I – Para lá
do tempo
por Maria José Vieira de Sousa
O
presente é o lugar onde vivemos, enquanto o passado é o lugar onde sonhamos.
John Banville,
Retalhos do Tempo, um memorial de Dublin
"Naquele tempo, o
meu nascimento já não era uma novidade. A minha mãe sabia-lhe todos os segredos. Desde quando os primeiros
sintomas se anunciavam até à explosão final de um outro ser, de uma outra vida.
Há vários anos que vinha sendo mãe. Eu era o seu terceiro filho. Não era, em
precisão e em objectividade, a novidade. Aquilo que faz de uma mulher a maior
geradora de riquezas e que a eleva a um patamar de transcendência total e
única: a descoberta da maternidade. A minha mãe
já a descobrira há alguns anos . Ansiada,
amada e bem vinda, eu vinha juntar-me à família.
Preparara tudo
com mão mestra. Encomendara um soberbo enxoval, embora aproveitando algumas peças
da minha irmã que nascera havia dois anos. O berço fora remodelado apenas nas
forras interiores. Era uma peça valiosa,
de madeira trabalhada, que vivia na família com vaidade. Fora e seria
também o leito de todos os meus irmãos. O meu pai herdara-o quando casara. Fora
a aposta para o sucesso de uma grande família. Sendo ele o mais novo de sete
irmãos, tinha sido o último a usá-lo. O
berço competia-lhe e, de acordo com o vaticínio da minha avó paterna, era o
símbolo da fertilidade futura.
Nesse dia
aprazado , nasci de mansinho. Eu, uma singular criaturinha. Esta, que, para lá do tempo, tenta reescrever
uma história que findou. Pequenina, roliça, embrulhada em vermelho púrpura , já
que nascer exige também esforço para quem quer aparecer. Vinha aumentar uma
família predestinada a ser numerosa. E
foi. Seis filhos que se sucederam, ano
após ano, dando à casa e à família o
estatuto real de grandeza. E essa
grandeza não era apenas quantitativa. Éramos muitos numa grande casa. Mas uma casa grande onde se respirava uma buliçosa alegria e um eufónico
ruído.
Nasci à noite. Quando
o dia de um Agosto, quente e estival, estava a sumir do calendário, nesse ano
glorioso. Era a véspera do dia da cidade. O meu pai, apostado em unir-me a uma
data assinalável, decidiu registar-me no
dia seguinte. Pensava ele que esse gesto me traria fama e glória. Enganou-se ou
enganei-o eu. Não fiquei na história dos notáveis, nem a isso me propus.
Nasci com um
sorriso a aflorar nos lábios. A minha mãe nunca se cansava de o referir.
Sorriso que passou a ser um traço identificativo e talvez o mais sedutor da minha
personalidade. Mantive-o ao longo da vida. Era um sorriso único, realçava a
minha mãe. Cativei-a infindamente. Ela tinha, porém, um sorriso maior do que o
meu. Era a luz que sempre se acendeu desde o meu primeiro dia. Iluminava tudo à
sua volta. E que falta me faz essa luz.( As mães não deveriam partir.
Deixar-nos órfãos.)
A azáfama que
causou o meu nascimento obrigou à
requisição de familiares. A minha avó espanhola, andaluza de Sevilha, deixou
Lisboa e rumou ao Norte. Era a minha avó materna. Recém viúva de um gentleman alemão. Efusiva e decidida,
passou a comandar, com mão forte, os empregados da casa e os netos. Isolou
a minha mãe e com ela ,lá fui eu, também, para os aposentos mais
recônditos da casa. Pretendia resguardar-nos da agitação de uma casa habitada
por adultos e por crianças e dos intensos ruídos que campeavam pela rua devido
à festa da cidade. Nos primeiros dias, a minha mãe aceitou as regras impostas
com algum agrado e também pela conformidade que tinham com os preceitos, então,
usuais e seguidos pelas parturientes. Os
partos eram feitos em casa. No entanto,
havia uma terapia definida para uma boa
convalescença que passava pelo repouso e por uma alimentação específica. À minha mãe, apesar
de ter uma mãe bem esclarecida e aberta, foi-lhe totalmente aplicado esse
tratamento. Ao fim de meia dúzia de dias,
o isolamento tornou-se insuportável. Era uma fatalidade a que minha mãe não
queria entregar-se. De rebelião em
rebelião, decidida e doce, ora filha
dedicada , ora mãe independente, conseguiu amaciar a relutância da minha avó e mudar-se para o quarto que lhe
pertencia.
O calor e a
confusão da casa em nada me perturbavam. Dormia feliz e cândida como compete a
um recém- nascido. Estava na minha casa , no lugar que me haviam reservado. O
quarto dos meus pais. Enorme, de tecto alto, mas acolhedor e confortável. Vivi
nele os primeiros meses de vida até
completar um ano. Só lá voltei a dormir, quando a Escarlatina me tomou e foram
obrigados a isolar-me por causa do contágio. Tinha eu cinco anos."
Maria José Vieira de Sousa, in O Livro que já escrevi - Memórias, Maio de 2018, pp.6-8
Lindo
ResponderEliminarQue bonito e emocionante ❤️🥲
ResponderEliminar❤️🌸
ResponderEliminarQue beleza
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