sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Ansiada, amada e bem vinda, eu vinha juntar-me à família

I – Para lá do tempo
por Maria José Vieira de Sousa
 
O presente é o lugar onde vivemos, enquanto o passado é o lugar onde sonhamos.
  John Banville, Retalhos do Tempo, um  memorial de Dublin
 
"Naquele tempo, o meu nascimento já não era uma novidade. A minha mãe sabia-lhe  todos os segredos. Desde quando os primeiros sintomas se anunciavam até à explosão final de um outro ser, de uma outra vida. Há vários anos que vinha sendo mãe. Eu era o seu terceiro filho. Não era, em precisão e em objectividade, a novidade. Aquilo que faz de uma mulher a maior geradora de riquezas e que a eleva a um patamar de transcendência total e única: a descoberta da maternidade. A minha mãe  já a descobrira há alguns anos . Ansiada, amada e bem vinda, eu vinha juntar-me à família.
Preparara tudo com mão mestra. Encomendara um soberbo enxoval, embora aproveitando algumas peças da minha irmã que nascera havia dois anos. O berço fora remodelado apenas nas forras interiores. Era uma peça valiosa,  de madeira trabalhada, que vivia na família com vaidade. Fora e seria também o leito de todos os meus irmãos. O meu pai herdara-o quando casara. Fora a aposta para o sucesso de uma grande família. Sendo ele o mais novo de sete irmãos, tinha sido o último  a usá-lo. O berço competia-lhe e, de acordo com o vaticínio da minha avó paterna, era o símbolo da fertilidade futura.
Nesse dia aprazado , nasci de mansinho. Eu, uma singular criaturinha.  Esta, que, para lá do tempo, tenta reescrever uma história que findou. Pequenina, roliça, embrulhada em vermelho púrpura , já que nascer exige também esforço para quem quer aparecer. Vinha aumentar uma família predestinada a ser numerosa.  E foi.  Seis filhos que se sucederam, ano após ano, dando à casa e à  família o estatuto real  de grandeza. E essa grandeza não era apenas  quantitativa.  Éramos muitos numa grande  casa. Mas uma casa grande onde se  respirava uma buliçosa alegria e um eufónico ruído.
Nasci à noite. Quando o dia de um Agosto, quente e estival, estava a sumir do calendário, nesse ano glorioso. Era a véspera do dia da cidade. O meu pai, apostado em unir-me a uma data assinalável, decidiu registar-me  no dia seguinte. Pensava ele que esse gesto me traria fama e glória. Enganou-se ou enganei-o eu. Não fiquei na história dos notáveis, nem a isso me propus. 
Nasci com um sorriso a aflorar nos lábios. A minha mãe nunca se cansava de o referir. Sorriso que passou a ser um traço identificativo  e talvez o mais sedutor da minha personalidade. Mantive-o ao longo da vida. Era um sorriso único, realçava a minha mãe. Cativei-a infindamente. Ela tinha, porém, um sorriso maior do que o meu. Era a luz que sempre se acendeu desde o meu primeiro dia. Iluminava tudo à sua volta. E que falta me faz essa luz.( As mães não deveriam partir. Deixar-nos órfãos.) 
A azáfama que causou o meu nascimento  obrigou à requisição de familiares. A minha avó espanhola, andaluza de Sevilha, deixou Lisboa e rumou ao Norte. Era a minha avó materna. Recém viúva de um gentleman alemão. Efusiva e decidida, passou a comandar, com mão forte, os empregados da casa e os netos.  Isolou  a minha mãe e com ela ,lá fui eu, também, para os aposentos mais recônditos da casa. Pretendia resguardar-nos da agitação de uma casa habitada por adultos e por crianças e dos intensos ruídos que campeavam pela rua devido à festa da cidade. Nos primeiros dias, a minha mãe aceitou as regras impostas com algum agrado e também pela conformidade que tinham com os preceitos, então, usuais e seguidos pelas  parturientes. Os partos  eram feitos em casa. No entanto, havia  uma terapia definida para uma boa convalescença que passava pelo repouso e por uma  alimentação específica. À minha mãe, apesar de ter uma mãe bem esclarecida e aberta, foi-lhe totalmente aplicado esse tratamento.  Ao fim de meia dúzia de dias, o isolamento tornou-se insuportável. Era uma fatalidade a que minha mãe não queria  entregar-se. De rebelião em rebelião, decidida e  doce, ora filha dedicada , ora mãe independente, conseguiu amaciar a relutância da  minha avó e mudar-se para o quarto que lhe pertencia.
O calor e a confusão da casa em nada me perturbavam. Dormia feliz e cândida como compete a um recém- nascido. Estava na minha casa , no lugar que me haviam reservado. O quarto dos meus pais. Enorme, de tecto alto, mas acolhedor e confortável. Vivi nele os primeiros meses de vida  até completar um ano. Só lá voltei a dormir, quando a Escarlatina me tomou e foram obrigados a isolar-me por causa do contágio. Tinha eu cinco anos."
Maria José Vieira de Sousa, in O Livro que já escrevi - Memórias, Maio de 2018, pp.6-8

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