quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Porque escrevo

 
Porque escrevo
por George Orwell
“Desde muito novo, talvez desde os cinco ou seis anos de idade, eu soube que mais tarde gostaria de ser escritor. Entre os dezassete e os vinte e quatro tentei pôr de parte esta ideia, mas sabia que estava a violentar a minha verdadeira natureza e que mais tarde ou mais cedo teria de assentar e me dedicar à escrita. Fui o segundo de três irmãos, mas havia entre mim e eles um intervalo de cinco anos, e até aos oito anos só de longe a longe via o meu pai. Por este e outros motivos, fui uma criança algo solitária, e cedo desenvolvi algumas manias desagradáveis, que me tornaram impopular na escola. Tinha o hábito, típico das crianças solitárias, de inventar histórias e manter conversas com personagens imaginárias, e penso que desde o início as minhas ambições literárias se misturavam com a sensação de isolamento e o sentimento de não ser devidamente valorizado. Eu sabia que tinha facilidade em escrever e a capacidade de encarar factos desagradáveis, e sentia que isto criava uma espécie de mundo privado no qual me podia desforrar dos meus fracassos na vida de todos os dias. Apesar disso, o volume de escritos sérios — isto é, escritos com intenções sérias — que produzi durante toda a minha infância e adolescência não chegaria a meia dúzia de páginas. Escrevi o meu primeiro poema aos quatro ou cinco anos, ditando‑o à minha mãe. Só me lembro que era sobre um tigre e que este tinha “dentes como cadeiras” — um verso razoavelmente bom, mas suponho que se tratasse de um plágio do poema “Tigre, tigre” de William Blake. Aos onze, quando deflagrou a guerra de 1914‑18, escrevi um poema patriótico que foi publicado na gazeta local, tal como sucedeu com outro, dois anos mais tarde, sobre a morte de Kitchener. Mais adiante, escrevi ocasionais “poemas à natureza”, invariavelmente maus, de estilo georgiano e que em muitos casos ficaram por acabar. Por duas vezes tentei também escrever contos, sendo o resultado um pavoroso fracasso. A isto se resume a totalidade dos escritos pretensamente sérios que pus no papel durante todos esses anos. Contudo, durante todo esse período envolvi‑me de certo modo em atividades literárias. Antes de mais, houve as coisas feitas por encomenda, que produzia rapidamente, facilmente e sem grande prazer. Além dos trabalhos escolares, escrevi vers d’occasion, poemas semicómicos produzidos a uma velocidade que hoje me parece espantosa — aos catorze escrevi toda uma peça em rima, imitada de Aristófanes, em cerca de uma semana — e ajudei a editar revistas escolares, tanto impressas como manuscritas. Estas revistas eram a coisa mais pateticamente burlesca que imaginar se possa, e eu gastava menos tempo com aquilo do que hoje gastaria com o jornalismo mais reles. A par disto, porém, e durante quinze anos ou mais, levei a cabo um exercício literário de tipo completamente diferente: a contínua elaboração de “histórias” a respeito de mim mesmo, uma espécie de diário que só existia mentalmente. Creio que este é um hábito comum nas crianças e nos adolescentes. Quando era muito pequeno, imaginava ser digamos, Robin dos Bosques, e pintava‑me como herói de palpitantes aventuras; mas rapidamente a minha “história” deixou de ser tão cruamente narcisista e passou a tornar‑se, cada vez mais, numa mera descrição das coisas que estava a fazer ou a ver. Este discurso mental prolongava‑se durante minutos, em algo do género: “Ele abriu a porta e entrou na sala. Um raio de sol amarelo, filtrado pelas cortinas de musselina, incidia de viés sobre a mesa, onde uma caixa de fósforos, semiaberta, jazia ao lado do tinteiro. Com a mão direita no bolso, ele aproximou‑se da janela. Lá em baixo, na rua, um gato tricolor perseguia uma folha morta”, etc., etc. Este hábito prolongou‑se até por volta dos vinte e cinco anos, atravessando portanto todo o meu período não‑literário. Embora tivesse de procurar, e o fizesse de facto, as palavras certas, era como se este esforço descritivo se realizasse quase contra a minha vontade, sob o efeito de uma compulsão externa. Suponho que essas “histórias” terão refletido os estilos dos diferentes escritores que admirei ao longo desse período, mas, tanto quanto me lembro, tinham sempre o mesmo caráter minuciosamente descritivo.”
George Orwell, in Porque escrevo, Relógio D’Água Editores, Julho de 2025, pp.7,8,9, 10
Sobre o livro:
“Orwell explica o seu percurso até se tornar escritor, desde os primeiros poemas e contos até aos ensaios, romances e textos de não-ficção pelos quais é hoje recordado. Defende ainda o que considera os “quatro grandes motivos para escrever”, e reflete sobre a importância de manter esses impulsos em equilíbrio.
Este breve ensaio oferece a oportunidade de entrar na mente do escritor, dando ao leitor uma nova perspetiva, a partir da qual poderá revisitar o conjunto da sua obra.”
Sobre o autor:
“Nascido em junho de 1903, no início de um século marcado por duas guerras mundiais, o estalinismo e o nazismo, George Orwell analisou os sonhos e pesadelos do mundo ocidental nesse período.
Nasceu Eric Arthur Blair em Motihari, na Índia Britânica. O pai era um funcionário subalterno inglês, a mãe, francesa.
Após o regresso dos pais a Inglaterra, estudou numa escola em Henley-on-Thames, frequentando depois Wellington e Eton College, onde teve como colegas Cyril Connolly e Anthony Powell. Aldous Huxley foi seu professor.
Ao abandonar Eton, decidiu não ir para Oxford e entrar na polícia birmanesa, embarcando para as Índias. Nos cinco anos que se seguiram, descobriu a realidade do imperialismo e recolheu material para Dias Birmaneses e ensaios como “Matar Um Elefante” e “Um Enforcamento”.
Regressado à Europa, frequentou os bairros pobres de Londres, instalando-se em Paris na primavera de 1928. Atingido por uma pneumonia, foi internado num hospital, cujas condições inspiraram “Como Morrem os Pobres”.
Em 1937, decidiu combater em Espanha ao lado dos republicanos na milícia do POUM, um grupo marxista heterodoxo, lutando na frente de Aragão. Foi ferido, assistindo na convalescença à eliminação pelo Partido Comunista, das milícias anarquistas e do POUM. Descreveu essa experiência em Homenagem à Catalunha (1938).
Em 1945, publicou Rebelião na Quinta, um libelo contra o totalitarismo estalinista que ameaçava a Europa.
Em 1948, terminou Mil Novecentos e Oitenta e Quatro.
Em outubro de 1949, casou com Sonia Brownell. Morreu no ano seguinte, aos 46 anos."

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