VII
“Cumpro religiosamente as minhas promessas. Tu não avalias o sacrifício que faço. Não importa. Como não quero cativar a tua gratidão, nem, mesmo ainda, mover a tua piedade, basta-me a consciência do que sou para ti, que é (medita bem) o mais que posso ser…
A história… não é assim? Principia agora.
António Alves era um pobre amanuense do escritório de um tabelião de Lisboa. O tabelião morreu, e António Alves, privado dos escassos lucros de amanuense, lutou com a fome. A mulher por um lado com a filhinha ao colo, e ele pelo outro com as lágrimas da indigência, conseguiram algumas moedas, e com elas a passagem do pobre marido para o Rio de Janeiro.
Foi, e deixou entregues à Providência a mulher e a filha.
Josefa esperava todos os dias carta de seu marido. Nem carta, nem um indício da sua existência. Julgou-se viúva, vestiu-se de preto e viveu de esmolas, pedidas à noite na praça do Rossio.
A filha chamava-se Laura, e crescera bela, não obstante as angústias da fome, que transformam a formosura do berço.
Aos quinze anos de Laura, já sua mãe não mendigava. A desonra proporcionara-lhe abundância que uma honrosa mendicidade lhe não dera. Laura era amante de um rico, que cumpria fielmente com a mãe as condicionais estipuladas na escritura de venda da filha.
Um ano depois, Laura explorava outra mina. Josefa não sofria com as vicissitudes da filha, e continuava a gozar os fins da vida à sombra de tão fecunda árvore.
A indigência e a sociedade fizeram-lhe compreender que só há desonra na fome e na nudez.
Outro ano depois, a radiosa Laura declarou-se o prémio do cavaleiro que mais airoso entrasse no torneio.
Concorreram muitos gladiadores, e parece que todos foram premiados, porque todos esgrimiam galhardamente.
Desgraça foi para Laura, quando os melhores campeões se retiraram fatigados da liça. Os que vieram depois eram bisonhos no jogo das armas, e viram que a dama das justas já não valia a pena de perigosos botes de lança e de arreios muito custosos de pedraria e ouro.
Pobre Laura, apeada do seu pedestal, olhou-se a um espelho, viu-se ainda bela com vinte e cinco anos, e perguntou à sua consciência a baixa do preço com que corria no leilão de mulheres. A consciência respondeu-lhe que descesse da altura das suas ambições, que viesse para onde a chamava a lógica de sua vida, e continuaria a ser rainha num reino de segunda ordem, já que a exautoravam de um trono que tivera na primeira.
Laura desceu, e encontrou uma sociedade nova. Aclamaram-na soberana, reuniu-se uma corte tumultuosa na antecâmara desta odalisca fácil, e não houve grande nem pequeno a quem se baixassem os reposteiros do trono.
Laura viu-se um dia abandonada. Viera uma outra disputar-lhe a sua legitimidade. Os cortesãos voltaram-se para o sol nascente, e apedrejaram, como os Incas, o astro que se escondia para alumiar os antípodas de um outro mundo.
Os antípodas de um outro mundo eram uma sociedade inculta, sem a inteligência da arte, sem o culto à formosura, sem as opulências que o ouro cria nas altas regiões da civilização, e, finalmente, sem algum dos atributos que Laura amara tanto nos mundos onde fora soberana duas vezes.
A infeliz tinha descido ao derradeiro grau de aviltamento; mas era bela ainda. Sua mãe, enferma num hospital, pedia a Deus, como esmola, a sua morte. A desgraçada foi punida.
No hospital, viu passar a sua filha diante do seu leito; pediu que a deitassem ao pé de si; o enfermeiro riu-se, e entrou com ela noutra enfermaria, onde o anjo do pudor e das lágrimas cobriam o rosto na presença da úlcera mais esquálida e mas lastimosa do género humano.
Laura principiava a sondar a profundidade do abismo em que caíra.
A sua mãe recordava as fomes de outro tempo, quando a filha, virgem ainda, chorava e suplicava, com ela, uma esmola ao passageiro.
As privações de então eram semelhantes às privações de agora, com a diferença, porém, que a Laura de hoje, desonrada e repelida, não podia já prometer o futuro da Laura de então.
Agora, Carlos, vejamos o que é o mundo, e pasmemos diante das evoluções ginásticas dos acontecimentos.
Aparece em Lisboa um capitalista, que chama a atenção dos capitalistas, a consideração do Governo, e, por via de regra, desafia inimizades políticas e invejas, que procuram o seu princípio de vida para denegrir-lhe o luzimento da sua afrontosa opulência.
Este homem compra uma quinta na província do Minho, e, mais barato ainda, compra o título de visconde do Prado.
Um jornal de Lisboa, que traz entre os dentes venenosos da política o pobre visconde, escreve um dia um artigo, onde se acham, entre muitas, as seguintes alusões :
'O Sr. Visconde do Prado adscreveu à imoralidade do Governo a imoralidade de sua fortuna. Como ela foi adquirida, di-lo-iam as costas de África se os sertões contassem os horrorosos dramas da escravatura, em que o Sr. Visconde foi herói.
