O vento enchia o Mundo. Mal deixava
lugar para a tremenda voz das ondas.
Mas era o Mar apenas que se ouvia.
Sebastião da Gama
Passados que foram tantos anos, a felicidade, que me tomava logo que chegava à praia, está tão presente e nítida que quase sinto o coração a bater forte no meu corpo de menina. Não sei quantos anos tinha, quando vi o Mar pela primeira vez. Se não soubesse que os olhos de uma criança, com poucos meses, não guardam memória, poderia afirmar que descobri o Mar no meu primeiro dia de vida. E foi uma paixão à primeira vista. Imediata. Estabelecemos, sem qualquer titubear ou fugaz insegurança, uma relação que dura até hoje.
Tenho-o diante de mim , todos os dias. Enamorados, continuamos juntos. E quantas histórias temos vivido: tantas e tamanhas que não haverá espaço e tempo que permitam pô-las todas, em letra. Algumas tentarei dar-lhes forma nestas páginas. As outras serão sempre um património que nos pertencerá: a mim e ao mar que me namora. (Acredito e prefiro não dizer que sou eu a namorá-lo.)
Como me surgem reais as palavras de Manuel António Pina:« Parece que crescemos mas não/somos ainda do mesmo tamanho./ As coisas que à nossa volta estão/é que mudaram de tamanho.»
O mar era (e é ) tudo o que me fazia sentir vária. Assim que chegava à praia e a espuma daquele imenso e respeitoso Mar me beijava os pés, tudo logo se transformava. Aquilo era o chão que sempre desejara. Nem o quebrar forte das ondas me intimidava e nem o frio ou o tilintar dos ossos se sentiam. Era o Mar.
O Mar que me encantava desde o primeiro dia em que se deu o milagre do seu achamento por mim.
Todos os verões passávamos uma grande temporada na Praia. O mês de Setembro fazia sempre parte dessa temporada, além de largos dias do mês de Agosto.
Enquanto vivi na Quinta, era a Póvoa do Varzim a nossa praia. Os meus pais tinham os amigos que, com eles, se acertavam para passarem o mesmo período na praia. Era uma longa fila de barracas ocupada por famílias conhecidas ou/e amigas. Alinhava-se em frente ou junto ao Diana Bar. Para nós crianças, era o tempo do reencontro e do convívio. O tempo que nos trazia os amigos e o Mar. Um tempo que nos marcaria de diferente vivência. Estar na casa da praia, não era comparável a tempo algum passado na Quinta. Todos os encantos e ritos eram, em tudo, diferentes, ou apenas outros. E como nos atraíam e nos faziam sentir seres ainda mais felizes.
(...)Para nós, a vida na praia orquestrava-se melodicamente. Quero eu dizer, que tudo era uma celebração harmoniosa. Um tempo que corria célere e que nos deixava uma saudade que se consumia o ano inteiro. Apesar das inúmeras visitas que fazíamos à Praia , ao longo do ano, não existia qualquer termo de comparação com esses meses de autêntico festim .
Além de toda esta panóplia de jogos, havia momentos de leitura de contos e pequenas histórias que deliciava a nossa capacidade criativa.
Voltemos à Praia e a todo o fascínio que ela encerrava. De manhã, cerca das 9h00, partíamos alinhados para a praia que ficava ali, a meia dúzia de metros da casa. Era a minha Mãe que sempre nos levava, acompanhada pela Fernanda. O meu pai só aparecia mais tarde. Desconfio que ficava a dormir.
Assim que se dissipava aquela neblina matinal, o esplendor resplandecia pela praia. As águas surgiam no brilho que lhes davam os raios de Sol. E se estavam apaziguadas eram de um azul tão celeste que nem o céu lhes fazia inveja. Quebravam-se lânguidas em ondas que se desfaziam num longo colchão de espuma, na areia. E ai de mim, criança afortunada, a quem permitiam lançar-se para a beira-mar para um primeiro abraço ao Mar. Toda a espuma desse colchão invisível se desfazia nas minhas mãos e adornava os meus pés. Era o Mar que me acariciava. Sem ele, tudo deixaria de existir. Sem o sentir, a praia perdia-se.
Juntos, irmãos e amigos , distribuíamo-nos em linha paralela com o Mar. Chapinhávamos e deslizávamos deliciados naquelas águas que , para nós, nunca foram hostis: tanto em temperatura quer em força. Era um ritual que se repetia sempre que o tempo o permitia. Mais tarde, seria a hora do primeiro banho. A Mãe como sempre supervisionava. À medida que fomos crescendo, os banhos alargavam-se em tempo e autonomia. Entretanto, brincar com a água, à beira-mar , longe da rebentação, foi sempre a maior actividade. Aí, o tempo não tinha contagem. Parava no relógio que nos regulava. Era, sempre, necessário alguém nos fazer voltar para junto da barraca, a pretexto de qualquer razão maior.
(...) A Póvoa era a praia com o Mar. O Mar de todas as cores. O Mar de dias de calmaria ou de dias de ira. Todo o fascínio estava nesse manto imenso que se estendia para lá do horizonte. Um fascínio que nunca me abandonaria, que nunca se esgotaria em mim. Vê-lo, amá-lo em afagos diários era o prémio maior das férias de Verão . Tudo o resto era acessório, ferido de uma efemeridade indeclinável."
