Entendamo-nos bem. Ninguém pode ler tudo
por Fernando Pessoa
"Entendamo-nos bem. Ninguém pode ler tudo, sequer sobre um só assunto. É, pois necessário, muitas vezes, citar em segunda-mão, quando não ainda mais translatamente. Não há nisso charlatanice, desde que estejamos convencidos da competência e da probidade do primeiro citador; nem é necessário que estejamos sempre indicando que não citamos do original, enchendo as páginas, que escrevemos, de «citas em segunda-mão», ociosas e importunas. Se eu citar, ainda que no original, uma frase grega ou alemã, não vem a propósito dizerem-me, o que é aliás verdade, que não sei grego nem alemão. E preferível citar em português, até para conveniência do leitor.
Posso traduzir, através de idioma intermédio, qualquer poema grego, desde que consiga aproximar-me do ritmo do original, para o que basta saber simplesmente ler o grego, o que de facto sei, ou que obtenha uma equivalência rítmica.
D'essa maneira traduzi alguns poemas da Antologia Grega. A única coisa a perguntar, a quem saiba grego e português, é se a minha tradução está certa quanto ao sentido do poema, e se consegue uma equivalência rítmica suficiente. A traduções d'essas posso legitimamente apor um «tradução de F.P.», sem que tenha que acrescentar «através do inglês» ou outra frase de igual teor. O que não posso é pôr «traduzido do grego», ou de qualquer modo insinuar que assim traduzi. O que não posso é criticar uma tradução alheia da mesma espécie, excepto como se criticasse um original português, e muito menos posso apor notas sobre o texto grego à minha tradução.
Se amanhã aparecer, sob o meu nome, um opúsculo sobre a cirurgia dos rins, ou uma gramática do sânscrito, induzo necessariamente toda a gente a supor que sei de cirurgia dos rins ou que conheço o idioma devanagrico."
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
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