domingo, 30 de agosto de 2020

Ao Domingo Há Música


Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros
                                                                   Clarice Lispector

A Música chega com o peso que cada um de nós lhe der. Para mim,  tem  o peso de muitas palavras que não direi, de alguns sonhos que não partilharei e da vida que não sei se terei...Mas a Música tem também o imaterial peso da saudade  que me pode levar  onde eu quiser.

Bon Iver , em "Michicant", na  Sydney Opera House, no  Vivid Live Festival.  Um Festival com a duração de duas semanas que celebra a música contemporânea . É considerado o maior festival de luz , de música e ideias do mundo.
Nick Cave e Warren Ellis , em  "Push the Sky Away", num espectáculo ao vivo , na  Sydney Opera House.  Nick Cave e  Warren Ellis  prestam  uma triunfante rendição a esta canção, acompanhados pela  soprano Julie Lea Goodwin, pela Sydney Symphony Orchestra e pela Sydney Philharmonia Choirs, sob a direcção do Maestro Nicholas Buc.
Bon Iver, em  "Heavenly Father" (Acapella), na  Sydney Opera acompanhado pelo British folk trio,  The Staves, no  Vivid Live Festival. 

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A peste de Bocaccio em 1348


Neste ano de 2020, vimos chegar uma peste que lançou as garras e nos reteve em confinamento por meses e continua à solta por aí.
Não é inédito este tempo pestilento e doente . Há mais de seiscentos anos  grassou por Itália e dizimou Florença.  Boccacio (Junho de 1313-Dezembro de 1375) descreve-o, logo  no início do seu inesquecível "Decameron". É fácil descobrir as similitudes. Tal como agora, veio do Oriente. Eis , então, um excerto dessa obra: 

" Já tinha chegado o ano de 1348 da fecunda encarnação do filho de Deus, quando a cidade  de Florença, nobre, entre as mais famosas da Itália foi vítima da mortal epidemia. Fosse  a peste obra de influências  astrais  ou a consequência  das nossas iniquidades e que Deus , na sua cólera, a tivesse precipitado sobre os homens, como punição dos seus crimes , a verdade é que ela se havia declarado  alguns anos antes  nos países do Oriente, onde arrastara para a perda inúmeras vidas humanas. Depois prosseguindo a sua marcha  sem se deter , propagou-se , para nosso mal, na direcção do Ocidente. Todas as medidas sanitárias foram sem efeito.  Por mais que os guardas especialmente encarregados disso limpassem a cidade dos montes  de imundície, por mais que se proibisse a entrada a todos os doentes e se multiplicassem as prescrições de higiene, por mais que se recorresse às súplicas e às orações que se usam nas procissões e àquelas, de outro género de que os fiéis se desobrigam para com deus, nada deu resultado . Logo nos primeiros dias primaveris do ano a que me referi, o terrível flagelo começou, de maneira surpreendente, a manifestar as suas dolorosas devastações.
(...)A intensidade da epidemia aumentou pelo facto de os doentes contagiarem , no seu contacto diário, os indivíduos ainda sãos, tal como o fogo quando se aproxima de uma porção de matérias secas ou gordas. E o que ainda propagou mais o desastre foi não só  o facto  de a prática com os doentes comunicar  o mal  e dar a  morte às pessoas sãs, mas o simples contacto com roupas  ou o que quer que fosse que os pestíferos tivessem tocado ou manejado , pois através de tais objectos logo a peste se transmitia a quem deles se servisse.
(...) Esses acidentes e muitos outros do mesmo género, senão piores, fizeram nascer, naqueles que continuavam vivos , pânicos e obsessões de diferentes espécies, que em geral conduziam à mesma atitude cruel: fugia-se ao doente e a tudo o que o cercava. No pensamento íntimo de cada um, era este  o meio de se conseguir a própria salvação. Alguns pensavam que uma vida sóbria e a abstenção de tudo o que fosse supérfluo se impunham para combater ataque tão terrível. Formavam pois a sua brigada e viviam afastados dos outros. Agrupados e reclusos em casas,  onde não havia doentes e onde a vida era mais agradável, usando com a maior moderação comidas delicadas e vinhos requintados, fugindo a todo e qualquer deboche , não deixando ninguém falar-lhes, recusando-se a ouvir qualquer notícia vinda do exterior a respeito de mortes ou doenças , passavam o tempo a ouvir música ou entretidos com outros prazeres castos. Gente havia, porém, que se conduzia de modo bem diverso. Achavam esses que entregarem-se por completo às bebidas e à licenciosidade , andarem galhofando pela cidade, de canções  nos lábios , satisfazerem as paixões  na medida do possível , rindo  e troçando  dos mais tristes  acontecimentos , era o mais seguro remédio contra um mar tão atroz.
(...)Ao lado dos indivíduos que praticavam os  dois tipos de vida a que me referi,  muitos havia  que adoptavam um meio termo. Menos preocupados do que os primeiros em se restringirem a comer pouco , nem por isso se abandonavam aos excessos de bebida e ao deboche dos segundos.  Utilizavam tudo com conta , peso e medida e segundo as suas necessidades. Em vez de se fecharem dentro de casa, circulavam pelos arredores , tendo nas  mãos umas  vezes flores , outras ervas  aromáticas, outras várias especiarias.  Levavam-nas por vezes às narinas  e consideravam excelente preservar o cérebro aspirando perfumes , porque  a atmosfera parecia corrompida e envenenada pelo cheiro horrível dos cadáveres , dos doentes e dos medicamentos. 
(...) Quaisquer que fossem os princípios seguidos , muitos eram atingidos , e em qualquer parte. Eles próprios , antes de caírem doentes , tinham dado o exemplo  aos que continuavam sãos.  Estavam pois abandonados e definhavam por todo o lado . Devo acrescentar que os cidadãos fugiam  uns dos outros  e que ninguém  se preocupava  com os vizinhos? As visitas entre parentes, quando aconteciam , eram raras  e feitas de longe.  O desastre pusera tanto terror  no coração  dos homens  e das mulheres  que o irmão abandonava  o irmão, o tio o sobrinho, a irmã  o irmão, muitas vezes  mesmo a mulher e o marido. E até  - o que é ainda mais forte e quase inacreditável  - os pais e as mães evitavam ir ver  e auxiliar os filhos , como se já não lhes pertencessem.
(...) Era uso - uso este que ainda persiste em nossos dias  - que as senhoras , primas  ou vizinhas  de um morto, se reunissem em casa dele , a fim de juntar as suas lágrimas às dos parentes mais próximos. (...)Os padres  apareciam também, conforme   a categoria social  que o defunto tivera.  Depois , as pessoas da mesma condição , carregavam o homem aos ombros  e transportavam-no para a igreja que ele escolhera antes de morrer. Mas quando a  epidemia  começou a manifestar a sua violência, tais práticas  cessaram totalmente  ou em grande parte. Em seu lugar, estabeleceram-se outras.  Muitas  pessoas  morriam sem ter à sua volta numerosa assistência  feminina.  Muitas morriam  mesmo sem testemunha. 
(...) Pegavam no caixão  e transportavam -no rapidamente, não à igreja, que o defunto designara  antes da morte, mas geralmente à que ficava mais perto. Quatro  ou seis padres  seguiam à frente , brandindo  um magro luminar , que às vezes  faltava por completo. Com o auxílio dos gatos-pingados , e sem dar ao trabalho de um ofício demasiado longo ou solene, punham o mais depressa possível  o caixão na primeira sepultura  vazia que encontravam.
(...)A crueldade do céu  e talvez  a dos homens , foi tão rigorosa, a epidemia  grassou de Março  a Julho  com tanta violência  , uma multidão de doentes  foi tão mal socorrida , ou mesmo, em consequência do  medo que inspirava  às pessoas  saudáveis , abandonada  numa indigência  tal , que se calcula com segurança  em mais de cem mil  o número de homens que perderam a vida  dentro dos muros da cidade de Florença. "
Bocaccio , in " Decameron", Círculo de Leitores,  pp. 16-24

