Inicio este texto com as palavras de Engelhardt Jr. “O desafio da futura bioética é que possuímos mais do que nunca conhecimentos tecnológicos e não temos, entretanto, o menor sentido de como utilizá-los, sendo que a crise de nossa era é que adquirimos um poder inesperado e devemos usá-lo no caos de um mundo pós-tradicional, pós-cristão e pós-moderno” (ENGELHARDT JR., 1996).
Também Philipe Roqueplo fala de distintos momentos no relacionamento tecnologia-natureza. O primeiro, chamado “arcaico”, em que a natureza era investida de um verdadeiro poder normativo. A liberdade humana encontrava-se então inteiramente submetida a um horizonte natural. Em oposição, vivemos actualmente a pós-modernidade, mencionada por Engelhardt, em que a tecnociência é dotada de um poder quase ilimitado de exploração da natureza. Hoje, portanto, a tecnologia assumiu o carácter de um poder quase incontrolável, estando o Homo sapiens inteiramente subjugado ao homo faber. A relação entre ciência e técnica passou a ser dominante e o produto dessa união - a tecnociência - é dotado de poderes extraordinários. A pesquisa, por sua vez, é orientada por instituições tecno-burocráticas. A tecnociência vai produzindo conhecimentos que, sem quaisquer reflexões éticas, transformam-se em regras impostas à sociedade que, obediente a essa máquina cega de saber, projecta-se trôpega por um longo e escuro túnel. Husserl, numa famosa conferência sobre a crise da ciência europeia, já identificara um buraco cego no objectivismo científico: o vazio da consciência sobre si mesma. A partir do momento em que, de um lado, ocorreu o divórcio da subjectividade humana, reservada à filosofia, e a objectividade do saber, que é própria à ciência, o conhecimento científico desenvolveu tecnologias refinadas para conhecer todos os objectivos possíveis, mas tornou-se completamente alheio aos valores essenciais da humanidade. É o que Morin denomina “ignorância da ecologia da acção”, ou seja, a partir do momento em que é iniciada, a acção humana escapa das mãos do agente, entrando em jogo as múltiplas interacções próprias da sociedade de mercado que a desviam de seu objectivo e, às vezes, lhe dão destino oposto ao inicialmente planeado. Nesse processo, a ideia de homem desintegra-se.(…)
Esse divórcio entre os avanços científicos e a reflexão ética foi que levou Jonas a propor novos parâmetros para avaliar a responsabilidade sobre os impactos das acções, pois “a técnica moderna introduziu acções de magnitudes tão diferentes, com objectivo e consequências tão imprevisíveis, que os marcos da ética anterior já não mais podem contê-los” (JONAS, 1995). É certo que os marcos da ciência moderna se encontram em Descartes e Bacon que concediam valorização extrema à experimentação. Ambos desprezavam o saber especulativo e privilegiavam o poder operativo da ciência. O ser humano para eles converte-se em mestre e dono da natureza. Em “Avancements des Sciences” Bacon concita os homens a unirem forças para dominar a natureza “para tomar de assalto e ocupar seus castelos e suas praças” (RUSSEL, 1957). De facto, frente a tal invectiva, os homens de ciência fizeram todo possível para responder à altura ao que Bacon propusera. E, tanto foi feito, que se produziu um novo modelo de entrelaçamento entre a técnica e a ciência, de tal modo que toda a investigação contemporânea se realiza através do íntimo diálogo entre o conceito e a aplicação, a teoria e a prática. Em relação a isso Popper afirmou que: “A história das ciências, como a de todas as ideias humanas, é uma história de sonhos irresponsáveis, de teimosia e de erros. Porém, a ciência é uma das raras actividades humanas, talvez a única, na qual os erros são sistematicamente assinalados e, com o tempo, constantemente corrigidos” (POPPER, 1975).
