quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O Crítico, esse feixe de preconceitos…

O Crítico, esse feixe de preconceitos…
por Eugénio Lisboa
 
A critic is a bunch oh biases held
losely together by a sense of taste.
Witney Balliet
 
"Os críticos não foram feitos para serem amados. Criticar – mesmo quando a crítica é inteligente, sensível, serena e objectiva – é um acto que se reveste de alguma antipatia, não raro entendido, pelo criticado, como um acto de pura hostilidade. O crítico vê o defeito, a fissura, onde o autor preferiria que visse apenas o bem conseguido e o bem boleado da sua obra.
É certo que a história da crítica nos mostra, com uma frequência assustadora, o crítico míope, pouco sensível ao irromper de uma arte nova e forte (promotora de desassossego), isto é, o crítico preconceituoso e, mesmo, supinamente estúpido. É isso que justifica a artilharia pesada erguida, desde tempos remotos, contra a alegada obtusidade do homo criticus. Desde a famosa asserção do compositor finlandês, Sibelius, que dizia aos seus colegas maltratados pela crítica que se consolassem com o facto de nunca se ter erigido uma estátua a um crítico, o número de setas envenenadas endireitadas ao coração dos críticos não tem conta nem medida. A asserção mais corrente é no sentido de os acusar – aos críticos – de não lerem os livros que criticam ou de não se ocuparem, com a devida atenção, das obras que visitam e avaliam. Groucho Marx, esse génio da afronta bem humorada, dizia, pretendendo vestir ele próprio o trajo do crítico: “Levei tanto tempo a escrever a minha recensão crítica, que me não chegou o tempo para ler o livro.” A esta mesma escola de pensamento pertencia o alemão Lichtenberg, que, já no século XVIII, observava, escarninhamente: “Uma das maiores criações do espírito humano é a arte de criticar livros sem os ter lido.” Parecendo que não, é uma arte mais praticada – e com algum assinalado êxito – do que se imagina.
Mesmo ponderosos e ponderados filósofos, como o americano Ralph Waldo Emerson, não resistiram à tentação de apedrejar o oficiante da arte de criticar, nestes termos: “Desmantelar é o ofício dos que não são capazes de construir.” Esta é uma via muito seguida e anda muito à volta desta ideia: quem sabe faz, quem não sabe critica. As variações virtuosas em torno desta asserção são infinitas, por exemplo: “um crítico é um homem sem pernas que ensina a correr”, ou ainda: “um crítico é um homem que conhece o caminho mas não sabe conduzir”.
O dramaturgo inglês, John Osborne, autor do célebre, mas hoje bastante esquecido Look Back in Anger, homem mal disposto e vaidoso, costumava falar dos críticos, nestes termos: “Perguntar a um escritor o que pensa dos críticos é o mesmo que perguntar a um poste de iluminação o que pensa dos cães.” Não há dúvida de que, em face de sensacionais dislates que a História regista, os críticos têm andado mesmo a pedi-las… Mesmo os críticos que até são, de direito, grandes criadores, dão a sua inesperada derrapagem. Victor Hugo, por exemplo, não tinha pejo em afirmar que Racine era “um homem de segunda ordem”. E a suave e sempre maternal Mme de Sévigné postulava estas portentosas coisas sobre o mago da Phèdre: “Racine fez comédias para a Champmeslé, não é feito para os séculos futuros.” [A Champmeslé fora uma grande actriz, nascida em Rouen, que se fizera notada no papel de Hermione, da peça de Racine, Andromaque. Tornar-se-ia amante do dramaturgo  e o seu triunfo máximo verificar-se-ia na interpretação de Phèdre, na peça do mesmo nome, do grande dramaturgo e poeta.] Por outro lado, do próprio Victor Hugo, se disseram coisas enormes: Adolphe Thiers classificou-o, sumariamente, como um “tontinho” e o afamado romancista Paul Bourget, autor do muito celebrado Le Disciple, desabafava nestes termos: “Mestres detestáveis, os Hugo, os Michelet…” E o fogoso Léon Bloy, que passou de intemerato agnóstico a impetuoso e desarrumado católico (deram-lhe, como alcunha, o “pedinte ingrato”), referia-se ao autor de Os Miseráveis, em palavras deste gosto: “Este velho faisão Hugo… Que irão ser os funerais iminentes de Victor Hugo?... Vai-se, por certo, amotinar Paris à volta da derradeira camionagem  de uma podridão tão célebre.” O eminente Barbey D’Aurévilly também não fez questão de medir as suas palavras de afronta ao velho leão: “A partir das Contemplations, o Senhor Victor Hugo deixou de existir. Deve falar-se dele como de um morto.” Por outro lado, o pai do anarquismo, Proudhon, resumia assim o seu desprezo pelo autor de Hernani: “É preciso mais génio para ser barqueiro no Reno do que para fazer as Orientales.”