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Petrarca e Boccacio

"A Idade Média deu lugar ao Renascimento quando, na Sexta-Feira Santa de 1327, numa igreja da cidade papal de Avinhão, Francesco Petrarca viu Laura di Sade, cuja delicada beleza, duplicada pela modéstia, fê-lo esquecer todas as outras divindades.
Laura recebeu com calma a adoração do poeta e deu à sua paixão todo o estímulo da negação: ao longo dos 26 anos que se seguiram, Petrarca compôs 207 poemas - todos sobre ela - na mais requintada das músicas e na mais requintada das línguas.
(...) Os poemas de Petrarca , a sua sensibilidade à beleza feminina, à natureza, à literatura e à arte  deu voz  a um estado de espírito italiano básico e a sua busca apaixonada  e a tradução dos manuscritos clássicos tornou-o estimado entre os poetas e os prelados de toda a Europa Ocidental.
Em Roma, a 8 de Abril de 1341, uma procissão colorida de jovens e senadores escoltou Petrarca até à escadaria do Capitólio, e aí lhe colocaram uma coroa de louros sobre a cabeça. A partir desse dia reis e papas  receberam-no com prazer  nas suas cortes como o príncipe reinante das letras europeias.  Boccacio equiparava-o aos "antigos ilustres", e Itália proclamava que Virgílio havia renascido.
Boccacio tinha nessa altura 28 anos.  Começara a sua vida em Paris, em consequência de um entendimento cordial não premeditado entre o seu pai , um mercador  florentino e uma rapariga francesa de princípios libertinos. O seu nascimento não programado e a sua origem semigaulesa influenciam provavelmente o seu carácter  e o seu estilo.
Em 1331 - quatro anos antes do êxtase de Petrarca -, Boccacio apaixonou-se quando rezava numa igreja napolitana. A dama era a bela Maria d'Aquino, conhecida pela sua piedade e o seu cabelo dourado. Boccacio chamou-lhe  Fiammeta - pequena chama - e aspirava chamuscar-se no seu fogo. Durante cinco anos , Boccacio perseguiu-a  com a sua poesia e a sua prosa.  Maria deixou-o ficar à espera  até que as outras bolsas se esgotaram, e depois aceitou-o até que a sua bolsa se esgotou. Boccacio deixou Nápoles e instalou-se em Florença. 
Aí, em 1348, chegou o grande flagelo da Peste Negra, que matou metade dos seus 100 mil habitantes. O  Decameron de Boccacio começa com uma descrição assustadora  da mortalidade : quase todas as famílias de Florença estavam condenadas a assistir à morte dos seus membros, vendo partir os infectados para morrerem anónimos , nas  ruas. Em Decameron, Boccacio inspira-se na peste: sete jovens mulheres , parentes ou vizinhas, encontram-se numa igreja e combinam sair juntas  de Florença , com as suas criadas, e esperar numa villa do campo até que a peste desapareça. Como maneira agradável de mitigar o aborrecimento, elas convidam três amigos para as acompanhar. Instalam-se numa casa espaçosa e, para passar o tempo, decidem todos os dias contar uma história , à vez. Como ficaram juntas dez dias , contaram cem histórias.  Foi por isso que Boccacio intitulou a sua colecção de Decameron , que em grego significa " dez dias" ( deka hemerai). Algumas destas novelas  são cruamente sensuais , como a do viril Masetto, que tomava conta de um convento  de freiras; algumas são histórias de amor virtuoso, como a da paciente Griselda; algumas têm um conteúdo filosófico, como a lenda dos três anéis igualmente preciosos, simbolizando  os credos judaico, cristão e muçulmano. Deduzimos  que Boccacio representava uma classe média  que estava a perder a fé  num cristianismo literal, e até mesmo no código moral cristão.
Assim, logo na sua infância, o Renascimento propunha prazeres no mundo terreno em vez dos prazeres hipotéticos de um paraíso pós-morte.  O Renascimento restaurou não só a literatura da Antiguidade clássica, mas igualmente a sua procura de uma liberdade hedonista. Foi, em parte, a libertação pagã dos sentidos  de pois de mil anos de disciplina moral assente em crenças sobrenaturais. " 
Will Durand , in  "Breve História da Civilização", Editores Clube do Autor, S.A., Lisboa, Portugal, 1ª edição, Outubro de 2014, pp. 213-216

terça-feira, 25 de agosto de 2020

A esperança na poesia de Manoel de Andrade

Os Poemas para a Liberdade, de Manoel de Andrade: A poesia como arma 1
por  Alberto Moby 2
 "A editora paulistana Escrituras lançou  ( 2009) o livro Poemas para a Liberdade, do poeta catarinense Manoel de Andrade, do qual já havia publicado, em 2007, Cantares. 
Poemas para a Liberdade é, na verdade, uma reedição. Publicado inicialmente na Bolívia, no Peru e na Colômbia, em 1970, e no Equador, em 1971, é um conjunto de poemas que falam da luta armada e cantam a saga guerrilheira na América Latina dos anos 1970, então controlada por ditaduras militares. Independentemente do seu valor histórico inestimável, Poemas para a Liberdade é uma obra da qual, apesar de tudo, transbordam delicadeza, amor, esperança e por isso consta de vários catálogos de literatura latino-americana e seus poemas, de várias antologias, como Poesía Latinoamericana – Antología bilíngue, publicada em 1998, pela editora Epsilon, do México, cujas páginas o autor compartilha, entre outros, com poetas consagrados como o uruguaio Mario Benedetti, falecido este ano. Os mais jovens talvez não saibam. Os que sabem nem sempre se lembram. E os que lembram provavelmente não sintam mais aqueles sentimentos angustiantes e ao mesmo tempo cheios de esperança que moviam milhares de jovens na América Latina em busca de uma sociedade justa e fraterna. Falo dos chamados “anos duros” da ditadura militar no Brasil, logo acompanhada por outras ditaduras, e das lutas de resistência, com as armas possíveis e as imaginadas, contra o autoritarismo, a falta de liberdade e a barbárie que entre as décadas de 1960 e 1990 povoaram boa parte da América Latina. Entre esses jovens havia um, chamado Manoel de Andrade, vindo do interior de Santa Catarina, que começou a se destacar entre os colegas (na época ficaria melhor o termo “companheiro”) de Curitiba, onde decidiu viver, pelo carácter engajado de sua poesia. Lembre-se que “engajado”, naquela época, era sinónimo de “subversivo” e, quase sempre, também de “comunista”, “palavrões” que, naqueles tempos de Guerra Fria, podiam também ser traduzidos como o “Mal”, em oposição ao “Bem”, representado pelo “mundo livre”, isto é, os EUA e seus aliados (quase sempre muito mais por medo do que por afinidade ideológica). Em 1965, Manoel de Andrade, com a sua poesia militante, ganhou o 1º prémio do Concurso de Poesia Moderna, do Centro de Letras do Paraná. No mesmo ano, participou da histórica Noite da Poesia Paranaense, ao lado de poetas hoje consagrados como Helena Kolody, João Manuel Simões e o grande poeta e compositor Paulo Leminski, no teatro Guaíra, de Curitiba. Em 1968, aos 28 anos, é apontado pela imprensa paranaense como uma dos seus três grandes destaques literários, junto com Jamil Snege e o contista Dalton Tervisan. No mesmo ano, a Revista Civilização Brasileira publica o seu poema “Canção para os homens sem face”:

Canto a vergonha de ser brasileiro num tempo defecado
canto meu povo
e se ainda não canto meu país,
é porque não sei cantar na presença de homens indecentes;
eu canto sobretudo para aqueles que preservaram seu sonho,
para os que ousaram lutar e morrer por ele,
canto a memória de um guerrilheiro argentino.