Maria José Vieira de Sousa, in "O livro que já escrevi", Maio de 2018, pp 69-71,80-86,106
Passeio Alegre |
Passeio Alegre |
Diana Bar , Póvoa do Varzim |
Avenida dos Banhos, Póvoa do Varzim |
Durante aqueles anos poveiros, fomos criando laços com muitas outras crianças, filhas ou familiares de amigos dos meus pais. O dia um de praia era um dia de grande explosão emocional. Não há como as crianças para se regozijarem e se cumprimentarem sem os formalismos redutores que atrofiam as manifestações entre os adultos.
Era uma lengalenga gostosa de saudações que se generalizava, assim que o reencontro se ia alargando. Muitos de nós tínhamos crescido e havia tempo que não nos víamos. Outros eram mais próximos e , por tal, existia um convívio mais frequente. No entanto, estar na Praia fazia, de todos nós, velhos parceiros em situação semelhante. Ali , era o local que nos rejuntava para grandes dias e grandes diversões repartidas.
A parceira que mais nos impressionou foi uma refugiada húngara. Era uma menina com mais uns anos do que nós. Tinha sido acolhida por uma família amiga dos meus pais. Nos primeiros anos , falava mal o nosso idioma, passando com o decorrer do tempo a dominá-lo com brilhante segurança e correcta articulação.
Não recordo, com total certeza , o seu nome, mas creio ser Judit. Pois a Judit tinha uma estatura muito mais volumosa que a nossa. Quase nos dominava em tamanho e peso. Era , porém, uma menina doce e afável que participava em todas as brincadeiras que eram muitas. Naquele tempo, além da bola ( do mesmo género da famosa bola Nívea que desapareceu) com que fazíamos improvisados e anacrónicos jogos de voleibol a pares, havia o jogo do prego, da cabra-cega, da batata quente, da macaca que era feito na areia molhada com uma concha grande ou um búzio ou um pequeno seixo achatado a substituir a pedra habitual, saltar à corda e as infindáveis e tentadoras construções na areia. Cada um tentava desenvolver o maior e mais impressionante projecto que acabava sempre por ser destruído ao fim do dia, com um prazer selvagem que qualquer criança estimula.
A Judit participava em tudo, com elegância e gentileza. O que mais me confundia nesta menina era o pavor que a acometia, quando, muito raramente, nos sobrevoava um avião e se ouvia o ruído do motor. Atirava-se para o chão , tapava os ouvidos, gemia e agitava-se como estivesse a ser vítima de uma convulsão. Atentos, os familiares adoptivos vinham , de imediato, com uma manta em que a enrolavam e levavam-na para o interior da barraca. À medida que fui crescendo, fui entendendo que tinha havido uma nefasta guerra mundial que marcara profundamente aquela menina. Os aviões, que despejaram bombas sobre o seu país, vinham em som e ruído até ali, sempre que passava qualquer um.
Naquele tempo, não havia psicólogos e , por tal, não se atribuía apoio psicológico como hoje tão apraz fazer. As sequelas eram tratadas dentro de casa. Com carinho e muito afecto familiar. Creio que muitas delas ficaram para sempre e que a Judit, esteja onde estiver, ainda convive com elas.
Sei também, que regressou à família que se rejuntou, após longos e sofridos anos de separação . Natural da Hungria, país que viveu duas grandes tragédias em duas décadas sucessivas, não terá sido fácil esta reaproximação familiar.
Eram muitos os dias em que aquele mar se deixava ficar , pela manhazinha, escondido por uma neblina quase transparente . Para mim, ele ainda não acordara e permanecia embrulhado num grande lençol branco. Talvez gostasse de dormir como o meu pai.
Mas eu sabia-o lá. Esperava-nos para acordar. E nem assim deixava de me seduzir.
Havia um surdo e rouco bramido que se escutava durante a noite e que permanecia pelo raiar da manhã. Era um som que se foi tornando familiar com o tempo. Ainda hoje o ouço, aqui, em casa, nas noites de vaga e de alguma invernia. Lá , era, porém, habitual e frequente em qualquer época do ano. O mar da Póvoa era um mar bramido.
Juntos, irmãos e amigos , distribuíamo-nos em linha paralela com o Mar. Chapinhávamos e deslizávamos deliciados naquelas águas que , para nós, nunca foram hostis: tanto em temperatura quer em força. Era um ritual que se repetia sempre que o tempo o permitia. Mais tarde, seria a hora do primeiro banho. A Mãe como sempre supervisionava. À medida que fomos crescendo, os banhos alargavam-se em tempo e autonomia. Entretanto, brincar com a água, à beira-mar , longe da rebentação, foi sempre a maior actividade. Aí, o tempo não tinha contagem. Parava no relógio que nos regulava. Era, sempre, necessário alguém nos fazer voltar para junto da barraca, a pretexto de qualquer razão maior.
Maria José Vieira de Sousa, in "O livro que já escrevi", Maio de 2018, pp 69-71,80-86,106
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