O Crítico, esse feixe de
preconceitos…
por Eugénio Lisboa
por Eugénio Lisboa
A critic is a bunch oh biases heldlosely together by a sense of taste.Witney Balliet
"Os críticos
não foram feitos para serem amados. Criticar – mesmo quando a crítica é
inteligente, sensível, serena e objectiva – é um acto que se reveste de alguma
antipatia, não raro entendido, pelo criticado, como um acto de pura
hostilidade. O crítico vê o defeito, a fissura, onde o autor preferiria que
visse apenas o bem conseguido e o bem boleado da sua obra.
É certo que
a história da crítica nos mostra, com uma frequência assustadora, o crítico
míope, pouco sensível ao irromper de uma arte nova e forte (promotora de
desassossego), isto é, o crítico preconceituoso e, mesmo, supinamente estúpido.
É isso que justifica a artilharia pesada erguida, desde tempos remotos, contra
a alegada obtusidade do homo criticus. Desde a famosa asserção do compositor
finlandês, Sibelius, que dizia aos seus colegas maltratados pela crítica que se
consolassem com o facto de nunca se ter erigido uma estátua a um crítico, o
número de setas envenenadas endireitadas ao coração dos críticos não tem conta
nem medida. A asserção mais corrente é no sentido de os acusar – aos críticos –
de não lerem os livros que criticam ou de não se ocuparem, com a devida
atenção, das obras que visitam e avaliam. Groucho Marx, esse génio da afronta
bem humorada, dizia, pretendendo vestir ele próprio o trajo do crítico: “Levei
tanto tempo a escrever a minha recensão crítica, que me não chegou o tempo para
ler o livro.” A esta mesma escola de pensamento pertencia o alemão Lichtenberg,
que, já no século XVIII, observava, escarninhamente: “Uma das maiores criações
do espírito humano é a arte de criticar livros sem os ter lido.” Parecendo que
não, é uma arte mais praticada – e com algum assinalado êxito – do que se
imagina.
Mesmo
ponderosos e ponderados filósofos, como o americano Ralph Waldo Emerson, não
resistiram à tentação de apedrejar o oficiante da arte de criticar, nestes
termos: “Desmantelar é o ofício dos que não são capazes de construir.” Esta é
uma via muito seguida e anda muito à volta desta ideia: quem sabe faz, quem não
sabe critica. As variações virtuosas em torno desta asserção são infinitas, por
exemplo: “um crítico é um homem sem pernas que ensina a correr”, ou ainda: “um
crítico é um homem que conhece o caminho mas não sabe conduzir”.
O dramaturgo
inglês, John Osborne, autor do célebre, mas hoje bastante esquecido Look Back in Anger, homem mal disposto e
vaidoso, costumava falar dos críticos, nestes termos: “Perguntar a um escritor
o que pensa dos críticos é o mesmo que perguntar a um poste de iluminação o que
pensa dos cães.” Não há dúvida de que, em face de sensacionais dislates que a
História regista, os críticos têm andado mesmo a pedi-las… Mesmo os críticos
que até são, de direito, grandes criadores, dão a sua inesperada derrapagem.
Victor Hugo, por exemplo, não tinha pejo em afirmar que Racine era “um homem de
segunda ordem”. E a suave e sempre maternal Mme de Sévigné postulava estas
portentosas coisas sobre o mago da Phèdre:
“Racine fez comédias para a Champmeslé, não é feito para os séculos futuros.”
[A Champmeslé fora uma grande actriz, nascida em Rouen, que se fizera notada no
papel de Hermione, da peça de Racine, Andromaque.
Tornar-se-ia amante do dramaturgo e o
seu triunfo máximo verificar-se-ia na interpretação de Phèdre, na peça do mesmo
nome, do grande dramaturgo e poeta.] Por outro lado, do próprio Victor Hugo, se
disseram coisas enormes: Adolphe Thiers classificou-o, sumariamente, como um
“tontinho” e o afamado romancista Paul Bourget, autor do muito celebrado Le Disciple, desabafava nestes termos:
“Mestres detestáveis, os Hugo, os Michelet…” E o fogoso Léon Bloy, que passou
de intemerato agnóstico a impetuoso e desarrumado católico (deram-lhe, como
alcunha, o “pedinte ingrato”), referia-se ao autor de Os Miseráveis, em palavras deste gosto: “Este velho faisão Hugo…
Que irão ser os funerais iminentes de Victor Hugo?... Vai-se, por certo,
amotinar Paris à volta da derradeira camionagem
de uma podridão tão célebre.” O eminente Barbey D’Aurévilly também não
fez questão de medir as suas palavras de afronta ao velho leão: “A partir das Contemplations, o Senhor Victor Hugo
deixou de existir. Deve falar-se dele como de um morto.” Por outro lado, o pai
do anarquismo, Proudhon, resumia assim o seu desprezo pelo autor de Hernani: “É preciso mais génio para ser
barqueiro no Reno do que para fazer as Orientales.”