E eis que meu verso se endurece

para que eu cante meu melhor combate
e só assim posso cantar para os irmãos e camaradas
recrutando companheiros para a luta…
e quando meu canto é feito para os ouvidos dos justos,
eu canto sem temor […]

[…] Como guerreiros invisíveis

meus versos se infiltrarão no país dos corruptos
pelas fronteiras das entrelinhas
e renascerão nos lábios dos militantes
ora como uma flor, ora como um fuzil.

Talvez, mesmo que esses versos façam algum sentido para você e mesmo que possam ser identificadas, lá no distante 1968, vergonhas muito parecidas com as de hoje, e que possamos também reconhecer este nosso tempo, de democracia e liberdade, como um “tempo defecado”, de “homens indecentes” ou um “país dos corruptos”, talvez seja quase impossível imaginar o que significava isso naqueles “anos de chumbo”. Outras palavras do poema expressam melhor que clima era aquele: eram os tempos dos “que ousaram lutar e morrer”, que evocava “a memória de um guerrilheiro argentino” – Ernesto Che Guevara, morto no dia 8 de Outubro do ano anterior, em nome de uma luta que se pretendia internacional contra a injustiça do capitalismo e, particularmente na América Latina, contra a opressão dos ditadores. Por isso o poema de Manoel de Andrade era feito de versos para “cantar para os irmãos e camaradas”, “recrutando companheiros para a luta”, “ora como uma flor, ora como um fuzil”. Não podia ter dado outra coisa. Em Março de 1969, perseguido pelo regime militar, principalmente pelo facto de ter feito panfletagem de seu poema “Saudação a Che Guevara”, Manoel de Andrade foge do Brasil. Nessa época a sua poesia já começava a ser conhecida por todo o país por meio de jornais e revistas literárias. Nos perigosos versos que lhe valeram a fuga do país, ele dizia:

No nosso ódio indigesto
na voz da rebelião,
na passeata de protesto
em cada homem sem pão,
em cada cidadão livre
que é metralhado na rua,
no seio de cada greve
no salário de quem sua,
no estômago que late
na opressão e na fome
nesse mal que nos consome
como farol claro e forte
surge tua imagem, teu nome
teu braço de guerrilheiro
teu sonho e tua verdade
nos apontando o roteiro
em busca da liberdade.

A força e a contundência desses versos, hoje, podem parecer ingenuidade, coisa de uma juventude demasiadamente crédula, especialmente empolgada com o sucesso da Revolução Cubana, em Janeiro de 1959, e com seu herói mais charmoso, Che Guevara, filho de uma família de classe média argentina que, depois de percorrer toda a América Latina, conhece, no México, os irmãos Fidel e Raúl Castro e, com um pequeno grupo, resolve se meter numa “aventura” que por acaso deu certo. Mas, insisto, não é possível ter uma visão minimamente clara daqueles jovens (que, aliás, se transformaram em alguns de nós actualmente ou já nos pais de muitos outros que agora lêem esse meu post) e, consequentemente, da poesia de Manoel de Andrade sem nos fixarmos na época em que tudo isso aconteceu. Ou, então, como explicar que um simples poema pudesse ser o principal responsável pela saída de alguém do próprio país, deixando para trás família, amigos, projectos, o curso de uma vida? Mas a vida de cavaleiro andante de Manoel de Andrade estava só começando. Ao deixar o Brasil foi para a Bolívia, onde continuou escrevendo e divulgando os  seus poemas engajados. Em 1970 é lançado, pelo Comitê Central Revolucionário da Universidad Mayor San Andrés, em La Paz, seu primeiro livro, Poemas para la libertad, publicado também pelas federações universitárias de Cuzco e de Arequipa, no Peru, que foram consumidas e reeditadas em todo o meio estudantil do Peru, cujos exemplares se espalharam por toda a América do Sul, levados por mochileiros e estudantes latino-americanos. Mas a ampla aceitação de seus poemas pela juventude universitária não deram a Manoel de Andrade nenhuma tranquilidade. Muito pelo contrário, essa aceitação representava ainda mais perigo, perseguições, fugas. Expulso da Bolívia em 1969, antes da publicação de seu livro, foi para o Peru, de onde também foi expulso, no ano seguinte, e para a Colômbia, onde, no mesmo ano, sofre o mesmo destino. O alcance da sua militância política pode ser avaliado pelo destaque que na época os mais importantes jornais da América Latina e as maiores agências internacionais de informações, como a AP e a UPI, lhe deram. Numa época em que não havia telefones celulares nem internet, pode-se imaginar o perigo que seus poemas revolucionários podem ter representado. Conhecido por promover debates, ministrar palestras e declamar seus versos em universidades, teatros, galerias de arte, festivais de cultura, congressos de poetas, sindicatos, reuniões públicas, privadas e clandestinas e até no interior das minas de estanho da Bolívia, Manoel de Andrade e seus versos não podiam ser vistos como nada menos do que muito perigosos. Por isso o governo peruano o expulsa do país “por realizar actividades que constituem um manifesto perigo para a tranquilidade pública e segurança do Estado”. Mas a aventura de Manoel de Andrade não pararia aí. Em 1971, estava no México, onde, entre outras coisas, se apresentou no Instituto Mexicano-Cubano; participou das comemorações do 37º aniversário de morte do herói revolucionário nicaraguense Augusto César Sandino; viajou para a Califórnia, nos EUA, onde ministrou várias palestras e recitais em organizações chicanas e nas universidades de Los Angeles e Berkeley. É o próprio autor quem nos conta, generosamente, parte dessa trajectória: 
Eu chegara ao México, depois de cruzar, ao longo de três anos, todos os países da América Latina (excepto Venezuela) e trazia, desfraldada na alma, a bandeira das lutas de liberação nacional que incendiavam o continente e por isso, depois do meu recital no Instituto Mexicano-Cubano, na Cidade do México, fui “convocado” para levar aos chicanos (norte-americanos de origem mexicana) a notícia do que se passava na América, como um estímulo à sua luta no contexto de segregação em que viviam dentro das próprias entranhas do “monstro” imperialista. É uma fase belíssima da minha vida que não posso contar aqui. Meu livro Poemas para a Liberdad, teve sua 3ª edição em San Diego. Ao cabo de três meses tive que voltar ao México para novo visto no passaporte, mas quando tentei voltar para terminar minha “missão”, os yanques já não me permitiram a entrada. Do México fui para Equador, onde dei um ciclo de palestras na Universidade Central do Equador, sobre problemas centro-americanos […] e mexicanos. No Equador publicaram a 4ª edição do meu Poemas para a Liberdade. Depois de dois meses tive que sair correndo de Quito (onde cheguei a primeira vez, expulso do Peru e a segunda, expulso da Colômbia) porque fui acusado pelos estudantes de agente da CIA. (Eles não entendiam como é que eu corria a América Latina, pra cima e pra baixo, e estava sempre ‘infiltrado” entre a classe estudantil e o pessoal de esquerda). Fui alertado por um amigo estudante de arquitectura e saí por Quayaquil, num transatlântico italiano (Rossini) e entrei, sem problemas, no Peru, pelo porto de Callao. Resolvidos alguns problemas no Peru, fui para o Chile de Allende, onde comecei a escrever minhas memórias de viagem e artigos para jornais e revistas sobre o problema dos chicanos e sobre o colonialismo português em  África. Minha mulher foi para Santiago e, pela minha filha, voltei com ela ao Brasil em meados de 72, e em Curitiba, depois de descobrir que o DOPS já sabia da minha volta e me procurava, transferi minha OAB para Santa Catarina, para tentar advogar. Mas também lá o clima de repressão e espionagem era terrível. Era a época em que estava começando a Guerrilha do Araguaia. Voltei pra Curitiba e passei a viver no anonimato social e literário. Por indicação de um amigo, e para sobreviver, fui vender a Enciclopedia Delta Larousse. Ninguém sabia onde eu estava. Somente aparecia no fim do mês para entregar os meus contratos de venda e receber minha comissão. Em seguida sumia pelo interior do Paraná ou Santa Catarina e somente minha família sabia de mim. Foi uma bela estratégia porque eu pude trabalhar e me esconder ao mesmo tempo. […] Voltei a escrever em Setembro de 2002 […], durante os 30 anos que não escrevi nada, tive uma vida muito intensa e acabei esquecendo que eu era poeta […], mas também tive uma vida intelectual muito rica.

