Maria Gabriela Llansol — Os cantores de leitura. Colecção Arrábido. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.
Maria Gabriela Llansol faleceu em Março de 2008. Os Cantores de Leitura surgem, numa leitura tingida pelo biografema, como um último livro, mesmo se a Associação de Estudos Llansolianos anuncia o tratamento e a edição, nos próximos anos, de textos inéditos, doados pela escritora. Último livro, e contudo, como sempre, primeiro livro, no sentido em que Llansol escreve uma iniciação à leitura. Impõe-se uma memória de topoi de outros livros: a morte, assinalada por vários testamentos (o inventário dos bens de Johann Sebastian Bach, desde Lisboaleipzig, de 1994, a este Os Cantores de Leitura, p. 44), a restante vida das figuras para lá da morte histórica, numa comunidade de diversos, mas também a aprendizagem da leitura, desde a estátua de Ana ensinando a ler a Myriam em Um Beijo Dado mais Tarde, de 1990, até este ensino de cantores. Ler Llansol implica lembrar leituras anteriores, se cada livro é parte de um todo maior que se revisita a si mesmo, por ordem cronológica inversa. Cada novo livro, último, implica um recomeço, tábua rasa, primeira, que inicie a obra. A questão da morte e da sobrevivência enquanto leitura, assim, não é um acidente biográfico, mas o graphos de uma vida necessária. Um livro de despedida começa por acolher.
Para descrever trivialmente Os Cantores de Leitura, lembraria que há uma comunidade numa casa. Como acontece desde Parasceve (2001), são raros os nomes historicamente reconhecíveis: há, claro, Hölderlin, Spinoza, Anna Magdalena Bach, Nietzsche; mas sobretudo Angelikos, Gratuita, Tual, Risse, Celso, Ciro, Cirilo, Oblívio, Trova, Rorante, muitos outros. Há o quotidiano destes cantores, entre o rigor monástico e o ensaio experimental do canto. O leitor não pode reconhecer simplesmente qualquer cartografia ou cronologia, linguagens prévias, identidades. Na ausência de referentes, só pode aceitar habitar um universo inicial, passando a reconhecer a singularidade dos nomes na casa. Mas os nomes não exigem peripécia, propriedades, confrontos; só uma existência, que os torna familiares. Como n’A Comunidade que Vem, de Giorgio Agamben, em que os homens podem «aderir [à] impropriedade como tal e fazer do seu ser-assim não uma identidade e uma propriedade individual mas uma singularidade sem identidade» (Lisboa, Presença, 1993, p. 52).
Uma «comunidade sem pressupostos e sem sujeitos», ainda na expressão de Agamben (ibid.), eis Os Cantores de Leitura. Mas «sem» não é retirada nem negação; é a troca da identidade do eu pela comunidade de muitos: «o Há coincide com um grande número» (p. 169); «Tual tem várias almas» (p. 246); «Gratuita tem sonhos que nem se revelam como seus» (p. 272). Recusa, pois, de um singular que confirmasse a identidade de cada qual, ou do duplo que reunisse na mera antinomia o que se deve traduzir no múltiplo. Por isso, só encontraremos o zero da despersonalização, ou a tríade do amor ímpar que, desde Contos do Mal Errante (1986), inventa pequenas comunidades sem a leitura do hermafrodita original, cindido, platónico. Daí a recusa, insistente em Os Cantores de Leitura, da autobiografia: não há ninguém de quem escrever o auto-, ou há muitos de quem escrever o hetero-.
As singularidades sem identidades não conduzem à aporia. Conduzem à aprendizagem do canto da leitura: técnica, arte, mestria, labor oficinal, experimental, regrado. Como nos trabalhos das comunidades religiosas há muito interrogados por Maria Gabriela Llansol, aqui o canto (que é também leitura e escrita) dá-se como disciplina física e tradição especulativa. Por um lado, esta certeza: «na prática, seremos artesãos de tarefas simples, realizadas de modo impecável» (p. 99); por outro, esta dúvida: «neste ler saudado pela Casa, eu identifico-me com a ansiedade amorosa da procura. O texto que leio ama-me? Ou não me ama? O que alcançarei quando atingir o seu sexo?» (p. 176.) Fazer artesanal, o canto da leitura é disciplina e pergunta, princípio categórico e especulação sem fundamento ou legitimação. «Meu Deus, que importa o fundamento?», pergunta a protagonista do diário Inquérito às Quatro Confidências (Lisboa, Relógio d’Água, 1996, p. 27), rasurando questões de Vergílio Ferreira. O fundamento, se houver, deve dissolver o sujeito: «Escrevi o que escrevi, porque a escrita me mandou escrever, e eu obedeço, com um princípio de confusão na mente», lê-se em Os Cantores de Leitura (p. 103).