Falando de
Verlaine, o furibundo e mui influente Maurras, cartilha inevitável de
monárquicos raffinés, desvalorizava o poeta, nestas palavras destemidas:
“Perdeu a língua, estragou o estilo e reduziu a nada o pensamento.” E, do mesmo
Verlaine, o eminente e altamente respeitado Jules Lemaître, escreveu, professoralmente,
estas coisas enormes: “Coisa inesperada, este poeta, que os seus discípulos
consideram um artesão tão consumado, escreve como um aluno das escolas
profissionais, como um oficial de saúde ou como um farmacêutico de segunda
classe, que tivesse as suas horas de lirismo.” O mesmo – e sempre eminente –
Jules Lemaître tratou assim o poeta do “Bateau Ivre”: “Se vos dissesse que este
miserável Arthur Rimbaud acreditou que, pelo mais grosseiro dos erros, a vogal U era verde, não teríeis talvez
coragem de vos indignar porque parece igualmente possível que ela seja verde,
azul, branca, violeta e mesmo cor de besouro, de coxa de ninfa comovida ou de
morango esborrachado.” Sobre Stendhal, as afrontas choveram, no seu tempo
(hormis Balzac, bien sûr!) Nem o grande Flaubert lhe poupou o seu vitríolo:
“Quanto a Beyle, nunca compreendi nada do entusiasmo de Balzac por semelhante
escritor, depois de ter lido Rouge et
Noir (suprema afronta: nem o título conseguiu citar correctamente!)
Sainte-Beuve, claro, não poderia deixar de falhar: “Os seus personagens [de
Stendhal] não são seres vivos, mas, antes, marionetes engenhosamente
construídas.” Nem Shakespeare foi poupado à zoina do homo criticus. John
Dryden: “Shakespeare é ininteligível.” Voltaire: “Um saltimbanco que tem saídas
felizes.” Samuel Pepys, referindo-se a Sonho
de uma noite de verão: “A peça mais insípida e mais ridícula que vi em toda
a minha vida.” E Jules Renard, no melhor do seu génio concisamente
medalhístico: “Primeira confissão: nem sempre compreendo Shakespeare. Segunda
confissão: nem sempre gosto de Shakespeare. Terceira confissão: Shakespeare
aborrece-me sempre.” E o autor de O
Vigário de Wakefield, Oliver Goldsmith, ele próprio dramaturgo excelso, não
era nada meigo para o bardo de Stratfford: “O monólogo de Hamlet, que tantas
vezes ouvimos louvar em termos admirativos [passe o pleonasmo, digo eu, Eugénio
Lisboa], é, em nosso entender, um amontoado de absurdos, quer consideremos a
situação, os sentimentos, a argumentação ou a poesia.” Mas a cereja em cima do
bolo talvez seja uma passagem de uma carta escrita pelo Abade Galliéni a Mme
d’Épinay, na qual nos dá testemunho esplendoroso de até onde se pode ir, quando
se quer, à viva força, encontrar um defeito ou simplesmente uma reserva.
Falando de Mozart, reconhecia ser este “um milagre”, mas logo acrescentava,
“travando” o seu próprio entusiasmo, que, sim senhora, era um milagre, mas “não
passava de um milagre”!
São estes
“deslizes” que acabam por dar mau nome à crítica, inculcando-se ser ela, pior
do que desnecessária, contraproducente.
Isto, por um
lado. Por outro, e em sentido inverso, há uma crítica muito “entusiástica”,
quase incontinente no seu orgasmo laudatório, muito imperante entre nós, nos
dias que correm, a qual promove, com facilitismo acrítico, qualquer novato mal
saído do ovo, ao estatuto de imperador das letras. Mal conhecendo as regras
básicas de uma escrita asseada, o jovem génio já não procura mais nada que não
seja “inovar”, a todo o custo e a todas as horas, a linguagem, a cada flébil
obrinha que debita. A língua portuguesa e as regras de um bem escrever e de um
bom senso terráqueo, frequentemente bem necessário, andam numa fona: “inova-se”
o que se não conhece de base, transgride-se sem se conhecer a utilidade da
barreira, viola-se a sintaxe, antes de se ter percebido para que ela serve…
“Inovar” é o mandato sagrado. E é substancialmente intransitivo: inova-se mas
não se sabe o quê. De um destes génios
muito aclamados, muito fotografados e muito fraudulentos, já disse esta crítica
facilitadora e com pouco sentido do ridículo que ele não sofria aguardar mais
do que vinte anos pelo supremo galardão literário: o Nobel. Com uma máquina
publicitária bem oleada e consideravelmente autista, há-de recebê-lo. E será
bem feito!"
Eugénio Lisboa, em artigo publicado na rubrica "Pro memoria", do JL, 2014
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