Tive o privilégio de conhecer Manoel de Andrade graças à coincidência de termos uma amiga em comum, a antropóloga e historiadora Philomena Gebran, a quem ele não via há mais de 30 anos e que, através de mim, graças às maravilhas da internet, pôde reencontrar em Curitiba, onde ambos moram actualmente. Somos, portanto, apenas amigos virtuais. Mas é como se fôssemos amigos há muitos anos, compartilhando a maior parte dos sonhos, das grandes frustrações e, principalmente, as esperanças que os muitos sustos da vida não conseguiram levar. Naqueles tempos difíceis parecia para muitos que a força das armas − e, no caso de Manoel Andrade, a sua eram os versos – era o caminho. Hoje, não sei qual o caminho (e acredito que ele também não), mas continuo acreditando, como ele, numa sociedade justa, humana, fraterna. Por isso recomendo com veemência a leitura dos seus Poemas para a Liberdade. Pelo menos para que os que não saibam fiquem sabendo, os que sabem se lembrem e os que lembram voltem a pensar sobre a esperança."
Alberto Moby, em "As palavras no espelho - ( Fortuna crítica) "  de Manoel de Andrade, Editora Escrituras , São Paulo, Brasil, 2018, pp. 279-286

1 - A presente resenha foi publicada originalmente em Julho de 2009, no blog Minhas Histórias de Alberto Moby . E foi republicada em 12 de Julho no blog Palavrastodaspalavras.

2 - Alberto Moby Ribeiro da Silva nasceu no Rio de Janeiro em 1957. É historiador, jornalista e professor de História, com mestrado e doutorado em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É autor do livro Sinal Fechado – a música popular brasileira sob censura, lançado em 1994 e da obra, em espanhol, La Noche de las Kygua Vera – La mujer y la reconstrucción de la identidad nacional en la posguerra de La Triple Alianza (1867-1904) publicada em 2010 pela Editora Intercontinental em Assunção, no Paraguai. É autor de diversos ensaios, artigos e capítulos de livros nos quais o tema é a História Cultural.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Mercedes Barcha e Garcia Márquez