Dissolve-se o sujeito, não a comunidade, não o outro. Os cantores esperam o outro: um textuador desconhecido, que «virá pela via normal de abrir e fechar a cancela» (p. 16). Como o Messias entra pela porta estreita do instante, no Walter Benjamin das «Teses sobre a Filosofia da História»? Talvez, mesmo se Benjamin é lido e, misteriosamente, afastado em Os Cantores de Leitura (p. 156). Certo é que a espera inventa a própria comunidade: «Haveria leitura sem o enigma da espera?» (p. 53); e ainda: «ela – a imagem – veio para salvar-me» (p. 219). Se as imagens salvam, se a escrita é o fundamento e a estética é a ética, lembro-me também da última frase de «O Narrador», de Benjamin: «O narrador é a forma na qual o justo se encontra a si próprio.» (in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d’Água, 1992, p. 57.) Cantar e aguardar o narrador (ou textuador) assemelham-se, como escrever se assemelha a ler, e a disciplina do eu se assemelha à fusão no plural.
Os livros de Maria Gabriela Llansol, desde O Livro das Comunidades, dizem que, na espera, o outro já chegou: «Eu te saúdo, Casa, que já recebeu, assim que ele vier, / o grande textuador desconhecido» (p. 44). A impossibilidade de contrapor simplesmente ausência e presença ou de definir o outro desfaz os fins da Casa: não coisa regrada, mas acontecimento de hospitalidade sem nome, não número de habitantes, mas infinidade de texto a ser escrito pelo outro, por vir e já vindo, porque já aceite, mas eternamente desconhecido, isto é, indefinível, isto é, avesso ao mero conhecimento, mas presente enquanto promessa.
Há contudo um acolhimento seminal: o de Spinoza, ou de Bento. A própria escrita de Os Cantores de Leitura procura uma ordem, more geometrico, que homenageia a Ética de Espinosa. Mas, em vez de Proposições, Demonstrações, Corolários, Escólios, há Partículas, seus duplos, seus contextos, substituindo-se a verticalidade inferencial da Ética por uma horizontalidade da deriva aberta ao acolhimento, ao fragmento que adia todo o sistema. Na partícula intitulada, precisamente, «Geometria», lê-se: «A minha voz não me pertence. É a diferença entre o débito e o crédito. / E dou de frente com a linha recta perpendicular ao meu amor» (p. 139), reduzindo-se o eu às trocas de afecto, ao débito-e-crédito que inventa os justos; não há fundamentos nem leis, mas um movimento de dádiva e aceitação. Quem escreve não escreve, mas obedece a um mandamento da escrita; e o mandamento é a espera do outro, hipotexto: «Enquanto eu lia a Ética, escreviam-se estes textos que projectavam a sua luz diurna [...] / a imagem servia de revelação e estar sob o tecto de Spinoza, melhor dito por mim, de Bento, / é uma experiência que me revela duplamente o meu próprio amor inconsciente pela leitura, ou / o meu próprio amor pelo inconsciente da leitura.» (p. 194.)
O duplo desta Partícula esclarece ainda, numa revisão da Ética: «experiência não é ensaio clínico» (p. 195). Experiência não é clínica, mas talvez seja clinamen, pequeno desvio imperceptível que diz o outro no mesmo, pela escrita desapossada, ou reescrita. Resta, pois, um sujeito que se sabe texto, flexão da palavra em primeiro lugar conferida pelo outro plural, um sujeito que assina e não é mais do que assinatura, livro, canto de leitura:
eu sou feliz na alegria não sentimental que se manifesta;
o que me fraccionava, partiu:
o que tende para um limite finito, desapareceu;
a mata espessa e o grande bosque florescem;
dobro-me conforme o número, género, grau, modo, tempo,
e pessoa que sou vossa.
E assino.