O Sr. Visconde do Prado era António Alves há 26 anos, e a pobre mulher que deixou em Portugal, com uma tenra filhinha ao colo, ninguém dirá em que rua morreu de fome sobre as lajes, ou em que água-furtada curtiam ambas as agonias da fome, enquanto o Sr. Visconde medrava cinicamente na hidropisia do ouro, com que hoje vem arrotar moralidades no teatro das suas infâmias de esposo e de pai.
Melhor fora que o Sr. Visconde indagasse onde repousam os ossos de sua mulher e de sua filha, e nos pusesse aí um padrão de mármore, que possa atestar ao menos o remorso de um infame contrito…'
Este insulto directo, e fundamentado, ao visconde do Prado, fez ruído em Lisboa. As edições do jornal espalharam-se, e leram-se e comentaram-se com frenética maldade.
Às mãos de Laura chegou este jornal. A sua mãe, ouvindo lê-lo, delirou. A filha cuidou que sonhava; e a situação de ambas perderia muito se eu tentasse roubar-lhe as cores vigorosas da tua imaginação.
No dia seguinte, Josefa e Laura entravam no palacete do visconde do Prado. O porteiro respondeu que S. Exa não estava ainda a pé. Esperaram. Às 11 horas saía o visconde, e, ao saltar para a carruagem, viu duas mulheres que se aproximavam. Meteu a mão ao bolso do colete, e tirou doze vinténs que lançava na mão de uma das duas mulheres. Olhou admirado para elas, quando viu que a esmola lhe era recusada.
— “Que querem” - interrompeu ele, com soberba indignação.
— “Quero ver meu marido que não vejo há 26 anos…” - respondeu Josefa.
O visconde estacou ferido de um raio. O suor gotejava-lhe na testa em bagas frias. Laura aproximou-se, em atitude de beijar-lhe a mão…
— “Pois quê?…” - interpelou o visconde.
— “Sou sua filha…” - respondeu Laura com humilde respeito.
O visconde, aturdido e parvo, voltou as costas à carruagem, e mandou às duas mulheres que o seguissem.
O resto no correio seguinte. Adeus, Carlos.
Henriqueta.”
“Carlos, tenho quase tocado a extrema desta minha peregrinação. A minha Ilíada está no último canto. Quero dizer-te que é esta a minha penúltima carta.
Não sou tão independente como pensava. A não serem os poetas, ninguém gosta de contar as suas mágoas ao vento. É belo dizer-se que um gemido nas asas da brisa vai da terra em dorido suspirar até ao coro dos anjos. É bonito conversar com a fonte suspirosa, e contar à avezinha gemedora os segredos do nosso pensar. Tudo isto é delicioso de uma puerilidade inofensiva; mas eu, Carlos, não tenho alma para estas coisas, nem engenho para estes artifícios.
Vou contando as minhas penas a um homem que não pode zombar de minhas lágrimas, sem trair a generosidade do seu coração, e a sensibilidade do talento. Sabes qual é o meu egoísmo, o meu estipêndio neste trabalho, nesta franqueza de alma, que ninguém te pode disputar como único em merecê-la? Eu te digo. Quero uma carta tua, dirigida a Angélica Micaela. Diz-me o que a tua alma te disse; não tenhas pejo em denunciá-la; associa-te um momento à minha dor, e diz-me o que farias se tivesses sido Henriqueta.
Aqui tens o prólogo desta carta; agora vamos espreitar o lance extraordinário daquele encontro, em que deixamos o visconde e a… Como hei-de chamar-lhe?… A viscondessa, e a sua Exma Filha D. Laura.
— “Pois é possível existires?” - perguntava o visconde, sinceramente admirado, a sua mulher.
— “Pois não me conheces, António?” - respondia ela com estúpida naturalidade.
— “Tinham-me dito que morreras…” - tornou ele com desasada hipocrisia. - “Tinham-me dito, há dezassete anos, que tu e nossa filha tínheis sido vítimas da cólera-morbo…”
— “Felizmente que lhe mentiram” - interrompeu Laura com afectada meiguice. - “Não é que lhe tínhamos rezado por alma, e nunca deixámos de pronunciar o seu nome em saudosas lágrimas.”
— “Como tendes vivido?” - perguntou o visconde.
— “Pobre, mas honradamente” - respondeu Josefa, dando-se uns ares austeros, e pondo os olhos em branco, como quem invoca o céu por testemunha.
— “Ainda bem!” - tornou o visconde - “mas que modo de vida tem sido o vosso?”
— “O trabalho, meu querido António, o trabalho de nossa filha tem sido o amparo da sua honra e da minha velhice. Tu abandonaste-nos com tamanha crueldade!… Que mal te fizemos-nós?”
— “Nenhum, mas não vos disse eu que vos considerava mortas?” - respondeu o visconde a sua mulher, que tivera a habilidade de arrancar duas volumosas lágrimas, tanto a propósito.
