Batalha Reis por Columbano |
Um exemplo e alguns nomes
por Eugénio Lisboa
O Património Cultural de uma nação, de umaregião ou de uma comunidade é composto portodas as expressões materiais e espirituais quea constituem, incluindo o meio ambiente natural.
Declaração de Caracas, 1992
"Em princípio
de 2005, recebi do Dr. Diogo Pires Aurélio, então Director da Biblioteca
Nacional, o pedido de um depoimento sobre património documental no estrangeiro,
para o caso, baseado na minha estadia em Londres, durante 17 anos (1978 –
1995), como conselheiro cultural da nossa embaixada, ali sediada.
Escolhi o que se passara com o espólio de Batalha Reis e fiz um curto texto, que a seguir
reproduzo, por me parecer que contém alguns ensinamentos sobre que vale a pena
meditar. Devo dizer, sem falsa modéstia, que me orgulho de ter salvo de um
provável desaparecimento este valioso espólio. Não foi o único. Também as
cartas de Trindade Coelho dirigidas por este escritor à docente alemã da universidade de Hamburgo, Louise Ey,
que me foram enviadas de Hamburgo para Londres pela Dra. Fátima Brauer, daquela
mesma universidade, salvando-as, no
último minuto, de serem varridas para o
lixo pelo pessoal da limpeza, foram por mim imediatamente remetidas para a
Biblioteca Nacional, onde actualmente se encontram (foram recentemente publicadas).
Segue-se o meu texto, publicado na Revista da Biblioteca Nacional:
Em Maio de 1978 fui colocado na Embaixada de Portugal em Londres, como Conselheiro
Cultural. E, dois ou três anos depois, numa vinda a Lisboa, em férias, fui
contactado pelo João Palma-Ferreira, então director da Biblioteca Nacional:
queria alertar-me para a existência, em Inglaterra, do espólio do antigo
diplomata, homem de letras e companheiro de geração de Eça de Queirós e Antero
de Quental, Jaime Batalha Reis. De facto, no seu périplo de diplomata, Batalha
Reis residira largos anos no país de Dickens e chegara a ser eleito fellow da "Royal Geographical Society". Os
seus papéis estariam, naquela altura, entregues a um sobrinho-neto do
diplomata, James Cinatti Burrell, a viver algures para os lados de Portsmouth, no sul de Inglaterra.
Os espólios (literários e outros) constituem quase sempre um enfadonho quebra-cabeças para
os herdeiros e para os eventuais necessitados de a eles terem acesso. No
processo – frequentemente kafkiano – muito se perde ou se destrói, por
suspeição, por ressentimento, por inveja, por desleixo, por pudor, por
provincianismo e até por pura ganância. Não, como se vai ver, no caso vertente.
Aqui, o problema parecia, desde logo, ser outro. Onde localizar o detentor do
espólio? Palma-Ferreira deu-me um palpite pouco auspicioso: o poeta Rui
Cinatti, relacionado com James Burrell, pelo
lado dos Cinatti (a que pertencia a mulher de Batalha), teria, algures, entre
os seus desarrumadíssimos papéis, o endereço de Burrell [solicitador algures
para os lados de Portsmouth]. Desanimado, procurei o poeta: mostrou a melhor
boa vontade do mundo e lembrava-se de ter o endereço entre as páginas de um
livro qualquer. Prometeu procurá-lo e enviar-mo para Londres… Parti, mais ou
menos convencido de que teria que seguir outras vias de pesquisa. Encontrar um
papel entre as páginas de um livro entre desarrumados milhares deles… Mais
valia nem pensar nisso. Todavia, para meu espanto e alegria, não muitos dias
depois do meu regresso a Londres, recebi uma carta [de Cinatti]com o endereço de James Cinatti
Burrell:
Fareham
Hants. PO 16 ORD
Tendo
entrado em contacto com Burrell – cujo telefone obtive, a partir do seu nome e
endereço – combinei com ele ir visitá-lo, para ver e receber o desejado
espólio. Na data combinada, meti-me no meu carro e dirigi-me a casa do sobrinho
de Beatriz Batalha Reis, no endereço que me fora facultado pelo co-fundador e
co-director dos Cadernos de Poesia. O
espólio que me foi mostrado continha-se todo no interior de uma daquelas
enormes caixas de chapéus que se usavam em viagem no século XIX [e, provavelmente, no começo do século
XX]: cartas (entre outras, de Eça de Queirós), manuscritos (um tratado de estética,
copiado com letra amorosamente desenhada), etc. E, fixada no tampo, cópia de
uma carta que, em tempos, Beatriz Batalha Reis (filha do diplomata) dirigira ao
nosso Ministério da Educação, oferecendo o espólio do pai. A carta, como não é
difícil de imaginar, ficara sem resposta [assim mo disse Burrell]. Alguém em
cuja secretária a missiva desaguara não sabia, talvez, quem era aquele
«emigrante» cuja papelada sem valor a filha queria impingir… Entre os papéis,
escrito em pequenas agendas e cintas de pacotes de jornais, o diário – interessantíssimo
e até empolgante – que Beatriz Batalha Reis mantivera durante o período da
revolução de 1917, em que Batalha Reis estivera como chefe de missão em S. Petersburgo.