Morre Mercedes Barcha, a mulher que tornou possível o sucesso de García Márquez 
A esposa do Nobel de literatura faleceu sábado, 15 de Agosto, no México, aos 87 anos
por Camila Osorio, Cidade do México
"Entre os milhares de lendas e imagens literárias que o Nobel Gabriel García Márquez tornou famosas em seus 87 anos de vida, uma das mais conhecidas incluía sua esposa, Mercedes Barcha. Contava que ela penhorou vários electrodomésticos para poder enviar pelo correio o romance que tornou Gabo universal. Mercedes Barcha morreu neste sábado, 15 de Agosto, na Cidade do México, aos 87 anos. Foram casados por 56 anos e tiveram dois filhos, Rodrigo e Gonzalo. O marido se encarregou de tornar o nome dela famoso durante anos porque não teria conseguido entregar-se em tempo integral às letras não fosse o trabalho administrativo e o cuidado que ela lhe dedicou.
No dia em que o escritor terminou o manuscrito de Cem Anos de Solidão, na década de 1960, ele e a mulher foram ao correio do México para enviá-lo à editora na Argentina que estava interessada no livro. Um funcionário do local pesou as folhas do texto e disse que a remessa custaria 83 pesos, mas Mercedes - que era a administradora da família - falou que só tinha 45. Os dois decidiram então enviar apenas metade do manuscrito, a parte que podiam pagar, e ficar com o restante na esperança de poder mandar depois. “Então, fomos para casa e Mercedes pegou as últimas coisas que faltava penhorar”, disse Gabo. Ela empenhou o aquecedor, o secador de cabelo, a batedeira, e assim Mercedes conseguiu enviar o resto do romance que tornaria seu marido lendário. “Agora, só falta o romance ser ruim”, lhe disse, então, com raiva. Mercedes era a primeira pessoa que lia a obra de Gabo e era a crítica que o escritor mais temia.
“A sua personalidade era única, uma mescla singular de inteligência absoluta, força de carácter, pragmatismo, curiosidade, senso de humor e hermetismo'‘, disse Jaime Abello Banfi, director geral da Fundação Gabo, num comunicado de condolências. “Querida Mercedes,  foste um pólo na Terra, jamais te esqueceremos. A sua recordação nos inspirará.”
Embora ela sempre se certificasse de que a vida doméstica estivesse funcionando, Mercedes Barcha também era uma devota da literatura e lia os manuscritos do marido antes de muitos amigos do Nobel. Quando Gabo estava terminando Cem Anos de Solidão, disse a certa altura que a crítica que mais o preocupava era a da companheira. “A expressão em seu rosto me garantiu que o livro estava no caminho certo”, contou Gabo.
Pouco se sabe sobre os esforços de Mercedes para escrever, embora os arquivos de Gabriel García Márquez da Universidade de Austin-Texas contenham um pequeno texto que ela escreveu aos 15 anos para um jornal de estudantes. É um elogio ao enorme rio Magdalena, na Colômbia, que nasce na cordilheira dos Andes e desagua no mar do Caribe, onde ela o chama de “um tesouro” impossível de retratar. “Considero como um átomo o que minha caneta pode escrever sobre essa longa e majestosa corrente”, disse naquele texto de 1947.
“Os pais de Mercedes eram amigos dos pais de García Márquez”, diz Gustavo Tatis, biógrafo de Márquez e autor do livro The Conjurer’s Yellow Flower. Ela tinha 9 anos e ele 12 quando se conheceram, “e García Márquez teve desde muito cedo a clarividência de que esta seria a mulher que o acompanharia durante toda a vida”. Mercedes mais tarde inspirou vários personagens de Gabo em romances como Cem anos de solidão, O outono do patriarca e O amor nos tempos do cólera, que foi dedicado a ela. “Ela era uma espécie de Úrsula Iguarán”, lembra Tatis, “uma grande mulher por trás do génio de García Márquez”.
Jon Lee Anderson, jornalista da revista The New Yorker e amigo de Mercedes, lembra que era uma pessoa escassa, com poucas palavras, mas que falava eufemisticamente e com sabedoria. “Quando escrevi um perfil sobre Gabo em 1999, entendi que só com a aprovação dela eu conseguiria ter-lhe acesso.", diz Anderson, que, como outros amigos de Mercedes, se lembra dela naquele papel protector do escritor. “Quando a conheci em Bogotá e conversamos, sem que ela me dissesse, senti que havia me dado a aprovação para que eu pudesse me aproximar dele”. Os amigos de Gabo eram facilmente amigos de Mercedes também, e ela decidia quais deveriam estar mais perto e quais deveriam ser distantes. No artigo de Anderson, quando falava com Gabo sobre a sua esposa, o vencedor do prémio  Nobel  diz-lhe que ele tinha uma teoria: que Fidel Castro, amigo do escritor, na verdade confiava mais em Mercedes do que ele.
“Ela sempre foi uma mulher muito reservada, desempenhou muito bem aquele papel de muro de contenção diante de Gabo”, lembra outro amigo próximo, o escritor nicaraguense Sergio Ramírez. Outra pessoa que conseguiu passar por esse muro foi Zheger Hay, um militante de esquerda na Colômbia que foi exilado no México nos anos 80 e conheceu Mercedes logo após sua chegada. “Ela sempre teve uma vida muito discreta, sem se exibir”, lembra Hay. Mercedes, diz sua amiga, passava os dias cuidando das casas da família em Cartagena ou na Cidade do México e era constantemente informada sobre as últimas notícias políticas, embora tivesse o cuidado de não compartilhar sua opinião publicamente. “Mercedes era uma viciada em televisão para assistir ao noticiário, ela estava muito ciente de tudo”, diz Hay. “Mas tinha um senso de discrição especial, porque sabia muito bem que Gabo era seu marido e por isso tudo que ela dizia também podia virar notícia.”
Embora calorosa com seus amigos, Mercedes decidiu que não queria ser uma figura pública que falava constantemente nos  media sobre seu marido ou sua vida familiar, e é por isso que a maior parte do que se sabe sobre ela foi através das palavras de seu marido. Mas nenhum homem de letras pode se dedicar à literatura sem uma comunidade íntima para sustentá-lo. Com a sua partida, Mercedes lembra que hoje nem Cem Anos de Solidão nem O amor nos tempos do cólera existiriam sem uma mulher como ela."
Camila Osorio, em artigo publicado no jornal El País, 17.08.2020

domingo, 23 de agosto de 2020

Ao Domingo Há Música


Como se de repente ao coração do Sol
as raízes da luz alguém as arrancasse...
Como se de repente as hélices do vento
arranhassem o ar, e o mar estivesse perto...
como se de repente o Mundo entontecesse...

Foi tudo de repente e tudo ao mesmo tempo:
escuridão, rumor, frescura, movimento.

Mas de entre as espirais confusas quem sabia
se era de novo amor , se era só melodia?
David Mourão-Ferreira, "Infinito  Pessoal"

Uma melodia partilhada por vozes que sabem cantar: Sara Bareilles e  John Legend, em  A Safe Place to Land (Live at the Village) .
Licenciado ao YouTube por SME; LatinAutor - SonyATV, BMI - Broadcast Music Inc., Sony ATV Publishing, LatinAutor - PeerMusic, CMRRA, SOLAR Music Rights Management, LatinAutor, UNIAO BRASILEIRA DE EDITORAS DE MUSICA - UBEM e 9 sociedades de direitos musicais.
Be the hand of a hopeful stranger
A little scared but you’re strong enough
Be the light in the dark of this danger
'Til the sun comes up
Be the hand of a hopeful stranger
A little scared but you’re strong enough
Oh, be the light in the dark of this danger
'Til the sun comes up
Be the hand of a hopeful stranger
A little scared but you’re strong enough
Be the light in the dark of this danger
'Til the sun comes up
'Til the sun comes up, oh
'Til the sun comes up, 'til the sun
'Til the sun comes up
'Til the sun, 'til the sun
Comes up

sábado, 22 de agosto de 2020

A memória traz a saudade

 
La vie  serait impossible  si l’on se souvenait, le tout est  de choisir ce qu’on doit oublier.
                 Roger Martin du Gard

Teimava em afundar-se na memória. Queria fugir a este presente que nada lhe dizia. Há muito que deixara de ouvir as notícias, de ler os jornais  ou de tentar saber como estava o mundo. Para quê? Bastava saber que não podia sair de casa. Alguém se encarregara de lhe colocar na caixa do correio  um aviso da Câmara Municipal. Nesse dia, correra à sala, ávida de confirmação. Ligou a televisão e as notícias vieram em catadupa. A peste dominava todos os noticiários. Morria-se no mundo . Números assustadores eram repetidos por mil e um comités de saúde, espalhados pelo mundo. A OMS soletrava alertas que se tinham como dogmas. Acreditar e respeitar era o único caminho. A salvação não era prometida. Apenas cumprir sem remissão à vista.
Deixou-se ficar. Nada mais tinha a fazer. E, ao ficar, desistiu de saber. Esse mundo de peste não a interessava. A vertigem da morte dominava o mundo. Todos se confinavam e as ruas ficavam desertas. A propaganda pestilenta passou a ocupar esses espaços vazios.
Refugiara-se nas paredes da memória. Por vezes, antecipava futuros que não seriam os seus. Apenas lhes dava forma e peso conforme o sonho ou o arrebatamento  lhe permitia. Tudo isso passou a ser mundo , o seu mundo. Não teria falta de mais  mundo para estar viva. Há quem afirme que se deixa de falar ou de ter vida quando não há mundo , ou seja, não se vive para além das paredes de uma casa. Esquecem-se de que paredes e muros comportam realidades diferentes. Os muros são barreiras que se erguem, paredes são o amparo que nos protege .
Levantava-se com a aurora , vivia o dia , deitava-se com a noite.  O dia nem sempre era longo. A noção de tempo fugira-lhe. Nem sabia o que era agora. Nunca se interessara tão pouco pelo movimento dos  ponteiros. Os relógios tornaram-se dispensáveis . Regia –se  por um tempo interior. Um tempo volátil. Que se fazia por vezes à velocidade da luz  ou , em contramão, se deixava ir a passo de caracol, se é correcto atribuir-lhe um passo.
Naquele dia , acordara estranhamente ao meio-dia a ouvir vozes e a inalar odores tão remotos que  não imaginava ser o dia do seu nascimento.
Recordava-se perfeitamente da azáfama que marcara o ritmo daquela casa, onde nascera . A mãe já muito pesada dirigia os trabalhos.
Os cheiros a cera e alfazema pairavam no ar e chegavam já até ela como perfume de um passado longínquo. Tudo lhe foi surgindo como se já tivesse vivido durante um período único. Era como se estivesse por fora do tempo. Gravitava num tempo que não era real ,mas que a fazia projectar no tempo dos outros. E surgiu-lhe a casa numa dimensão real. Os irmãos ainda muito pequenos enchiam  aquele espaço de sons e ruídos. A casa da infância onde a mãe  se propunha organizar o seu nascimento.