— “O passado, passado” - disse Laura, afagando carinhosamente as mãos paternas, e dando-se uns ares de inocência capazes de iludir S. Simão Estilista. - “Quer o pai saber” (prosseguiu ela com sentimento) “qual tem sido a minha vida? Olhe, meu pai, não se envergonhe da posição social em que encontra sua filha… Tenho sido modista, tenho trabalhado incessantemente… Tenho lutado com as tentações da penúria, e tenho feito consistir em minhas lágrimas o meu triunfo…”
— “Bem, minha filha” - interrompeu o visconde com sincera contrição - “esqueçamos o passado… De hora em diante será a abundância o prémio da tua virtude… Ora diz-me : o mundo sabe que tu és minha filha?… Disseste a alguém que era teu marido, Josefa?”
— “Não, meu pai.” - “Não, meu Antoninho.” - responderam ambas, como se tivessem previsto e calculado as perguntas e as respostas.
— “Pois bem,” - continuou o visconde - “vamos a conciliar com o mundo as nossas posições presentes, passadas e futuras. De hora avante, Laura, és minha filha, és filha do visconde do Prado, e não podes chamar-te Laura. Serás Elisa, compreendes-me? É necessário que te chames Elisa…”
— “Sim, meu pai… Eu serei Elisa” - atalhou a inocente modista com impetuosa alegria.
— “É necessário abandonar Lisboa” - prosseguiu o visconde.
— “Sim, sim, meu pai… Vivamos num sertão… Quero gozar, sozinha, na presença de Deus a felicidade de ter pai…”
— “Não iremos para um sertão… Vamos para Londres; mas… atendam-me… é preciso que ninguém as veja, nestes primeiros anos, principalmente em Lisboa… A minha posição actual é muito melindrosa. Tenho muitos inimigos, muitos invejosos, muitos infames, que procuram perder-me no conceito que pude comprar com o meu dinheiro. Estou farto de Lisboa; partiremos no primeiro paquete… Josefa, repara em ti, e vê que és Viscondessa do Prado. Elisa, a tua educação foi desgraçadamente mesquinha para te poderes mostrar qual eu quero que sejas na alta sociedade. Voltaremos um dia, e terás então suprido com a educação prática a rudeza que indispensavelmente tens.”
Não progrido, neste diálogo, Carlos. O programa do visconde foi rigorosamente cumprido.
Aqui tens os precedentes que prepararam o meu encontro, em Londres, com esta família. Vasco de Seabra, quando viu, pela primeira vez, a filha do visconde atravessar um corredor do hotel, fixou-a com pasmo, e veio dizer-me que acabava de ver, elegantemente trajada, uma mulher que conhecera em Lisboa, chamada Laura.
Acrescentou várias circunstâncias da vida desta mulher, e acabou por mostrar vivos desejos de saber o tolo opulento a quem tal mulher estava associada.
Vasco pediu a lista dos hóspedes, e viu que os únicos portugueses eram Vasco de Seabra e sua irmã, e o visconde do Prado, a sua mulher, e sua filha D. Elisa Pimentel.
Redobrou o seu pasmo, e chegou a convencer-se de uma ilusão.
No seguinte dia, o visconde encontrou-se com Vasco, e alegrou-se de ter encontrado um patrício, que lhe explicasse aqueles gritos bárbaros dos serventes do hotel, que lhe davam água por vinho. Vasco não duvidou em ser intérprete do visconde, contanto que as suas luzes em língua inglesa pudessem chegar ao esconderijo donde nunca mas vira sair a suposta Laura.
Correram as coisas à medida do seu desejo. Na noite desse dia, fomos convidados para tomar chá, na saleta do visconde. Eu hesitei, sem saber ainda se Laura seria familiar do visconde. Vasco, porém, despreveniu-me deste temor, afiançando-me que se tinha iludido com a semelhança das duas mulheres.
Fui. Elisa pareceu-me uma menina bem educada. Nunca o artifício tirou maior partido das maneiras adquiridas em hábitos libertinos. Elisa era uma mulher de corte, com os ademanes fascinantes dos salões, onde a imoralidade do coração passeia de braço dado com a ilustração do espírito. O som da palavra, a escolha da frase, a compostura airosa da mímica, o tom sublime em que as suas ideias eram voluptuosamente lançadas na torrente de uma conversação animada, tudo isto me fez crer que Laura era a primeira mulher que eu tinha encontrado, talhada à feição do meu espírito.
Quando agora pergunto à minha consciência como estas transições se fazem, descreio da educação, lamento os anos consumidos no cultivo da inteligência, e chego a persuadir-me que a escola da devassidão é a antecâmara por onde mais fácil se entra no mundo da graça e da civilização.
Perdoa-me o absurdo, Carlos; mas há mistérios na vida que só pelo absurdo se explicam.
Henriqueta.”
Camilo Castelo Branco, in "Coisas que só eu sei", Editora Relógio DÁgua.
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