tédio que já se lhe acumulou. Que faz este tipo na vida? Acho que "dialogou" com Mário Soares num livro aborrecido e inútil, cujas primeiras páginas folheei, atraído pelo registo memorialístico que Soares lhe poderia conferir. Nada. Sobretudo quando o moço fala.
Tudo isto está ligado. O que diz Paulo Portas, o sorriso irritante e provocador de José Sócrates, as bojardas de Manuela Ferreira Leite, como se estivesse a declamar um discurso de Séneca, tudo isto são filmes de "réprise", sem grandeza, sem generosidade. Insultam-se e injuriam-se. O primeiro-ministro é acusado de chantagista, de mentiroso e de incumprimento de promessas.
O idioma utilizado não é bom, nem isso, e soa como o fraseado de um eguariço. Claro que a senhora do PSD, quando insulta, não pode esperar outra coisa que não outro insulto. Falam, falam, falam e não estão a dizer nada. O Parlamento português ausentou-se das suas funções e converteu-se numa arena suja, medíocre, sórdida. Ali, o verniz dos salamaleques estilhaça-se. E os deputados não servem de paradigma a ninguém.
Pode crer, meu Dilecto, bem gostaria eu de que o panorama fosse outro, outras as pessoas, outros os encargos, outras as actividades. Não há nada a fazer: esta gente, que se diz nossa representante, apenas se representa a ela própria. Os negócios, as trocas de favores, os jogos malabares, as súbitas ascensões a ricos de muitos daqueles que não tinham dinheiro nem sequer para mandar tocar um cego - eis um amontoado de aldrabices, conexões ilícitas, cumplicidades abjectas.
A Assembleia da República não é o que deveria ser. Entre os gritos de curral, as histerias sem direcção nem sentido, as tácticas de momento e as estratégias desacreditantes, assistimos a um desfile desavergonhado e ininterrupto.
Vamos continuar assim?

APOSTILA - Olhe, Dilecto, procure ser feliz. Para o caso, recomendo-lhe um livro admirável organizado por um homem sério, que tem carreado, para o bragal da nossa cultura, um trabalho intelectual valiosíssimo. Falo de José Viale Moutinho, escritor, jornalista, investigador, que publicou uma fotobiografia de Camilo. O volume, "Camilo Castelo Branco - Memórias Fotobiográficas (1825-1890)" é uma tarefa magistral, cheio de fotos, iconografias, registos e comentários escritos por alguns dos nossos maiores. Viale Moutinho recuperou documentos extraordinários, textos formidáveis e esquecidos, como, por exemplo, o de João Chagas, grande jornalista e político, que deveria ser lido (aliás, todo o João Chagas, inclusive o "Diário"), que nos propõe a modernidade de um idioma, habitualmente mal tratado. Recomendo aos meus Dilectos este volume fora-de-série dos estudos camilianos. E que tenham Boas Festas.

Artigo de Opinião de Baptista Bastos publicado no Jornal de Negócios de 24/12/2009

1 comentário:

  1. Identifico-me inteiramente com o texto. Este reproduz o que sinto na actual conjuntura política Nacional. É grande o meu desalento no que respeita à qualidade da maioria dos senhores deputados da Nação, dos que já o foram e de muitos dos que têm funções na esfera do poder.

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