Eugénio Lisboa é um dos mais brilhantes intelectuais portugueses. Criador de uma vasta e multifacetada obra que se estende pela Crítica Literária, Ensaio, Poesia, Crónica, Memórias, Diários , este erudito escritor foi além de gestor de Companhias Petrolíferas, professor universitário e Conselheiro Cultural da Embaixada Portuguesa, em Londres, durante 17 anos consecutivos, de 1978 a 1995.
Da sua obra diarística , tem publicados dois volumes. O verbete que vamos publicar pertence ao segundo volume , quando ainda exercia diplomacia cultural , em Londres.
"Londres, 12.12.1993 (Domingo) – Uma semana sem grandes incidentes. Segunda feira, o Saramago veio à embaixada falar a cerca de 120 pessoas sobre o tema: “Da canção ao romance, do romance à canção”. O tema é interessante e, de facto, algum romance parece dar mostras de querer regressar à vastidão, à compreensividade e ao informe da canção de gesta original. Mas é mais do que duvidoso que todo o romance moderno evidencie essa vocação. E é também duvidoso que só agora ela se esteja a manifestar. O romance, como grande construção ambiciosa, capaz de abarcar toda a sabedoria de uma época, existiu no século XVIII, no século XIX e na primeira metade do século XX.
Enfim, o Saramago.
Pena que as perguntas, no final da exposição, tenham sido quase todas um tanto paroquiais e se tenham dirigido mais ao guru do que ao escritor (como muito bem observou, dias depois, em conversa comigo, o Luis de Sousa Rebelo).
Esta semana, tivemos cá ainda a visita do Luis Santos Ferro, sempre vivo, mordaz e eloquente. Falámos disto e daquilo e fomos ao teatro ver uma peça do Pinter (Moonlight), elogiadíssima pela crítica. A mim, deixou-me un peu sur ma soif. Ele não corta a angústia e o pathos com o humorismo ou com a farsa, à Pirandello. Ele corta-os com gelo afiado. Ameaça-nos… com quê? Agride-nos, para quê? O mistério, a ameaça, a dureza, a agressão parecem não vir de lado nenhum e não levar a lado nenhum. Talvez seja isso mesmo que ele nos quer dizer. Mas então?
Descubro um grande ensaísta americano: Joseph Epstein, de quem leio um livro intitulado Partial Payments – Essays on Writers and their Lives. Inteligente, invulgarmente perceptivo, sereno, urbano, profundo, eminentemente civilizado. Belos e corajosos e lúcidos e subtis ensaios sobre Maugham, Larkin, Barbara Pym, V. S. Naipaul, Tcheckov. Um espírito raro, um modelo de ensaísta, brilhante sem ser vistoso, claro mas profundo, corajoso mas sereno.
E leio também, com prazer, o Livro de Prefácios, de Borges.
Neste fim de semana, na televisão, revejo um filme de Franklin Schafner que não via havia mais de vinte anos e que não pouco me impressionara: The War Lord, com Charlton Heston. Parte da magia foi-se, mas deve ser da idade. Em suma, gostei de rever mas não voltei completamente ao encanto da primeira vez.
Esteve cá também o Vasco Graça Moura, com quem negociei, na companhia do Kim Taylor, a concessão de uma bolsa de investigação ao John Villiers, para escrever uma biografia do Vasco da Gama. Associar-se-iam ao Vasco Graça Moura a Fundação Oriente e a Gulbenkian. Vamos ver.
Na sexta feira (dia 10), almoço na embaixada, oferecido ao Ferrer Correia, actual presidente da Gulbenkian. Oitenta e tal em cada pé: a cair da tripeça. Agradece o almoço, num discurso cheio de floreados à antiga, atapetado de vocábulos de antanho – “recepção fidalga” - que deixam a filha da Ana Gomes (minha colega) de boca entreaberta: a nova geração não está habituada a estas subtilezas.
Toda a semana, a Igreja Anglicana a digladiar-se por causa do Príncipe Carlos. Se deve ou não deve ser rei, se deve ou não deve ser Chefe da Igreja Anglicana. Para mim, é tudo o sexo dos anjos. Para começar, não levo a sério uma Igreja que tem como seu chefe… o rei. Só os ingleses são capazes destas “sínteses”. Ou destes “compromissos”. Tudo, é claro, por causa de o Carlos ter dormido (e gostado) com a Camila Parker Bowles. Sim, acho que o pior foi ter gostado: o sexo não é para isso.
O Jim dorme a meu lado, felina, pacífica e extasiadamente. Já lhe disse: na próxima encarnação, quero eu ser o gato dele, sendo ele, portanto, o meu dono. Olhou-me com desprezo felino."
Eugénio Lisboa, in "Aperto Libro, Páginas de Diário II- 1991-1994", Opera Omnia editora, Outubro de 2019, pp.184,185,186
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