quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Nova obra de Eugénio Lisboa no prelo


Está no prelo  uma nova obra de Eugénio Lisboa , uma outra  "masterpiece" para competir  com a sua antecessora " Acta Est Fabula",  publicada  em sete luminosos volumes.  Este novo  magnum opus constitui um extenso Diário, escrito ao longo de décadas,  cujo primeiro volume sairá em breve, com a chancela  da  Opera Omnia. Espera-nos a singular possibilidade de uma outra aprendizagem do mundo, através do olhar perspicaz e arguto deste  ínclito escritor . Aguardamo-la, com impaciente curiosidade e indelével  regozijo.
Regressamos , hoje, ao V volume das suas Memórias, para recordarmos a  preciosa clareza e a despretensiosa erudição  que caracteriza   o discurso diarístico de Eugénio Lisboa. Com a sagacidade de  intelectual brilhante e  o encanto de  homem simples, regista, interpreta, analisa, formula e repensa  ideias e acontecimentos  que encheram os seus  dias.  



PÁGINAS DO DIÁRIO
(10.01.96 - 27.05.96)

10.01.1996, Lisboa 
"Caem toalhas de chuva sobre uma Lisboa cinzenta e tristonha. As notícias são de desastre e estragos infindáveis. Na televisão, os políticos falam com ar grave e prenhe. “Dizem coisas”, como a irmã (ou tia) Georgina, do Raul Solnado, gostava de dizer. O Jim anda atrás de mim, moendo-me a molécula. Vou dando vazão, sem grande vontade, a alguns compromissos: um prefácio, uns poemas para uma revista e umas provas que vou adiando (onde já vai o tempo em que revia provas com sofreguidão, a ver se o livro saía depressa…)
Portugal é um país pequeno, pobre, tristonho e, frequentemente, mesquinho. Onde se vê, de modo mais duro, impiedoso e desnudo, o “struggle not for life but for territory” é na administração pública. Mas é um velho enredo balzaquiano que já nem sequer me interessa observar. É antigo, gasto, ultra-mesquinho, nada estético. E tão inferior, que me humilha participar nele, mesmo involuntariamente. É os carros para os senhores directores gerais, é os carros para os gabinetes, é os carros para os motoristas e os motoristas para os carros. E há quem viva disto, para isto – nunca contra isto. Estou farto de tudo isto, não estou nisto, não estou sequer para fingir que dou importância a isto. De cada vez que há uma tomada de posse, dá-me vontade de vomitar ver ali, a arejarem a pluma, com ar de infinita importância, dúzias de indivíduos que, amanhã, depois de reformados, ninguém conhecerá e ninguém cumprimentará. A comédia humana, como tudo, gasta-se, repete-se e torna-se sem interesse. Nem para romanceco serve. A luta pelo poder (e pela visibilidade) é um tema que já deu o que tinha a dar. E quando se processa, dentro do contexto pífio de um Portugal infinitesimal e pelintra, o interesse é ainda mais reduzido. A dança das vaidades, nas salas da administração pública, nem sequer atinge a grandeza típica do grotesco: é apenas pequeninamente cocasse.
Leio um belo romance: Birdsong, de Sebastian Faulks. Mergulhado nele, esqueço Portugal e os portugueses. Esqueço-me de mim.