Imediatamente me ofereci para ali voltar, acompanhado do nosso embaixador, Freitas Cruz, e
levar a caixa para a embaixada – o que foi feito, alguns dias depois. Mas havia
mais: pendurado numa das paredes de uma saleta sombria, um magnífico retrato de
Batalha Reis por Columbano. Perguntei a James Burrell, que me parecia um «bom
herdeiro, isto é, não ganancioso e mostrando um genuíno afecto e nostalgia por
aqueles seus antepassados (e, muito em particular, pela sua tia Beatriz), se
aceitaria vender o retrato de Batalha Reis ao Estado Português, mantendo o seu
usufruto, enquanto vivo. Disse logo que sim e disse ainda que não iria pedir
muito dinheiro, tal a satisfação que lhe dava saber que a obra de arte iria
para o melhor destino possível. Escrevi, imediatamente, de regresso a Londres,
uma informação de serviço, com a proposta de aquisição do quadro de Columbano e
um ofício de cobertura assinado pelo Embaixador, que aderira, com entusiasmo, à
ideia. A resposta ao ofício…ainda não chegou (isto é, não tinha chegado, até à
minha saída de Londres, em Maio de 1995). Não sei se James Burrell é ainda
vivo. E muito menos sei onde se encontra o belo quadro de Columbano. Ainda
comigo em Londres, o retrato do companheiro de Eça esteve em exposição na
Biblioteca Nacional por cortesia de Burrell e com o apoio logístico da
embaixada, em Londres. O interessantíssimo diário de Beatriz Batalha Reis – a
única parte do espólio que Burrell não doava à Biblioteca Nacional, pois queria
ficar com ele – foi emprestado a Freitas Cruz, que o queria ler e estudar e o
levou consigo para Madrid, onde foi colocado como chefe de missão. Tive o cuidado
de verificar que o fazia com a anuência de Burrell. Freitas Cruz viria a
falecer num acidente de automóvel, não muito depois da sua chegada a Madrid.
Fiquei, naturalmente, inquieto com o destino do diário, o que me levou, antes de
sair de Londres, a telefonar a Burrell, que me sossegou, dizendo que recuperara
os apontamentos da tia.
Esta «novela exemplar» ilustra, por mais de um lado, o nosso desleixo patrimonial: o espólio
de uma importante figura da famosa «geração de 70» é oferecido (sem
contrapartida) ao Estado Português, nos anos 60 (se a memória me não falha, em
1964). Quase 20 anos depois, ainda não havia resposta. Até para receber nos
fazemos caros! Por outro lado, um dos mais belos quadros de Columbano,
retratando a figura do companheiro de Eça e Antero, poderia fazer hoje parte do
nosso património cultural, a preço não muito elevado. Não foi julgado
conveniente…responder sim ou não! (…)”
Eugénio Lisboa, in Acta est fabula, Memórias - IV- Peregrinação: Joanesburgo. Paris.Estocolmo.Londres (1976-1995), Editora Opera Omnia, Outubro de 2014, pp.443-446
Nota de Livres Pensantes:
Sobre Jaime Batalha Reis, saiba mais AQUI
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