Diante dessa constatação é fundamental que cada um de nós, na condição de cientista ou cidadão, se indague sobre como considerar as vítimas fatais da tecnociência. O que falar, por exemplo, sobre todos aqueles que sucumbiram em Hiroshima e Nagasaki? Diante dessas atrocidades não se pode conceber que a ciência não esteja alicerçada numa sólida consciência ética do pesquisador, principalmente quando se leva em conta que ele não mais detém o poder absoluto sobre os processos de trabalho, mas sim, está ao serviço de gestores do poder, que nem sempre cultivam preocupações dessa natureza. Se, indiscutivelmente, houve um avanço extraordinário quando a ciência, no século XVII, se tornou independente da religião e do Estado e, se desde então, criou seu próprio imperativo “conhecer por conhecer”, gozando de total liberdade para tanto, é imprescindível que a ética, pautada nos valores humanos, oriente a acção. A bioética, hoje, propõe a reflexão crítica da prática científica. Amparada em autores como Beecher que, em depoimento prestado à Comissão do Congresso dos Estados Unidos sobre procedimentos antiéticos identificados em pesquisas médicas, considerou que “a ciência não é o valor maior, ao qual todos os outros devam se submeter”. Beecher argumentou que “... a ciência sempre deveria estar subordinada a uma ordem de valores estabelecidos pela própria sociedade”.
(…)Se, na Antiguidade, a cultura grega dispunha de um saber de grande alcance, mas que não produzia grandes transformações, actualmente, ao contrário, o saber tem forte acento técnico e faz-se acompanhar de um extraordinário poder de mudar a realidade social e o ambiente natural. Porém, como o saber moderno produzido pela ciência está desamparado da reflexão ética, que pode moderar e, principalmente, ponderar sobre o desmedido poder da tecnociência, tem-se a impressão que podemos estar – todos – num mesmo barco desgovernado sob a tempestade.
Ao considerar- se a responsabilidade das acções humanas, deve-se enfatizar que somente o ser humano é capaz de mudar o curso da história da vida com suas intervenções. Numa estrada que se bifurca, ele é o caminhante que detém a opção da escolha. Os rumos são diversos, assim como o destino final. Uma vereda pode terminar num precipício, enquanto outra numa fonte de águas puras.
Os mesmos impasses são apresentados pela biotecnociência, que nos coloca frente a frente com bifurcações cada vez mais angustiantes. E justamente nesses pontos de bifurcação é que se impõe a questão da escolha. Uma escolha que somente ganha contornos apropriados por um processo de deliberação conjunta, que envolva toda a sociedade humana, tal como propõe Habermas. A responsabilidade de cada ser humano consigo mesmo é indissociável da responsabilidade que se tem para com todos os homens. Trata-se de uma solidariedade que nos liga a todos, os homens e a natureza que nos cerca. É obrigatório reconhecer que, presentemente, a reflexão ética é levada a intervir num contexto novo de conhecimento, pois a tecnociência transformou profundamente não apenas o conceito de natureza, mas a própria natureza. A antiga ideia de natureza acomodava-se à inatingível ordem natural que definia os contornos das normas éticas. Hoje, trabalhamos com uma concepção inteiramente distinta. O curso da existência não é mais dependente de uma lei superior que reserva ao ser humano a condição de espectador. Muito pelo contrário, ele tornou-se hoje o agente das transformações e tem à sua mercê toda a existência, intervindo nela como bem lhe apraz. A natureza, portanto, passou a ser considerada apenas como propriedade, como domínio do homem. Seguramente, nem mesmo Bacon poderia conceber um poder tão extraordinário, um domínio tão absoluto sobre a natureza. Diante dessa realidade, é impossível não submeter as acções da ciência a exigências de uma nova responsabilidade ética. Eco faz apreciação bastante apropriada sobre uma nova percepção de responsabilidade: “O progresso material do mundo agudizou a minha sensibilidade moral, ampliou a minha responsabilidade, aumentou as minhas possibilidades, dramatizou a minha impotência. Ao fazer-me mais difícil ser moral, faz com que eu, mais responsável que meus antepassados e mais consciente, seja mais imoral que eles e a minha moralidade consiste precisamente na consciência de minha