Falando de Verlaine, o furibundo e mui influente Maurras, cartilha inevitável de monárquicos raffinés, desvalorizava o poeta, nestas palavras destemidas: “Perdeu a língua, estragou o estilo e reduziu a nada o pensamento.” E, do mesmo Verlaine, o eminente e altamente respeitado Jules Lemaître, escreveu, professoralmente, estas coisas enormes: “Coisa inesperada, este poeta, que os seus discípulos consideram um artesão tão consumado, escreve como um aluno das escolas profissionais, como um oficial de saúde ou como um farmacêutico de segunda classe, que tivesse as suas horas de lirismo.” O mesmo – e sempre eminente – Jules Lemaître tratou assim o poeta do “Bateau Ivre”: “Se vos dissesse que este miserável Arthur Rimbaud acreditou que, pelo mais grosseiro dos erros, a vogal U era verde, não teríeis talvez coragem de vos indignar porque parece igualmente possível que ela seja verde, azul, branca, violeta e mesmo cor de besouro, de coxa de ninfa comovida ou de morango esborrachado.” Sobre Stendhal, as afrontas choveram, no seu tempo (hormis Balzac, bien sûr!) Nem o grande Flaubert lhe poupou o seu vitríolo: “Quanto a Beyle, nunca compreendi nada do entusiasmo de Balzac por semelhante escritor, depois de ter lido Rouge et Noir (suprema afronta: nem o título conseguiu citar correctamente!) Sainte-Beuve, claro, não poderia deixar de falhar: “Os seus personagens [de Stendhal] não são seres vivos, mas, antes, marionetes engenhosamente construídas.” Nem Shakespeare foi poupado à zoina do homo criticus. John Dryden: “Shakespeare é ininteligível.” Voltaire: “Um saltimbanco que tem saídas felizes.” Samuel Pepys, referindo-se a Sonho de uma noite de verão: “A peça mais insípida e mais ridícula que vi em toda a minha vida.” E Jules Renard, no melhor do seu génio concisamente medalhístico: “Primeira confissão: nem sempre compreendo Shakespeare. Segunda confissão: nem sempre gosto de Shakespeare. Terceira confissão: Shakespeare aborrece-me sempre.” E o autor de O Vigário de Wakefield, Oliver Goldsmith, ele próprio dramaturgo excelso, não era nada meigo para o bardo de Stratfford: “O monólogo de Hamlet, que tantas vezes ouvimos louvar em termos admirativos [passe o pleonasmo, digo eu, Eugénio Lisboa], é, em nosso entender, um amontoado de absurdos, quer consideremos a situação, os sentimentos, a argumentação ou a poesia.” Mas a cereja em cima do bolo talvez seja uma passagem de uma carta escrita pelo Abade Galliéni a Mme d’Épinay, na qual nos dá testemunho esplendoroso de até onde se pode ir, quando se quer, à viva força, encontrar um defeito ou simplesmente uma reserva. Falando de Mozart, reconhecia ser este “um milagre”, mas logo acrescentava, “travando” o seu próprio entusiasmo, que, sim senhora, era um milagre, mas “não passava de um milagre”!
São estes “deslizes” que acabam por dar mau nome à crítica, inculcando-se ser ela, pior do que desnecessária, contraproducente.
Isto, por um lado. Por outro, e em sentido inverso, há uma crítica muito “entusiástica”, quase incontinente no seu orgasmo laudatório, muito imperante entre nós, nos dias que correm, a qual promove, com facilitismo acrítico, qualquer novato mal saído do ovo, ao estatuto de imperador das letras. Mal conhecendo as regras básicas de uma escrita asseada, o jovem génio já não procura mais nada que não seja “inovar”, a todo o custo e a todas as horas, a linguagem, a cada flébil obrinha que debita. A língua portuguesa e as regras de um bem escrever e de um bom senso terráqueo, frequentemente bem necessário, andam numa fona: “inova-se” o que se não conhece de base, transgride-se sem se conhecer a utilidade da barreira, viola-se a sintaxe, antes de se ter percebido para que ela serve… “Inovar” é o mandato sagrado. E é substancialmente intransitivo: inova-se mas não se sabe o quê.  De um destes génios muito aclamados, muito fotografados e muito fraudulentos, já disse esta crítica facilitadora e com pouco sentido do ridículo que ele não sofria aguardar mais do que vinte anos pelo supremo galardão literário: o Nobel. Com uma máquina publicitária bem oleada e consideravelmente autista, há-de recebê-lo. E será bem feito!"
Eugénio Lisboa, em  artigo publicado na rubrica "Pro memoria", do JL, 2014

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