(…)
Ontem, à tarde, reunião com Guilherme d’Oliveira Martins, no Ministério da Educação. Estávamos presentes o embaixador Moya Ribera (embaixador junto da UNESCO, em Paris), a Dra. Maria de Lourdes Paixão, o Dr. Lopes Serrado e eu, pela Comissão Nacional da UNESCO. Falámos de projectos da Comissão para 1996, apesar da falta de dinheiro. Foi uma reunião afável e o Secretário de Estado prometeu o envolvimento e o apoio do ME.
02.02.96, Barcelona 
Há quatro dias na capital da Catalunha. Intervalo na lufa-lufa de Lisboa, onde descobri, para minha não pequena surpresa, que tenho a tensão arterial elevada (coisa que não me acontecera, até há bem pouco tempo).
A mesma impressão de há cerca de um ano: cidade bela e aprazível de largos e atraentes boulevards. E a Sara: autêntica boneca viva e inteligente. A Geninha arranjou emprego num editor de banda desenhada e desembaraça-se admiravelmente por esta Barcelona fora.
No sábado (anteontem), visita a Besalù e Figueras (terra natal de Salvador Dali). Visita ao Museu Dali, por si próprio planeado, para sua maior glória. Tudo em grande, tudo à dimensão da sua megalomania e do seu incontestável génio (agudamente patológico e alienado – mas génio; ou génio, bem servido pelo agudamente patológico e alienado).
Em Besalù, no restaurante em que almoçámos, deixei, por esquecimento, duas garrafas de um magnífico vinho catalão, que ali tinha adquirido. O que nos forçou a voltar lá, depois da visita a Figueras.
Hoje de manhã, deambulação desenfastiada pelo Passeio Garcia, visita aos Happy Books, onde comprei Lorca, Galdós, Baroja, Julián Marias e Octavio Paz. De Julián Marias, uma Biografia de la Filosofia e um esplêndido La Educación Sentimental (sem falar num volume de artigos de Larra, de que já li um belo texto sobre a literatura espanhola contemporânea dele). Almoço com a Geninha e a A. e visita a uma exposição de Felix Mas, com a Sara acrescentada ao baralho. Felix Mas: uma espécie de síntese de Klimt com pré-rafaelismo. Sedutor, belo, levitantemente subtil, mas só inovador à rebours: porque, hoje, mais ninguém faz daquilo, fazê-lo é infringir, logo, é andar em frente como quem recua…
A Larra, como a Unamuno, doía-lhe a Espanha. A mim, dói-me Portugal e Moçambique. Mas suspeito que a dor deles era em grande: era uma dor em dimensão que os engrandecia. A minha é mesquinha e humilha-me. Saio dela, mais pequeno, mais avinagrado e mais estragado. Não é, em suma, um sofrimento redentor. É um sofrimento morto. Como o das irmãs religiosas do Port-Royal, de Montherlant.
Enquanto a Sara toma banho (benho, como ela diz, na sua pronunciazita deliciosamente distorcida), oiço sonatas de Beethoven, para violoncelo, escrevo estas notas e vou regressar à Educación Sentimental, do Marias. Como é bom ler esta prosa de ideias, cuja vocação visível é a profundidade e a clareza. Nas mãos de um ensaísta português, toda esta riqueza, abundância e sedução dariam em pretensiosismo, confusão e bagunça.