incapacidade” (ECO, 1973). Esta responsabilidade que nos é imposta pede que se preserve a condição de existência da humanidade, mostra a vulnerabilidade que o agir humano suscita a partir do momento em que ele se apresenta ante a fragilidade natural da vida. A obrigação torna-se incomparavelmente maior em função de nosso poder de transformação e a consciência que temos de todos os possíveis danos oriundos de nossas acções. A manutenção da natureza é a condição de sobrevivência do ser humano e é no âmbito desse destino solidário que Jonas fala de dignidade própria da natureza. Preservar a natureza significa preservar a vida. Eis por que, se tornou uma obrigação do ser humano o mais absoluto respeito à natureza. Outrossim é elementar o conhecimento das repercussões sobre a saúde humana, decorrentes da deterioração do meio ambiente e os possíveis desequilíbrios que ocorrerão em consequência do super aquecimento do planeta, ou da progressiva destruição da camada de ozono ou, ainda, do incontrolável desbastamento das já escassas reservas florestais. Assim, no momento actual, representa-se um futuro que talvez não se realize, mas que, no entanto, apresenta seu testemunho no presente, enquanto caracterização de um infortúnio, enquanto imagem do não querido, mas, sobretudo mostrando eloquentemente a necessidade de se instituir um novo estatuto de responsabilidade que vise a manutenção da vida humana e extra-humana. Prigogine aponta a necessidade da ciência dialogar com a natureza, alertando que compreender não pode significar controlar, pois: “Seria cego o senhor que acreditasse conhecer seus escravos pelo simples facto dos mesmos obedecerem às suas ordens (...) Nenhuma especulação, nenhum saber jamais afirmou a equivalência entre o que se faz e o que se desfaz, entre uma planta que nasce, floresce e morre, e uma planta que ressuscita, rejuvenesce e retorna para sua semente primitiva, entre um homem que amadurece e aprende e um homem que se torna progressivamente criança, depois embrião, depois célula”(PRIGOGINE, 1996).
As inquietações com o desequilíbrio ecológico derivam também do quase inexistente sistema de contabilidade ambiental. O sistema internacionalmente aceite para apresentar o progresso económico de um país, o chamado Produto Interno Bruto (PIB), não considera a depreciação do capital natural, como é o caso da perda do solo por erosão, da destruição das florestas pela chuva ácida ou da redução da camada de ozono. O resultado é que a contabilidade económica sobrestima o progresso técnico e desconsidera a degradação ambiental. O sistema de avaliação do equilíbrio do meio ambiente é bastante precário e nem sequer temos ideia do número de espécies de plantas e animais que desaparecem a cada ano.A consequência natural de uma economia baseada em apreciações tão precárias é a de que, pouco a pouco, se esvai a vida do planeta. As práticas danosas à natureza que foram implantadas nas últimas décadas traduzem-se agora por uma redução de terras cultiváveis, de bosques e pastagens e da vida marinha, além das drásticas alterações climáticas e dos fenómenos directa ou indirectamente a estas relacionados, como os cada vez mais frequentes furacões e terramotos. Em decorrência disso, são crescentes os gastos com projectos de descontaminação ambiental, com o tratamento de enfermidades como o câncer de pele, patologias congénitas, diferentes formas de alergias, enfisema pulmonar, asma brônquica e outras doenças respiratórias. Ainda com relação à contaminação ambiental, particularmente da água, do ar e do solo por produtos tóxicos, os gastos com agravos à saúde humana estão crescendo expressivamente. Acima de tudo, porém, é impressionante o aumento dos custos humanos decorrentes da expansão do fenómeno da fome, que se amplia nesse processo vertiginoso.
Uma das publicações mais reconhecidas sobre o equilíbrio ecológico é oriunda da Comissão Mundial do Meio Ambiente e Desenvolvimento que recebeu o título de Nosso futuro comum. (…)Nas palavras da presidente da Comissão, Gro Harlem Brundtland: “...era a esperança de que o meio ambiente iria deixar de ser uma questão secundária na tomada de decisões políticas. (...) Seria o caminho de salvaguardar o futuro preservando os interesses das gerações futuras” (COMISIÓN MUNDIAL DEL MEDIO AMBIENTE Y DESARROLLO, 1992).
