Mário de Carvalho |
por Ana Vitória
"Escritor borralheiro", preocupado e pessimista, Mário de Carvalho receia que civilização possa autodestruir-se.
Mário de Carvalho é um cultor da plasticidade da língua portuguesa. "Limitá-la ao vocabulário básico é prestar-lhe um mau serviço", diz. Lançou a primeira obra em 1981, mas só se reconheceu como escritor ao décimo livro. Aos 75 anos, já publicou mais de trinta títulos, entre romance, novela, ensaio, teatro e conto - como "Epítome de pecados e tentações", que acaba de chegar ao mercado e que serve de pretexto para esta conversa com o JN. O livro, diz, corresponde à sua "perplexidade sobre as diferentes formas como as pessoas encaram o sexo e se relacionam".
A pandemia atrasou a saída de "Epítome de pecados e tentações". Sentiu necessidade de escrever sobre o confinamento?
Não me sinto nada tentado a escrever sobre esta situação, que é incómoda. Aborrece-me ter de andar de máscara, não poder estar à vontade com os outros.
Volta a escrever sobre o sexo, como em "Ronda das mil belas em Frol". A que se deve a insistência?
As relações são difíceis. Há sempre qualquer coisa que não é compreendida. Homem e mulher encaram o sexo de forma diferente, o que excita um não excita o outro. Um conta tudo, outro nada. Tentei abarcar um leque de situações que correspondem às minhas perplexidades e interrogações sobre como somos tão diferentes e tudo é tão variado.
Algum desses contos foi pensado para romance?
Não. Há dois contos longos que podem ser considerados novelas. A situação do primeiro conto, que trata de uma paixão devastadora e infeliz, como são todas as paixões, e cujo personagem recorda os tempos antes de viver no lar, poderia, de facto, ser um romance. Mas já o meu livro "A sala Magenta" (2008) também não se afasta muito desse tema.
Há quem o considere um autor difícil, pelo cuidado com a língua e pelo vocabulário que obriga à consulta de dicionário.
Mas isso também acontece comigo, também vou ao dicionário quando não conheço uma palavra. A nossa língua é extremamente expressiva, rica e variada. Abre muitos campos. Fechá-la e limitá-la ao vocabulário básico é um mau serviço que se presta à língua. Também não estou disposto a renunciar a todos os recursos que são postos ao meu alcance.
Usando um dos termos deste livro, isso não são caganifâncias, pois não?
O leitor e eu temos de encontrar-nos a certo ponto. As televisões e o jornalismo têm fechado muito o léxico.
Há algo de autobiográfico neste livro?
Há muitas coisas que resultam de algo que foi dito, vivido ou suspeitado. E muitas inventadas, mas a partir da vida real. Os escritores têm de estar atentos ao mundo que os rodeia, captar o que veem como material para ser usado mais tarde.
Como vê a crítica literária em Portugal?
Há pouca crítica literária que mereça ser considerada. Contam-se os casos honrosos pelos dedos da minha mão... amputada. Há um fenómeno muitíssimo estranho nos jornais, que é o da permanência absoluta dos livros de língua estrangeira. A literatura portuguesa não fica a dever muito a outras. A obsessão em fazer recensões de livros estrangeiros suscita muita desconfiança.
Por que razão acha que isso acontece?
A hipótese mais inocente é que se trata de pura saloiice. Está relacionado com a redução de tudo ao conceito e vocabulário básicos.
Não é adepto de festivais literários, pois não?
Não sou muito de viagens nem de grupos. Sou um escritor borralheiro. Tenho o meu circuito e cada vez menos gosto de viajar. Só de vez em quando lá irei a uma coisa ou outra. Mas não faço muito por isso."
Ana Vitória, em artigo publicado no JN de 12.08.2020
Ana Vitória, em artigo publicado no JN de 12.08.2020
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