Ana mandava abrir a gaveta da cómoda grande onde os lençóis de linho, com rendas feitas pelas fiandeiras da Quinta de Chãos, se sobrepunham numa ordem quase natural. A gaveta era pesada e se não fossem os braços fortes de Fernanda seria impossível puxá-la.
Era necessário organizar rapidamente a casa para o nascimento deste filho. Estava-se em Agosto e  a família de João viria encher totalmente o que restava ainda de vazio naquela casa . Sempre fora assim. A família vinha sempre!
Nem sempre se sentia bem nesta altura. Sentia-se pesada e uma certa ansiedade tomava-a. Ninguém a notava. Só ela e aquele pequeno ser que partilhava todos os seus segredos. Vivia aninhado num berço recôndito dentro de si. Acariciava-o e afagava-o com segredos únicos que ficariam selados até à eternidade , se ela descesse  para ambos.
Nos  anos anteriores, esforçara-se para realizar, com  o rigor que a todos habituara, a festa do nascimento dos outros filhos.
Ainda hoje recorda a alegria que experimentara.
Estava grávida do  terceiro filho e isso  enchia toda a sua vida e todo o seu tempo. Por vezes sentia que nada mais lhe interessava a não ser  a maternidade. Era qualquer coisa que a transcendia , mas a tornava imensamente feliz e segura de um destino que nunca antevira.

A memória. Ah , a memória traz a saudade dos dias felizes. E a saudade  nasceu ontem, virá amanhã e é hoje o dia de todos os dias: o meu.
Maria José Vieira de Sousa, in “O Tempo da Memória”

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Música em Dubrovnik

Hauser interpreta as    bandas sonoras preferidas , na formosa cidade de Dubrovnik, na  Croácia. Este espectáculo integra a série 'Alone, Together' de que tem vindo a realizar noutros locais.

Track list:
00:13 Now We Are Free (Gladiator)
5:40 May It Be (Lord Of The Rings)
9:22 Adagio (Albinoni)
16:03 The Godfather Theme
19:39 Game of Thrones
22:34 Pirates Of The Caribbean

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Reflexo

Reflexo
Olha: vem sobre os olhos
Tua imagem contemplar,
Como as madonas do céu
Vão refletir-se no mar
Pelas noites de verão
Ao transparente luar!

Olha e crê que a mesma imagem
Com mais ardente expressão
Como as madonas no mar
Pelas noites de verão,
Vão refletir-se bem fundo,
Bem fundo — no coração!
Machado de Assis, em "Marmota, 23 mar. 1858". In: ASSIS, Machado. "Toda poesia de Machado de Assis".[Organização Cláudio Murilo Leal]. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008

Horas vivas
Noite; abrem-se as flores...
Que esplendores!
Cíntia sonha amores
Pelo céu.
Ténues as neblinas
Às campinas
Descem das colinas,
Como um véu.

Mãos em mãos travadas
Animadas,
Vão aquelas fadas
Pelo ar;
Soltos os cabelos,
Em novelos,
Puros, louros, belos,
A voar.

— "Homem, nos teus dias
Que agonias,
Sonhos, utopias,
Ambições;
Vivas e fagueiras,
As primeiras,
Como as derradeiras
Ilusões!

— Quantas, quantas vidas
Vão perdidas,
Pombas malferidas
Pelo mal!
Anos após anos,
Tão insanos,
Vêm os desenganos
Afinal.

— Dorme: se os pesares
Repousares.
Vês? — por estes ares
Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
E lascivas,
Somos — horas vivas
De dormir. —"
Machado de Assis, em "Crisálidas". Rio de Janeiro: B.-L. Garnier, em 1864. in: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Sou um escritor borralheiro

O escritor Mário de Carvalho
Mário de Carvalho
Mário de Carvalho: "Críticos literários contam-se pelos dedos de uma mão... amputada"
por Ana Vitória
"Escritor borralheiro", preocupado e pessimista, Mário de Carvalho receia que civilização possa autodestruir-se.
Mário de Carvalho é um cultor da plasticidade da língua portuguesa. "Limitá-la ao vocabulário básico é prestar-lhe um mau serviço", diz. Lançou a primeira obra em 1981, mas só se reconheceu como escritor ao décimo livro. Aos 75 anos, já publicou mais de trinta títulos, entre romance, novela, ensaio, teatro e conto - como "Epítome de pecados e tentações", que acaba de chegar ao mercado e que serve de pretexto para esta conversa com o JN. O livro, diz, corresponde à sua "perplexidade sobre as diferentes formas como as pessoas encaram o sexo e se relacionam".
A pandemia atrasou a saída de "Epítome de pecados e tentações". Sentiu necessidade de escrever sobre o confinamento?
Não me sinto nada tentado a escrever sobre esta situação, que é incómoda. Aborrece-me ter de andar de máscara, não poder estar à vontade com os outros.
Volta a escrever sobre o sexo, como em "Ronda das mil belas em Frol". A que se deve a insistência?
As relações são difíceis. Há sempre qualquer coisa que não é compreendida. Homem e mulher encaram o sexo de forma diferente, o que excita um não excita o outro. Um conta tudo, outro nada. Tentei abarcar um leque de situações que correspondem às minhas perplexidades e interrogações sobre como somos tão diferentes e tudo é tão variado.
Algum desses contos foi pensado para romance?
Não. Há dois contos longos que podem ser considerados novelas. A situação do primeiro conto, que trata de uma paixão devastadora e infeliz, como são todas as paixões, e cujo personagem recorda os tempos antes de viver no lar, poderia, de facto, ser um romance. Mas já o meu livro "A sala Magenta" (2008) também não se afasta muito desse tema.
Há quem o considere um autor difícil, pelo cuidado com a língua e pelo vocabulário que obriga à consulta de dicionário.
Mas isso também acontece comigo, também vou ao dicionário quando não conheço uma palavra. A nossa língua é extremamente expressiva, rica e variada. Abre muitos campos. Fechá-la e limitá-la ao vocabulário básico é um mau serviço que se presta à língua. Também não estou disposto a renunciar a todos os recursos que são postos ao meu alcance.
Usando um dos termos deste livro, isso não são caganifâncias, pois não?
O leitor e eu temos de encontrar-nos a certo ponto. As televisões e o jornalismo têm fechado muito o léxico.
Há algo de autobiográfico neste livro?
Há muitas coisas que resultam de algo que foi dito, vivido ou suspeitado. E muitas inventadas, mas a partir da vida real. Os escritores têm de estar atentos ao mundo que os rodeia, captar o que veem como material para ser usado mais tarde.
Como vê a crítica literária em Portugal?
Há pouca crítica literária que mereça ser considerada. Contam-se os casos honrosos pelos dedos da minha mão... amputada. Há um fenómeno muitíssimo estranho nos jornais, que é o da permanência absoluta dos livros de língua estrangeira. A literatura portuguesa não fica a dever muito a outras. A obsessão em fazer recensões de livros estrangeiros suscita muita desconfiança.
Por que razão acha que isso acontece?
A hipótese mais inocente é que se trata de pura saloiice. Está relacionado com a redução de tudo ao conceito e vocabulário básicos.
Não é adepto de festivais literários, pois não?
Não sou muito de viagens nem de grupos. Sou um escritor borralheiro. Tenho o meu circuito e cada vez menos gosto de viajar. Só de vez em quando lá irei a uma coisa ou outra. Mas não faço muito por isso."
Ana Vitória, em artigo publicado no JN de 12.08.2020