Pretendia-se, assim, resgatar a interacção homem - natureza que a visão baconiana descartara. O título da publicação já exprimia a intenção de busca de soluções multilaterais que contemplassem um sistema de políticas económicas internacionais fundadas na cooperação mútua. Desta obra extraímos um breve e significativo trecho dirigido aos membros dos inúmeros países representados na Comissão: “Se não conseguirmos que nossa urgente mensagem chegue aos países e às pessoas que tomam decisões na actualidade, corremos o risco de solapar o direito essencial que têm nossos filhos a um meio ambiente são e que privilegie a vida” (COMISIÓN MUNDIAL DEL MEDIO AMBIENTE Y DESARROLLO, Op. cit.).
Concluo estas reflexões com breves citações de pensadores contemporâneos que bem resumem a preocupação da bioética com o meio ambiente e a vida humana. Em relação ao avanço incontrolado da biotecnociência, assim se expressou Berlinguer: “A velocidade com que se passa da pesquisa pura para a aplicada é, hoje, tão alta que a permanência, mesmo que por breve tempo, de erros ou fraudes, pode provocar catástrofes” (BERLINGUER, 1993). E, finalmente, as palavras sensatas de Potter: “Peço-lhes que pensem a bioética como uma nova ética da ciência que combine humildade, responsabilidade e competência, que seja interdisciplinar e intercultural e que faça prevalecer o verdadeiro sentido de humanidade” (POTTER, 1998).(…) Considero a bioética uma ferramenta indispensável para a construção de uma ciência pautada na ética, que responda aos dilemas humanos, dos indivíduos e das populações, respeitando as formas de vida e o ambiente. Para tanto, a bioética deve ter como meta trazer para a pauta de discussão temas que possam constituir-se em marcos que orientem reflexões pertinentes à realidade contemporânea, capazes de tornar o planeta de facto a nossa casa: o local onde se fortalecem os laços de amizade e se cuida amorosamente das gerações futuras.
Bioethics, environment and human life *
José Eduardo de Siqueira, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Paraná, Brasil
Também Philipe Roqueplo fala de distintos momentos no relacionamento tecnologia-natureza. O primeiro, chamado “arcaico”, em que a natureza era investida de um verdadeiro poder normativo. A liberdade humana encontrava-se então inteiramente submetida a um horizonte natural. Em oposição, vivemos actualmente a pós-modernidade, mencionada por Engelhardt, em que a tecnociência é dotada de um poder quase ilimitado de exploração da natureza. Hoje, portanto, a tecnologia assumiu o carácter de um poder quase incontrolável, estando o Homo sapiens inteiramente subjugado ao homo faber. A relação entre ciência e técnica passou a ser dominante e o produto dessa união - a tecnociência - é dotado de poderes extraordinários. A pesquisa, por sua vez, é orientada por instituições tecno-burocráticas. A tecnociência vai produzindo conhecimentos que, sem quaisquer reflexões éticas, transformam-se em regras impostas à sociedade que, obediente a essa máquina cega de saber, projecta-se trôpega por um longo e escuro túnel. Husserl, numa famosa conferência sobre a crise da ciência europeia, já identificara um buraco cego no objectivismo científico: o vazio da consciência sobre si mesma. A partir do momento em que, de um lado, ocorreu o divórcio da subjectividade humana, reservada à filosofia, e a objectividade do saber, que é própria à ciência, o conhecimento científico desenvolveu tecnologias refinadas para conhecer todos os objectivos possíveis, mas tornou-se completamente alheio aos valores essenciais da humanidade. É o que Morin denomina “ignorância da ecologia da acção”, ou seja, a partir do momento em que é iniciada, a acção humana escapa das mãos do agente, entrando em jogo as múltiplas interacções próprias da sociedade de mercado que a desviam de seu objectivo e, às vezes, lhe dão destino oposto ao inicialmente planeado. Nesse processo, a ideia de homem desintegra-se.(…)
