sábado, 30 de outubro de 2021

O País do Solidó


Estou a ler o último livro de J. Rentes de Carvalho, " O País do Solidó". Um livro muito  apelativo a começar pela capa . Quem se lembraria de escolher este título para um livro?! Apenas alguém que sabe  bem do que fala , neste caso, do que escreve. Não é difícil adivinhar o país. O título conduz-nos, de imediato, de tão pitoresco que é . Quase nos sentimos em falta por termos   permitido o seu desuso. O país do solidó aparece-nos vivo de personagens reais, retratos  de gente que só quem conhece a fundo a alma lusa é capaz de levantar  em tão genuína e típica  galeria. E é assim que nos confrontamos com homens e mulheres de várias índoles e origens, mas todos compõem personagens representativas da nossa gente. Gente ora trapaceira, ora audaz , ora generosa, ora alcoviteira, ora dramática, ora mesquinha, ora atrevida, ora apenas gente humilde e vivaz. 
Ao longo da apetitosa leitura,  deparamo-nos com essas personagens tais como o exemplificam estes expressivos pequenos excertos:
"No sábado depois do almoço" (p.29)
Se lhe viessem dizer que tinha acontecido a outro, por exemplo ao Sebastião da garagem, porque a mulher andou no psiquiatra e esteve uns tempos internada, iria acreditar. Ou  com a Amélia da Bexiga, que essa, às vezes por uma coisa de nada perde a cabeça e ninguém a aguenta. Agora a Lucinda? Em trinta e sete anos de casados, se fosse a contar teriam tido no máximo três, quatro zangas, e mesmo que procurasse seria incapaz de dizer porque tinha sido.
" O «panças», o padre  e os filhos da puta" (p.49)
(...) Passados uns três anos estão de volta à aldeia, brasucas no luxo, nos anéis , no falar e nos ademanes. Mas por artes que só poderiam ser de Belzebu - como a bruxa  de Tabuaço confirmou - o «Panças» reacende  na rapariga o fogo da carne, o ex-seminarista apanha-os a copular atrás do quintal. 
Grita, vai buscar a caçadeira, aponta, e avisadamente erra a pontaria. Há depois uma troca de murros e arranhões, aos gritos de socorro corre a vizinhança a acudir, escapam os adúlteros à fúria assassina, reza-se uma novena para que não haja desgraças.
(...) No enredo  entra aqui o pároco da vila. Ciente do calvário da desgraçada  e dos dinheiros do pai,  apieda-se dela, recolhe-a, e por entendimento mútuo não tarda a montá-la - o que se virá a saber por indiscrição de uma das varias «afilhadas» do santo homem.
" Dormi com o Urbano! "(p.53)
Sempre foi assim e não é agora que vai mudar. Vaidosa, egocêntrica, rapariga bonita em tempos muito idos, por razões que só ela sabe inventou-se um passado  em que os factos verificáveis engenhosamente se entrelaçam nos da sua imparável fantasia. Com a perícia de quem tem  a mentira no sangue, no momento preciso abre a mala e tira de lá cartas, papelada, retratos, fica com eles na mão, parece que vai mostrar, mas antes que se possa ver melhor e verificar, já ela mudou de assunto e, malabarista, recolheu as provas. 
Fala muito das suas vivências, das conspirações em que entrou e dos perigos que correu. Ganha estatura e modos  de grande actriz no palco, quando começa a gesticular e facilmente nos transporta para as ruas  de Lisboa «naquele fabuloso, inesquecível 25 de Abril».
Lá vem uma fotografia:
- Estão a ver? À esquerda, em cima do chaimite? Entre o rapaz que levanta os braços em V e o soldado com a metralhadora? Sou eu.

Num ou noutro texto, há também alusão a outras personagens que fizeram parte do itinerário deste narrador. E é assim que surgem as saudações holandesas que, de salutares e contidas manifestações de cortesia, passaram a efusivos e obrigatórios três beijos faciais. Um exagero sem explicação para quem não é adepto destes cumprimentos.
" A ameaça do beijo" (p.75)
(...) Dá-se o caso que desde há tempos ando a mentalizar-me para ver se consigo adoptar outra atitude em relação ao beijo. Ao beijo social.
Nasci numa família que não era de beijoquices, também poucos beijos dei às namoradas  da minha adolescência, porque  em maioria  eram elas as que ao primeiro sinal de cio ou de paixão cruzavam os braços sobre o peito e,  com ar espantado de quem se vê em perigo, recuavam  num modo de abrenúncio.
(...) Quando cheguei  à Holanda , país de frio no clima e nos costumes, nada de beijos e abraços, agradou-me o bom uso, infelizmente abandonado, de fazer uma pequena vénia a acompanhar o aperto de mão.
Desde há muito, porém, com os exemplos da TV hoje em dia todos esperam pelo menos três beijos , num cansativo e em muitos casos  pouco higiénico intercâmbio de chilreios e aplicações de saliva. Na medida do possível  vou evitando, fico-me pelo encosto da face e dou um passo atrás.

À medida que se avança a leitura,   somos impelidos a dizer que "O País do Solidó ", composto numa prosa descascada ,  límpida e saborosa,  nos apresenta  um polícromo  e magnifico retrato  de pessoas , costumes, peripécias  que nos encantam pela sua real  genuinidade. 
Sobre o Livro:
"O País do Solidó", de José Rentes de Carvalho
ISBN: 9789897227493
Edição/Reimpressão: 06-2021
Editor: Quetzal Editores
Encadernação: Capa mole
Páginas: 296
Tipo de Produto: Livro Coleção: Língua Comum
Classificação Temática: Livros em Português > Literatura > Crónicas
Preço: 17,70 €,  (14,16 € na Editora Quetzal )

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