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Nós somos apenas fósforos

 Ilustração: Susa Monteiro

O Vice-viajante
por Mia Couto
"Foi assim, dizem, que a doença se espalhou. A pele das crianças ficou coberta de escamas, as mães coçavam o corpo dos filhos e as crostas saltavam como se estivessem a preparar peixe. Morreu muita gente, dizem mesmo que morreram todos os habitantes
Sou de Quionga, onde termina o rio e começa o mar. Nasci no dia em que, num improvisado mastro da administração, içaram a bandeira de Moçambique. Logo ali, uns passos acima, a terra tem outro nome. Chama-se Tanzânia. Parte da minha família veio de lá, do outro lado da fronteira.
Estou a fugir do meu lugar por causa da guerra. Vou para um destino que não conheço. Para mim, esse destino chama-se Vida. Para trás, ficaram os meus pais, que foram mortos pelos terroristas. Cortaram-lhes a cabeça, os braços e as pernas. Escapei porque pensaram que não havia mais ninguém dentro da casa que incendiaram ao mesmo tempo que gritavam “Allahu Akbar”. Gritavam “Deus é Grande” e eu, que sou muçulmano, pensei na grandeza de Deus enquanto, numa mesma cova, juntava os restos dos meus pais.
Assim que tudo voltou ao silêncio, meti-me pelos caminhos onde só andam os bichos. Deambulei durante horas. Desde o início estranhei o peso dos meus pés. Por que razão me cansava tanto, se viajava sem nenhum dos meus pertences? E pensei: levo o rio dentro das mãos.
Cheguei à estrada e cruzei com um camião que transportava madeira. O camionista deteve-se para me dar boleia. Antes que eu fizesse menção de entrar, o homem estendeu-me um pano e mandou que cobrisse o rosto e o atasse na nuca. Recusei. Eu vinha de uma matança em que os soldados estavam todos mascarados. Os panos desses assassinos eram negros. Mas eram panos. E era gente sem rosto.
O motorista levantou o braço a apressar a minha decisão: ou era como ele mandava, ou ele me deixava ali apeado. Obedeci. Instalei-me ao lado do condutor e ele pôs o veículo em marcha antes mesmo que eu fechasse a porta.
— Estás a fugir das balas para ir ao encontro da doença — disse ele.
Não entendi. E nada perguntei. O camião avançava a uma tal velocidade que alguns troncos foram tombando com aparato. Quando, finalmente, chegámos ao asfalto, o motorista suspirou e confessou que o melhor seria suspender a sua atividade enquanto não chegasse a paz.
— Perdi a conta do número de pessoas que salvei desta nova guerra — disse ele. — Trouxe-os na carroçaria, sentados em cima dos troncos, às dezenas.
— E agora onde me vai deixar?
— Vou deixar-te num campo de refugiados que acabaram de construir perto da cidade. Ali, vais ficar como todos os outros: juntos, mas separados. Nunca ouviste falar do distanciamento social?
Depois, o caminho fez-se entre silêncio e poeira. Observei as duas bermas da estrada e pensei como a guerra e a doença caminham juntas, como os dois braços de um mesmo corpo. Olho para o meu lado: o motorista não quer ser vencido pelo sono. Pede-me que o distraia. Foi então que me ocorreu uma história que se contava na minha família. E conto essa história ao motorista como se, ao narrar esse passado, a minha casa ressurgisse das cinzas.
Quando veio a epidemia da varíola, a aldeia do meu avô ficou deserta. Mais do que deserta: amaldiçoada. Os pés de quem a visitava convertiam-se em pedra. Uma aldeia sem gente deixa de ter céu: as nuvens desabam no chão, brancos panos sem uso.
E sucedeu aos vivos o que acontece com os falecidos: ninguém mais podia dizer o seu nome. Quem trouxe essa doença? — perguntavam. As doenças não se trazem. Acendem-se. É como o fogo: aquilo já lá está. Nós somos apenas fósforos. E somos a palha que arde e a cinza que resta.
Na altura, ninguém deu conta, mas aquela epidemia chegou de braço dado com a guerra. E ninguém se apercebeu porque essa guerra era entre ingleses, portugueses e alemães. E aconteceu assim: os primeiros europeus que visitaram a nossa aldeia foram os alemães. Aconteceu antes de o meu avô ter nascido. Sem dúvida, esses alemães eram brancos, mas de outra raça, tinham descido por outros mares, de portos mais longínquos. Por isso, traziam os olhos mais azulados e os cabelos mais deslavados.
Quando se instalaram em Quionga, esses estrangeiros olharam o rio e acharam-no muito largo. Mandaram que os habitantes do lugar estreitassem o rio. Os aldeões deixaram a tarefa para a noite. Iriam executar o trabalho quando estivessem a dormir. Durante o sono, todos saíram dos seus corpos e empurraram as margens do rio, que se foram estreitando até que, num certo ponto, elas se tocaram. Assim, os brancos puderam transpor o rio sem ter de erguer pontes nem esperar por barcos.
Depois de um tempo, os alemães mandaram que a nossa gente voltasse a alargar o rio. Havia uma guerra e eles tinham medo de que os ingleses os cercassem a partir da margem Norte. Queriam fazer do rio Rovuma uma fortaleza. Derrubaram as pontes e queimaram os barcos. O rio foi reposto no seu antigo lugar. Os alemães ali se mantiveram instalados, como se fossem donos do mundo. Quem tem armas pode mandar nas pessoas. Mas não pode mandar nos rios nem no mar.
E foi pelos rios e pelo mar que, numa certa noite, chegaram os atacantes. Deu-se uma grande batalha. Morreram muitos soldados europeus. Os seus corpos foram levados pelo rio e arrastados pelas correntes marinhas. À medida que eram engolidos pelas águas, esses europeus convertiam-se em peixes. Nos dias seguintes, as crianças de Quionga recolheram milhares de escamas que brilhavam sobre a areia branca. Os meninos e as meninas colocaram as escamas sobre os ombros, esperando que uma outra raça lhes fosse concedida.
Foi assim, dizem, que a doença se espalhou. A pele das crianças ficou coberta de escamas, as mães coçavam o corpo dos filhos e as crostas saltavam como se estivessem a preparar peixe. Morreu muita gente, dizem mesmo que morreram todos os habitantes. Os que escaparam foi porque, sem sobreviventes, a própria morte podia morrer. Assim, uns tantos foram devolvidos à vida. E o primeiro a regressar foi o meu avô. E é por isso que ele nunca se cansou de perpetuar esta lembrança.
Foi esta a história que contei durante a viagem. O dono do camião pediu-me se não tinha mais histórias. Quando me calei, estávamos já a entrar no campo de refugiados. O motorista despediu-se de mim sem desligar o motor da viatura. Já me tinha instalado numa das dezenas de tendas, quando escutei a insistente buzina do camião. Corri para a entrada do campo e vi o motorista acenando.
— Junta as tuas coisas e vem comigo — ordenou.
— As minhas coisas? — estranhei.
— Vais ficar em minha casa — afirmou o motorista — Passas a ser meu ajudante de viagens.
E ainda hoje é isso que eu faço: ajudo o motorista a viajar. Sentado ao seu lado, vou contando histórias. Há apenas um pormenor: estamos ambos sentados na varanda. O camião está parado, avariado e sem pneus. O motorista há um tempo que está adoentado. Veio uma brigada da Saúde fazer os testes. Mas o resultado deu negativo. A esposa do condutor diz que tudo aquilo são saudades de andar pelo mundo. Mas eu sei que a enfermidade do motorista é verdadeira. Porque sofro da mesma doença. Para nos curarmos vai ser preciso que a estrada volte a ser um rio. E que a corrente leve a guerra e lave a doença.
Com as minhas histórias vou empurrando as margens do rio. O motorista me agradece a ilusão de uma ininterrupta viagem. E eu devolvo a gratidão: cada história minha será sempre uma reza junto à anónima cova onde se deitaram os meus pais."
Mia Couto , em artigo  publicado na revista VISÃO 1431, de 14 de Agosto 2020