Esse divórcio entre os avanços científicos e a reflexão ética foi que levou Jonas a propor novos parâmetros para avaliar a responsabilidade sobre os impactos das acções, pois “a técnica moderna introduziu acções de magnitudes tão diferentes, com objectivo e consequências tão imprevisíveis, que os marcos da ética anterior já não mais podem contê-los” (JONAS, 1995). É certo que os marcos da ciência moderna se encontram em Descartes e Bacon que concediam valorização extrema à experimentação. Ambos desprezavam o saber especulativo e privilegiavam o poder operativo da ciência. O ser humano para eles converte-se em mestre e dono da natureza. Em “Avancements des Sciences” Bacon concita os homens a unirem forças para dominar a natureza “para tomar de assalto e ocupar seus castelos e suas praças” (RUSSEL, 1957). De facto, frente a tal invectiva, os homens de ciência fizeram todo possível para responder à altura ao que Bacon propusera. E, tanto foi feito, que se produziu um novo modelo de entrelaçamento entre a técnica e a ciência, de tal modo que toda a investigação contemporânea se realiza através do íntimo diálogo entre o conceito e a aplicação, a teoria e a prática. Em relação a isso Popper afirmou que: “A história das ciências, como a de todas as ideias humanas, é uma história de sonhos irresponsáveis, de teimosia e de erros. Porém, a ciência é uma das raras actividades humanas, talvez a única, na qual os erros são sistematicamente assinalados e, com o tempo, constantemente corrigidos” (POPPER, 1975).
Diante dessa constatação é fundamental que cada um de nós, na condição de cientista ou cidadão, se indague sobre como considerar as vítimas fatais da tecnociência. O que falar, por exemplo, sobre todos aqueles que sucumbiram em Hiroshima e Nagasaki? Diante dessas atrocidades não se pode conceber que a ciência não esteja alicerçada numa sólida consciência ética do pesquisador, principalmente quando se leva em conta que ele não mais detém o poder absoluto sobre os processos de trabalho, mas sim, está ao serviço de gestores do poder, que nem sempre cultivam preocupações dessa natureza. Se, indiscutivelmente, houve um avanço extraordinário quando a ciência, no século XVII, se tornou independente da religião e do Estado e, se desde então, criou seu próprio imperativo “conhecer por conhecer”, gozando de total liberdade para tanto, é imprescindível que a ética, pautada nos valores humanos, oriente a acção. A bioética, hoje, propõe a reflexão crítica da prática científica. Amparada em autores como Beecher que, em depoimento prestado à Comissão do Congresso dos Estados Unidos sobre procedimentos antiéticos identificados em pesquisas médicas, considerou que “a ciência não é o valor maior, ao qual todos os outros devam se submeter”. Beecher argumentou que “... a ciência sempre deveria estar subordinada a uma ordem de valores estabelecidos pela própria sociedade”.
(…)Se, na Antiguidade, a cultura grega dispunha de um saber de grande alcance, mas que não produzia grandes transformações, actualmente, ao contrário, o saber tem forte acento técnico e faz-se acompanhar de um extraordinário poder de mudar a realidade social e o ambiente natural. Porém, como o saber moderno produzido pela ciência está desamparado da reflexão ética, que pode moderar e, principalmente, ponderar sobre o desmedido poder da tecnociência, tem-se a impressão que podemos estar – todos – num mesmo barco desgovernado sob a tempestade.
Ao considerar- se a responsabilidade das acções humanas, deve-se enfatizar que somente o ser humano é capaz de mudar o curso da história da vida com suas intervenções. Numa estrada que se bifurca, ele é o caminhante que detém a opção da escolha. Os rumos são diversos, assim como o destino final. Uma vereda pode terminar num precipício, enquanto outra numa fonte de águas puras.
