Por Marcelo Franco
Há algo de muito íntimo em receber um livro com dedicatória: nestes tempos dominados pelo computador e pela pressa, ler algo escrito pelo próprio punho da pessoa que se estima pode ser uma experiência rara e emocionante
“Para Mercedes, por supuesto”: assim Gabriel García Márquez dedicou, para minha inveja, “O Amor nos Tempos de Cólera” a sua mulher, escancarando todo o seu amor com apenas duas palavrinhas — “por supuesto”. Na edição brasileira que tenho deste livro que há muito tempo acompanha os meus devaneios literários, meu pai escreveu a minha mãe: “Para você, o amor nos tempos do… amor” (romantismo que compensou dedicando “A Terrorista”, de Doris Lessing, com ironia — “Leia, mas não seja”. O conselho deve ter sido seguido, pois o casamento permaneceu firme). Já noutro exemplar, espanhol, um grande amigo me homenageou: “A mi hermano Marcelo Franco, ésta que es la más bonita novela escrita en Latinoamérica en la lengua de Cervantes”. Portanto, mantenho três edições do livro de García Márquez nas minhas estantes sempre atulhadas: uma toda anotada por mim e as duas com dedicatórias — vício de bibliómano.
Ler com atenção e coleccionar dedicatórias é com certeza um dos sinais distintivos da bibliomania. Na verdade, uma das formas de reconhecer um bibliomaníaco é o facto de que lemos de fio a pavio qualquer livro: as orelhas, a dedicatória, as notas de rodapé, as referências bibliográficas e até o cólofon. Holbrook Jackson, autor de uma preciosidade criminosamente ainda não traduzida no Brasil, “The Anatomy of Bibliomania”, reservou um capítulo inteiro de seu livro para discorrer sobre o prazer de coleccionar livros com pedigree, aqueles que têm dedicatórias ou anotações de quem os possuiu. No meu caso, não sou excepção à regra: venho há anos comprando livros dedicados pelos próprios autores e consegui alguns itens dos quais me orgulho com exagero talvez doentio: Pedro Nava, Afonso Arinos, Erico Verissimo, Rubem Braga… Mas se esta faina de acumulação é estranha, Holbrook também nos lembra que a bibliomania causa menos males do que, diz ele, a “sanidade dos sãos”. Acho que procede (aliás, é curioso que a bibliomania seja vista com estranheza enquanto a cinefilia desfruta de status de actividade essencialmente intelectual. Mas não se animem os cinéfilos: a julgar pelos cadernos de cultura dos jornais, a leitura de quadrinhos já está quase ocupando o seu lugar).
Tenho fama de ser bom “dedicador” de livros. Amigos pedem-me conselhos quando se sentem embaraçados com a folha em branco e a necessidade de escrever nela algumas linhas para que o presente fique, por assim dizer, mais personalizado. Creio mesmo que esta minha pequena glória não seja imerecida e, para mantê-la, tenho minhas regras e truques. Revelo aqui apenas um: em desespero, grito por socorro — por exemplo, adaptei para uso próprio, muitas vezes, aquela dedicatória feita por meu pai, “Para você, o amor nos tempos do… amor”. Mas, para minha danação eterna, tendo à verborragia quando Cupido entra em cena. Há alguns anos, quando aquela que desorganizou o que estava organizado entrou em minha vida, passei a dar-lhe dezenas de livros, todos com longas e digressivas dedicatórias. Em troca, ganhava dela livros e presentes com cartões — quando havia algum cartão — com poucas linhas, geralmente algo directo do tipo “Para Marcelo” ou “Feliz aniversário”, e essa concisão, comparada com os meus cartapácios, me roubava noites de sono. Não gosto de pensar que meu caos interno tenha ficado preservado em dezenas de dedicatórias amontoadas em estantes alheias (há aí, percebo agora, uma subtil e freudiana forma de poder na relação entre um verborrágico e uma comedida). Contudo, noutras vezes acertei, ainda que também estivesse confuso: a uma mulher especial que meus transtornos não permitiram que fôssemos além, digamos, de uma espécie de modus vivendi sentimental, dei “Amor em Veneza”, de Andrea di Robilant, e, aproveitando o próprio título impresso na folha de rosto, escrevi: “Para B., AMOR EM VENEZA — e também em Goiânia”.