Por Pedro Eiras, publicado em 19.9.2008 na secção Recensões Críticas da Revista Colóquio Letras
Maria Gabriela Llansol faleceu em Março de 2008. Os Cantores de Leitura surgem, numa leitura tingida pelo biografema, como um último livro, mesmo se a Associação de Estudos Llansolianos anuncia o tratamento e a edição, nos próximos anos, de textos inéditos, doados pela escritora. Último livro, e contudo, como sempre, primeiro livro, no sentido em que Llansol escreve uma iniciação à leitura. Impõe-se uma memória de topoi de outros livros: a morte, assinalada por vários testamentos (o inventário dos bens de Johann Sebastian Bach, desde Lisboaleipzig, de 1994, a este Os Cantores de Leitura, p. 44), a restante vida das figuras para lá da morte histórica, numa comunidade de diversos, mas também a aprendizagem da leitura, desde a estátua de Ana ensinando a ler a Myriam em Um Beijo Dado mais Tarde, de 1990, até este ensino de cantores. Ler Llansol implica lembrar leituras anteriores, se cada livro é parte de um todo maior que se revisita a si mesmo, por ordem cronológica inversa. Cada novo livro, último, implica um recomeço, tábua rasa, primeira, que inicie a obra. A questão da morte e da sobrevivência enquanto leitura, assim, não é um acidente biográfico, mas o graphos de uma vida necessária. Um livro de despedida começa por acolher.
Para descrever trivialmente Os Cantores de Leitura, lembraria que há uma comunidade numa casa. Como acontece desde Parasceve (2001), são raros os nomes historicamente reconhecíveis: há, claro, Hölderlin, Spinoza, Anna Magdalena Bach, Nietzsche; mas sobretudo Angelikos, Gratuita, Tual, Risse, Celso, Ciro, Cirilo, Oblívio, Trova, Rorante, muitos outros. Há o quotidiano destes cantores, entre o rigor monástico e o ensaio experimental do canto. O leitor não pode reconhecer simplesmente qualquer cartografia ou cronologia, linguagens prévias, identidades. Na ausência de referentes, só pode aceitar habitar um universo inicial, passando a reconhecer a singularidade dos nomes na casa. Mas os nomes não exigem peripécia, propriedades, confrontos; só uma existência, que os torna familiares. Como n’A Comunidade que Vem, de Giorgio Agamben, em que os homens podem «aderir [à] impropriedade como tal e fazer do seu ser-assim não uma identidade e uma propriedade individual mas uma singularidade sem identidade» (Lisboa, Presença, 1993, p. 52).
Uma «comunidade sem pressupostos e sem sujeitos», ainda na expressão de Agamben (ibid.), eis Os Cantores de Leitura. Mas «sem» não é retirada nem negação; é a troca da identidade do eu pela comunidade de muitos: «o Há coincide com um grande número» (p. 169); «Tual tem várias almas» (p. 246); «Gratuita tem sonhos que nem se revelam como seus» (p. 272). Recusa, pois, de um singular que confirmasse a identidade de cada qual, ou do duplo que reunisse na mera antinomia o que se deve traduzir no múltiplo. Por isso, só encontraremos o zero da despersonalização, ou a tríade do amor ímpar que, desde Contos do Mal Errante (1986), inventa pequenas comunidades sem a leitura do hermafrodita original, cindido, platónico. Daí a recusa, insistente em Os Cantores de Leitura, da autobiografia: não há ninguém de quem escrever o auto-, ou há muitos de quem escrever o hetero-.
As singularidades sem identidades não conduzem à aporia. Conduzem à aprendizagem do canto da leitura: técnica, arte, mestria, labor oficinal, experimental, regrado. Como nos trabalhos das comunidades religiosas há muito interrogados por Maria Gabriela Llansol, aqui o canto (que é também leitura e escrita) dá-se como disciplina física e tradição especulativa. Por um lado, esta certeza: «na prática, seremos artesãos de tarefas simples, realizadas de modo impecável» (p. 99); por outro, esta dúvida: «neste ler saudado pela Casa, eu identifico-me com a ansiedade amorosa da procura. O texto que leio ama-me? Ou não me ama? O que alcançarei quando atingir o seu sexo?» (p. 176.) Fazer artesanal, o canto da leitura é disciplina e pergunta, princípio categórico e especulação sem fundamento ou legitimação. «Meu Deus, que importa o fundamento?», pergunta a protagonista do diário Inquérito às Quatro Confidências (Lisboa, Relógio d’Água, 1996, p. 27), rasurando questões de Vergílio Ferreira. O fundamento, se houver, deve dissolver o sujeito: «Escrevi o que escrevi, porque a escrita me mandou escrever, e eu obedeço, com um princípio de confusão na mente», lê-se em Os Cantores de Leitura (p. 103).