Os mesmos impasses são apresentados pela biotecnociência, que nos coloca frente a frente com bifurcações cada vez mais angustiantes. E justamente nesses pontos de bifurcação é que se impõe a questão da escolha. Uma escolha que somente ganha contornos apropriados por um processo de deliberação conjunta, que envolva toda a sociedade humana, tal como propõe Habermas. A responsabilidade de cada ser humano consigo mesmo é indissociável da responsabilidade que se tem para com todos os homens. Trata-se de uma solidariedade que nos liga a todos, os homens e a natureza que nos cerca. É obrigatório reconhecer que, presentemente, a reflexão ética é levada a intervir num contexto novo de conhecimento, pois a tecnociência transformou profundamente não apenas o conceito de natureza, mas a própria natureza. A antiga ideia de natureza acomodava-se à inatingível ordem natural que definia os contornos das normas éticas. Hoje, trabalhamos com uma concepção inteiramente distinta. O curso da existência não é mais dependente de uma lei superior que reserva ao ser humano a condição de espectador. Muito pelo contrário, ele tornou-se hoje o agente das transformações e tem à sua mercê toda a existência, intervindo nela como bem lhe apraz. A natureza, portanto, passou a ser considerada apenas como propriedade, como domínio do homem. Seguramente, nem mesmo Bacon poderia conceber um poder tão extraordinário, um domínio tão absoluto sobre a natureza. Diante dessa realidade, é impossível não submeter as acções da ciência a exigências de uma nova responsabilidade ética. Eco faz apreciação bastante apropriada sobre uma nova percepção de responsabilidade: “O progresso material do mundo agudizou a minha sensibilidade moral, ampliou a minha responsabilidade, aumentou as minhas possibilidades, dramatizou a minha impotência. Ao fazer-me mais difícil ser moral, faz com que eu, mais responsável que meus antepassados e mais consciente, seja mais imoral que eles e a minha moralidade consiste precisamente na consciência de minha incapacidade” (ECO, 1973). Esta responsabilidade que nos é imposta pede que se preserve a condição de existência da humanidade, mostra a vulnerabilidade que o agir humano suscita a partir do momento em que ele se apresenta ante a fragilidade natural da vida. A obrigação torna-se incomparavelmente maior em função de nosso poder de transformação e a consciência que temos de todos os possíveis danos oriundos de nossas acções. A manutenção da natureza é a condição de sobrevivência do ser humano e é no âmbito desse destino solidário que Jonas fala de dignidade própria da natureza. Preservar a natureza significa preservar a vida. Eis por que, se tornou uma obrigação do ser humano o mais absoluto respeito à natureza. Outrossim é elementar o conhecimento das repercussões sobre a saúde humana, decorrentes da deterioração do meio ambiente e os possíveis desequilíbrios que ocorrerão em consequência do super aquecimento do planeta, ou da progressiva destruição da camada de ozono ou, ainda, do incontrolável desbastamento das já escassas reservas florestais. Assim, no momento actual, representa-se um futuro que talvez não se realize, mas que, no entanto, apresenta seu testemunho no presente, enquanto caracterização de um infortúnio, enquanto imagem do não querido, mas, sobretudo mostrando eloquentemente a necessidade de se instituir um novo estatuto de responsabilidade que vise a manutenção da vida humana e extra-humana. Prigogine aponta a necessidade da ciência dialogar com a natureza, alertando que compreender não pode significar controlar, pois: “Seria cego o senhor que acreditasse conhecer seus escravos pelo simples facto dos mesmos obedecerem às suas ordens (...) Nenhuma especulação, nenhum saber jamais afirmou a equivalência entre o que se faz e o que se desfaz, entre uma planta que nasce, floresce e morre, e uma planta que ressuscita, rejuvenesce e retorna para sua semente primitiva, entre um homem que amadurece e aprende e um homem que se torna progressivamente criança, depois embrião, depois célula”(PRIGOGINE, 1996).