Em “O Complexo de Portnoy”, de Philip Roth, estruturado como se fosse uma longa sessão de análise, apenas repeti a única frase que o psicanalista diz a Portnoy depois de mais de duzentos e cinquenta páginas de reclamações do seu paciente (talvez, imagino, como reconhecimento da minha própria tagarelice): “Para B.: agora a gente pode começar?”. Tenho o consolo de pensar que ela, daqui a muitos anos, possa dar de cara por acaso, numa tarde preguiçosa ou numa noite insone, com esses livros perdidos nas estantes e, lendo o que escrevi, sinta condescendência pela minha desorganização sentimental, ternura pelo pouco que tivemos e uma vaga decepção pelas promessas não cumpridas dessas dedicatórias.
(Sigo pela senda romântica e me traio revelando outro truque: para os namorados, os sonetos de amor de Camões nunca falham. Ninguém resistiria a estes versos, ainda que eventualmente transcritos sem menção ao autor: “Mas, conquanto não pode haver desgosto/Onde esperança falta, lá me esconde/Amor um mal, que mata e não se vê:/Que dias há que na alma me tem posto/Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei por quê”. Ou estes: “Porque é tamanha a bem-aventurança/O dar-vos quanto tenho e quanto posso/Que, quanto mais vos pago, mais vos devo”. Usem, mas não espalhem a ideia. Ou usem e digam que os versos são do Renato Russo.)
Há um clássico problema decorrente de dedicar livros: pode-se encontrá-los num alfarrabista. Como agir? Bem, há o método “Naipaul” e o método “Shaw”. Parece que V.S. Naipaul teria encontrado um livro por ele dedicado a Paul Theroux, seu amigo fraterno transformado desde então em inimigo íntimo. Já George Bernard Shaw viu num alfarrabista um livro que dedicara certa vez a alguém. Comprou-o e dedicou-o novamente — a primeira dedicatória: “Para …, com afecto, G.B.S”; a segunda: “Para …, com renovado afecto, G.B.S.”.
Se essas histórias são realmente verdadeiras, não sei, mas um passeio por alfarrabistas em Goiânia mostra amizades e amores traídos à venda e, o que talvez seja pior, expostos à permanente curiosidade de quem nem mesmo pretende comprar aqueles livros. Recebi de amigos algumas pérolas com dedicatórias, como “Marcelo, se já tiver este livro, devolva-o a mim”, ou outra, feita num exemplar de “Jaime Bunda, o Agente Secreto”, do angolano Pepetela, que o pudor, meu casto leitor, me impede de transcrever aqui. Se fosse eu o autor de tão elegantes linhas, não gostaria de vê-las tornadas públicas. Talvez a solução seja usar o clássico “Com amizade” e assinar apenas o primeiro nome, o que diluiria a possibilidade de reconhecimento.
Percebo que derivei pelo rumo das dedicatórias feitas por quem presenteia o livro, então voltemos à vaca fria das dedicatórias feitas pelos próprios escritores. Tenho as minhas preferidas. De imediato, lembro-me de “O Pequeno Príncipe”. Se o encanto do livro perdeu-se por conta das excessivas referências em concursos de miss, ao menos ainda podemos nos deliciar com a dedicatória de Antoine de Saint-Exupéry a Léon Werth. Primeiro, ele pede perdão às crianças “por dedicar este livro a uma pessoa grande”; depois, explica os seus motivos; por fim, ele se emenda: “Todas as pessoas grandes foram um dia crianças. (Mas poucas se lembram disso.) Corrijo, portanto, a dedicatória: a León Werth quando ele era pequeno”.