domingo, 16 de agosto de 2020

Ao Domingo Há Música


De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.
Cecília Meireles, " Canções"


Não sei  de que será feito  o dia de hoje ? Sei, porém, que a música pode transformar qualquer dia. Uma  melodia, uma canção, uma voz serão sempre uma feliz solução.
Há canções que, pela sua beleza, foram interpretadas por  diferentes cantores. Ficaram imortalizadas por vozes que souberam dar-lhes a força, a vitalidade que seus compositores lhes tinham  atribuído. 
Dos registos de 2019, retirámos duas dessas canções, interpretadas por uma magnifica voz, de  extraordinária musicalidade. 
Jennifer Hudson, em Hallelujah, em 13 de Dezembro de 2019, na cerimónia do   Global Citizen Prize, em Londres, no icónico Royal Albert Hall. 
Jennifer Hudson , em  Memorydo filme musical  "Cats", no espectáculo The Voice Live Finale, Part 2, 2019

sábado, 15 de agosto de 2020

O meu pai

V 1345 09 de Dezembro de 2018.jpg
Ilustração: Susa Monteiro
O meu pai Nós – 3 (crónicas pequeninas)
por António Lobo Antunes
"A única vez que vi o meu pai de óculos escuros foi quando o meu avô morreu. Morreu no dia 9 de Novembro, o pai colocou os óculos escuros, não os tirou mais nesse dia, nem em casa, nem no velório, nem quando voltou para dormir um bocadinho, nem durante a missa na manhã seguinte, nem durante o enterro, nem em casa depois, nem quando as pessoas vieram cumprimentá-lo, nem quando regressámos no fim daquilo tudo, ele, a mãe, nós. A mãe e nós ficámos na sala, ele fechou–se no escritório, ligou música de Bach para orgão no máximo da intensidade, fechado sozinho lá dentro e as paredes todas da casa não paravam de vibrar. À hora do jantar interrompeu a música, sentou-se na cabeceira da mesa, no lugar dele, esperou que chegássemos com a mãe e ocupássemos os nossos lugares, tirou os óculos escuros que enfiou no bolso, parecia sereno e distante, quase indiferente, praticamente não tocou na sopa nem no que havia para comer a seguir, e ali ficámos todos calados durante o tempo da refeição. Não me lembro de ter olhado para nenhum de nós como não me lembro de nenhum de nós o ter olhado. No fim acendeu um cigarro, depois do cigarro levantou-se em silêncio, alcançou de novo as escadas, tornou a fechar-se no escritório enquanto a mãe o olhava à socapa na cabeceira oposta da mesa, a música de Bach regressou e na manhã seguinte encontrei-o como de costume em tronco nu, a barbear-se ao espelho. Nós gostávamos de o ver fazer a barba porque os músculos das costas se mexiam e o seu corpo era muito bonito. Pelo menos nós achávamo-lo muito bonito e todos os seus gestos eram elegantes. Tinha um corpo magro e atlético porque fizera muito desporto, fez parte da selecção nacional de hóquei em patins nos campeonatos do mundo, costumávamos brincar com uma caixa de medalhas a que ele não ligava um pito, mesmo aos sessenta anos continuava a ganhar-nos corridas de bicicleta e a patinar admiravelmente, graças às suas lições com cinco ou seis anos eu já patinava muito bem, aos catorze ou quinze anos andei pelo Futebol Benfica e pelo Benfica depois, trouxe-me um stique óptimo de Inglaterra mas acabou-me com as proezas desportivas porque eu não estudava, deram-me ganas de o estrangular mas não me atrevi, ele foi para o hospital

(sempre gostei de o ver de bata)
e nós para o liceu ou para a escola porque os nossos pais tinham filhos com todas as idades, e tudo se passou como se nada se tivesse passado; uma das principais qualidades dele era um imenso pudor e uma imensa discrição em tudo, não fazia perguntas pessoais, não falava de coisas íntimas, quando estávamos doentes sentava-se numa das nossas camas e lia-nos em voz alta os poetas e os prosadores de que gostava, com a voz lindíssima que tinha, chamava-nos a atenção para a construção das frases, nunca havia frio ao pé da sua voz, às vezes encontrava-o na figueira do jardim a vasculhar as pobres produções que eu lá queimava, copiava algumas delas num caderno de capa verde e grossa que tinha no escritório, nunca me fez nenhum comentário mas recordo-me de o ouvir dizer à mãe, sem dar conta que eu andava por ali
– Não o podes tratar como os outros porque esse é diferente
e o respeito dele pelos artistas era infinito embora, claro, eu não fosse artista nenhum, mas sei que secretamente esperava sei lá o quê de mim
(ele esperava sei lá o quê, eu esperava imenso)
reparei que havia agora uma fotografia do avô na sua mesa de trabalho, junto ao microscópio e aos papéis, descobri numa gaveta da sua secretária as cartas que o meu avô lhe escrevera da guerra em França a tratá-lo por Janjão, só falei nisso à mesa uma vez, quando aproveitei um silêncio para dizer Janjão, os minúsculos olhos azuis do meu pai pareceram-me de repente turvos mas não disse nada e compreendi de repente, assustadíssimo, que ele continuava a ser o menino do pai dele, sem nunca o referir e, pela primeira e última vez, senti-o tão perto e tão pequeno. Não falou mas deu-me ideia que, juntamente com a garfada seguinte, engoliu uma espécie de lágrima em que ninguém reparou. Infelizmente nunca mais tornei a ver os óculos escuros porque me deu ideia que ele se achava necessitado deles. Quando houve o almoço dos cinquenta anos de casados dos meus pais disse-lhe
– Gosto muito de si paizinho
e ele respondeu
– Eu também gosto muito de ti filhinho
e foi a conversa mais comprida que tivemos. Que pena não haver por aí uma peça de Bach agora."
António Lobo Antunes , em Crónica publicada na VISÃO de 20  de Dezembro de 2018