As inquietações com o desequilíbrio ecológico derivam também do quase inexistente sistema de contabilidade ambiental. O sistema internacionalmente aceite para apresentar o progresso económico de um país, o chamado Produto Interno Bruto (PIB), não considera a depreciação do capital natural, como é o caso da perda do solo por erosão, da destruição das florestas pela chuva ácida ou da redução da camada de ozono. O resultado é que a contabilidade económica sobrestima o progresso técnico e desconsidera a degradação ambiental. O sistema de avaliação do equilíbrio do meio ambiente é bastante precário e nem sequer temos ideia do número de espécies de plantas e animais que desaparecem a cada ano.A consequência natural de uma economia baseada em apreciações tão precárias é a de que, pouco a pouco, se esvai a vida do planeta. As práticas danosas à natureza que foram implantadas nas últimas décadas traduzem-se agora por uma redução de terras cultiváveis, de bosques e pastagens e da vida marinha, além das drásticas alterações climáticas e dos fenómenos directa ou indirectamente a estas relacionados, como os cada vez mais frequentes furacões e terramotos. Em decorrência disso, são crescentes os gastos com projectos de descontaminação ambiental, com o tratamento de enfermidades como o câncer de pele, patologias congénitas, diferentes formas de alergias, enfisema pulmonar, asma brônquica e outras doenças respiratórias. Ainda com relação à contaminação ambiental, particularmente da água, do ar e do solo por produtos tóxicos, os gastos com agravos à saúde humana estão crescendo expressivamente. Acima de tudo, porém, é impressionante o aumento dos custos humanos decorrentes da expansão do fenómeno da fome, que se amplia nesse processo vertiginoso.
Uma das publicações mais reconhecidas sobre o equilíbrio ecológico é oriunda da Comissão Mundial do Meio Ambiente e Desenvolvimento que recebeu o título de Nosso futuro comum. (…)Nas palavras da presidente da Comissão, Gro Harlem Brundtland: “...era a esperança de que o meio ambiente iria deixar de ser uma questão secundária na tomada de decisões políticas. (...) Seria o caminho de salvaguardar o futuro preservando os interesses das gerações futuras” (COMISIÓN MUNDIAL DEL MEDIO AMBIENTE Y DESARROLLO, 1992).
Pretendia-se, assim, resgatar a interacção homem - natureza que a visão baconiana descartara. O título da publicação já exprimia a intenção de busca de soluções multilaterais que contemplassem um sistema de políticas económicas internacionais fundadas na cooperação mútua. Desta obra extraímos um breve e significativo trecho dirigido aos membros dos inúmeros países representados na Comissão: “Se não conseguirmos que nossa urgente mensagem chegue aos países e às pessoas que tomam decisões na actualidade, corremos o risco de solapar o direito essencial que têm nossos filhos a um meio ambiente são e que privilegie a vida” (COMISIÓN MUNDIAL DEL MEDIO AMBIENTE Y DESARROLLO, Op. cit.).
Concluo estas reflexões com breves citações de pensadores contemporâneos que bem resumem a preocupação da bioética com o meio ambiente e a vida humana. Em relação ao avanço incontrolado da biotecnociência, assim se expressou Berlinguer: “A velocidade com que se passa da pesquisa pura para a aplicada é, hoje, tão alta que a permanência, mesmo que por breve tempo, de erros ou fraudes, pode provocar catástrofes” (BERLINGUER, 1993). E, finalmente, as palavras sensatas de Potter: “Peço-lhes que pensem a bioética como uma nova ética da ciência que combine humildade, responsabilidade e competência, que seja interdisciplinar e intercultural e que faça prevalecer o verdadeiro sentido de humanidade” (POTTER, 1998).(…) Considero a bioética uma ferramenta indispensável para a construção de uma ciência pautada na ética, que responda aos dilemas humanos, dos indivíduos e das populações, respeitando as formas de vida e o ambiente. Para tanto, a bioética deve ter como meta trazer para a pauta de discussão temas que possam constituir-se em marcos que orientem reflexões pertinentes à realidade contemporânea, capazes de tornar o planeta de facto a nossa casa: o local onde se fortalecem os laços de amizade e se cuida amorosamente das gerações futuras.
Bioethics, environment and human life *
José Eduardo de Siqueira, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Paraná, Brasil
* Conferência apresentada no VI Congresso Brasileiro de Bioética e I Congresso de Bioética do Mercosul, in RBB
Excelente artigo de reflexão sobre o poder da técnica e da ciência na natureza e no homem. Um mundo que não se baseie em princípios éticos é um mundo condenado conforme se depreende deste artigo.Concordo plenamente.
ResponderEliminarmuito bom show de bola
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