07.02.96, Barcelona 
A nossa visita chega ao fim. Regressamos amanhã a Lisboa e mal chegado, rumarei para o Porto.
Visitámos ontem o novo Museu de Arte Contemporânea (disse, brincando, que era um Museu de Arte Extremamente Contemporânea). A arquitectura é belíssima, limpa, escorreita, de uma simplicidade genial. O conteúdo… Apetece-me, sobretudo, sublinhar uma obra impressionante de Kieffer, que já em Washington me captara o olho e a imaginação. Construtor de apocalipses? Ou apenas reflector (em avanço) dos apocalipses que se avizinham?
De resto, tem sido tudo preguiça, ramblanços e Sara. E pouco mais.
No dia em que chegámos a Barcelona, cruzei-me, na rua, com o Fernando Pessoa. Ou era ele ou era um duplo. Mas acho que era ele.
Num livro de Francisco Umbral, que hoje comprei, num texto dedicado a Ruben Dario, o autor diz, deste, que vivia “congestionado de transcendência”. O mesmo se poderia dizer de Pascoaes, mas acho que muito menos de Pessoa. Pessoa vivia tolhido de “estranheza”, mas não de “transcendência”. Sá-Carneiro, sim. Régio, sim. Fernando Pessoa, duvido. [2015: Régio, sim, disse eu, embora não vivesse exclusivamente de transcendência: havia, nele, “mais mundos”].
Ortega y Gasset a Julián Marias: “Unamuno para usted es un tema. Para mi es un problema.” Muito do discurso literário português é, para mim, mais um problema do que um tema.
10.02.96, Porto (Matosinhos) 
Aqui desde anteontem. O simpósio sobre o neo-realismo começou ontem. Tem sido divertido. Depois de duas interessantes exposições, uma de António Pedro Pitta  (sobre a reflexão estética de João José Cochofel), outra de Rosa Maria Martelo (sobre João José Cochofel e Carlos de Oliveira), intervim, para dizer – um tanto à laia de provocação, mas não só – que, ao lermos os teóricos mais inteligentes e articulados do neo-realismo (Cochofel, Dionísio) e da presença (Régio), afigura-se-me que o conflito entre ambos os movimentos não é assim tão grande. A música que se ouve [nos melhores textos de uns e dos outros] é muitas vezes a mesma. Como Rosa Maria Martelo se referisse à poesia da presença em termos de uma poesia ocupada com o “transcendente”, tive que lhe observar que isso não era bem assim. Que muita da poesia da presença nada tinha que ver com o transcendente e que, mesmo na de Régio, havia “mais mundos”. De resto, era ver como a Igreja, pela pena de Manuel Antunes, “virara”, na atitude tomada com Régio, a partir de A Chaga do Lado: a violência da sátira regiana aos poderes deste mundo (incluindo o da Igreja Católica) tirou, para sempre, aos que tentavam “apanhá-lo”, quaisquer ilusões a esse respeito. [2014: Poderia, nessa altura, ter acrescentado que toda a obra ficcional de Régio estava cheia de observações sobre a vida bem terrena – nada transcendente – de um grande número de personagens masculinos e femininos; e que a sua poesia, repito, nem só de transcendência se alimentava…]
O curioso é que Alexandre Pinheiro Torres me apoiou e Eduardo Lourenço se levantou para, enfaticamente, me contradizer: nada de casamentos póstumos entre a presença e o neo-realismo. O que levou o Alexandre, não sem humor, a responder-lhe que me dava a mim razão, até porque o casamento fora ântumo e não póstumo… O que era, exactamente, o meu ponto. [2014: Nesta altura do prélio, houve um outro incidente curioso, que, na altura, aqui não registei. Já não sei bem quando, “meti-me” com um conceito do Eduardo Prado Coelho, que falava no “imaginário do neo-realismo” (o “imaginário” era, por então, a tarte-à-la-crème do discurso crítico lusíada, em clássica importação de França…) Nesta altura do campeonato, era obrigatório, em conferência ou conversa, falar-se, irreflectidamente, de “imaginário”: imaginário marxista, imaginário capitalista, imaginário presencista, estadonovista e por aí fora. Eu observei, perfidamente, que talvez fosse mais correcto falar-se no “ideário marxista” ou no “ideário neo-realista”, visto que era de ideias e não de imagens que se tratava… O Eduardo Lourenço ficou visivelmente furioso, mas teve a lisura de não responder…]
O Pedro Calheiros veio dizer-me que as Letras da Universidade de Aveiro aprovavam, por unanimidade, a minha nomeação, ou para Professor Visitante ou Professor Convidado. Vamos agora ver as burocracias. Se assim for, estou tentado a mandar às ortigas a Comissão Nacional da UNESCO. [2014: O que se passara fora isto. Pouco antes, eu fora a Aveiro, fazer uma comunicação sobre “as duas culturas”, integrada num colóquio participado por cientistas portugueses residentes (ou tendo residido) no estrangeiro. Estava presente o reitor, Professor Júlio Pedrosa, que, depois de me ter ouvido, me enviou um convite para leccionar na Universidade de Aveiro, como Professor Catedrático (Visitante ou Convidado). Depois de pensar algum tempo, resolvi aceitar.]"
Eugénio Lisboa, in  Acta Est Fabula, Memórias V - Regresso a Portugal (1995-2015), Editora Opera Omnia, pp. 55, 56,57,58,59

Sem comentários:

Enviar um comentário