Dissolve-se o sujeito, não a comunidade, não o outro. Os cantores esperam o outro: um textuador desconhecido, que «virá pela via normal de abrir e fechar a cancela» (p. 16). Como o Messias entra pela porta estreita do instante, no Walter Benjamin das «Teses sobre a Filosofia da História»? Talvez, mesmo se Benjamin é lido e, misteriosamente, afastado em Os Cantores de Leitura (p. 156). Certo é que a espera inventa a própria comunidade: «Haveria leitura sem o enigma da espera?» (p. 53); e ainda: «ela – a imagem – veio para salvar-me» (p. 219). Se as imagens salvam, se a escrita é o fundamento e a estética é a ética, lembro-me também da última frase de «O Narrador», de Benjamin: «O narrador é a forma na qual o justo se encontra a si próprio.» (in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d’Água, 1992, p. 57.) Cantar e aguardar o narrador (ou textuador) assemelham-se, como escrever se assemelha a ler, e a disciplina do eu se assemelha à fusão no plural.
Os livros de Maria Gabriela Llansol, desde O Livro das Comunidades, dizem que, na espera, o outro já chegou: «Eu te saúdo, Casa, que já recebeu, assim que ele vier, / o grande textuador desconhecido» (p. 44). A impossibilidade de contrapor simplesmente ausência e presença ou de definir o outro desfaz os fins da Casa: não coisa regrada, mas acontecimento de hospitalidade sem nome, não número de habitantes, mas infinidade de texto a ser escrito pelo outro, por vir e já vindo, porque já aceite, mas eternamente desconhecido, isto é, indefinível, isto é, avesso ao mero conhecimento, mas presente enquanto promessa.
Há contudo um acolhimento seminal: o de Spinoza, ou de Bento. A própria escrita de Os Cantores de Leitura procura uma ordem, more geometrico, que homenageia a Ética de Espinosa. Mas, em vez de Proposições, Demonstrações, Corolários, Escólios, há Partículas, seus duplos, seus contextos, substituindo-se a verticalidade inferencial da Ética por uma horizontalidade da deriva aberta ao acolhimento, ao fragmento que adia todo o sistema. Na partícula intitulada, precisamente, «Geometria», lê-se: «A minha voz não me pertence. É a diferença entre o débito e o crédito. / E dou de frente com a linha recta perpendicular ao meu amor» (p. 139), reduzindo-se o eu às trocas de afecto, ao débito-e-crédito que inventa os justos; não há fundamentos nem leis, mas um movimento de dádiva e aceitação. Quem escreve não escreve, mas obedece a um mandamento da escrita; e o mandamento é a espera do outro, hipotexto: «Enquanto eu lia a Ética, escreviam-se estes textos que projectavam a sua luz diurna [...] / a imagem servia de revelação e estar sob o tecto de Spinoza, melhor dito por mim, de Bento, / é uma experiência que me revela duplamente o meu próprio amor inconsciente pela leitura, ou / o meu próprio amor pelo inconsciente da leitura.» (p. 194.)
O duplo desta Partícula esclarece ainda, numa revisão da Ética: «experiência não é ensaio clínico» (p. 195). Experiência não é clínica, mas talvez seja clinamen, pequeno desvio imperceptível que diz o outro no mesmo, pela escrita desapossada, ou reescrita. Resta, pois, um sujeito que se sabe texto, flexão da palavra em primeiro lugar conferida pelo outro plural, um sujeito que assina e não é mais do que assinatura, livro, canto de leitura:
eu sou feliz na alegria não sentimental que se manifesta;
o que me fraccionava, partiu:
o que tende para um limite finito, desapareceu;
a mata espessa e o grande bosque florescem;
dobro-me conforme o número, género, grau, modo, tempo,
e pessoa que sou vossa.
E assino.
Por Pedro Eiras, publicado em 19.9.2008 na secção Recensões Críticas da Revista Colóquio Letras
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