Muitas outras são as dedicatórias famosas na literatura mundial, desde a de Cervantes, que suplicou longamente ao Duque de Béjar, Marquês de Gibraleón, Conde de Benalcázar e de Bañares, Visconde de Puebla de Alcocer, Senhor das Vilas de Capilla, Curiel e Burgillo para que recebesse o seu “O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha” sob sua protecção, até a de Baudelaire, que encerrou o poema-dedicatória de “As Flores do Mal” com esta quadra (na tradução de Ivan Junqueira): “É o Tédio! — O olhar esquivo à mínima emoção,/Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado./Tu conheces, leitor, o monstro delicado/— Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”. Da pusilanimidade lamuriante à ofensa descarada, pode-se dizer. No Brasil, fiquemos com Machado, que fez Brás Cubas iniciar as “Memórias Póstumas” com uma mórbida — e hoje famosa — dedicatória: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico com saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”. O grande Harold Bloom, que considera Machado de Assis uma espécie de milagre, recusa-se a citar essa dedicatória em “Génio” por achá-la “terrível demais”. Não me consta que o verme tenha reclamado.
Mas esses momentos de pura literatura na forma de dedicatória são excepções. Um rápido olhar sobre os livros atulhados na imensa bibliopilha de livros não lidos em que se transformou meu apartamento parece mostrar que mesmo os grandes escritores são adeptos da simplicidade na hora de dedicar os livros que, com certeza, custaram a eles angustiosas horas de ponderações sobre le mot juste — há uma infindável colecção de dedicatórias reduzidas ao mínimo possível: “Para Ida” (Ralph Ellison, “O Homem Invisível”); “Para H.L.” (Philip Roth, “Nêmesis”); “A Phil Stone” (William Faulkner, “O Povoado”); “A Pilar” (José Saramago, “Todos os Nomes”). Às vezes pode ser divertido, mesmo nas mais sucintas dedicatórias, acompanhar as mutações de afecto, como no caso de Hemingway, que começou com “Este livro é para Hadley e para John Hadley Nicanor” (“O Sol Também se Levanta”), homenageando a primeira mulher e o filho, passou por “Este livro é para Martha Gellhorn” (“Por Quem os Sinos Dobram”), sua terceira mulher, e terminou com “A Mary, com amor” (“Do Outro Lado do Rio, Entre as Árvores”), a quarta e última esposa. Não sei se Vinicius de Moraes seguiu o mesmo exemplo, mas, se o fez, talvez não tenha escrito livros suficientes para todas as musas.
Porém, há quem consiga endurecer sem perder a ternura. A crítica literária Cristina Nehring, no curioso “Em Defesa do Amor”, não deixa de ser amorosa ao mesmo tempo que é sucinta: “Transeunte, amante, guerreiro, idealista: este livro é para você”. E há o oposto das homenagens mínimas, os livros que são eles mesmos longas dedicatórias, geralmente escritos para narrar histórias de pessoas queridas que já morreram ou que estão doentes: o jornalista Calvin Trillin, por exemplo, escreveu o belo e surpreendentemente engraçado “Sobre Alice” depois da morte de sua esposa, que foi o que também fez Joan Didion, autora de “O Ano do Pensamento Mágico”, sobre a morte do marido e a doença da filha. Mas o campeão da categoria de dedicatória em forma de livro é, claro, “Carta a D.”, que o filósofo André Gorz escreveu para sua moribunda companheira de toda a vida — o livro começa com estas palavras que nunca deixam de me emocionar: “Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher”. Uau! (Gorz depois fez outra, digamos, dedicatória à esposa desenganada: matou-se com ela num pacto suicida.)
Há algo de muito íntimo em receber um livro com dedicatória: nestes tempos dominados pelo computador e pela pressa, ler algo escrito de próprio punho por pessoa que se estima pode ser uma experiência rara e emocionante. E há sempre o prazer de tentar descobrir novos significados naquilo que a aparente simplicidade das palavras pode ocultar por tartufice. Anne Fadiman, autora de “Ex-Libris: Confissões de Uma Leitora Comum”, um livrinho que eu lamento não ter escrito, lembra que escrutinar as palavras da dedicatória feita por uma pessoa amada é exercício comum de namorados aflitos — a depender da ênfase dada a cada palavra, declarações de amor eterno podem surgir. Eu mesmo passei noites e noites na companhia de Jacques Derrida para desconstruir uma longa dedicatória que trazia, no segundo parágrafo (havia cinco), estas palavras: “Gostar de beleza é fácil. E, surpreendentemente, quando ela se apresenta de maneiras inesperadas é ainda mais fácil”. Ainda não entendi por que o inesperado seria mais fácil, e deve ser por isso que perdi a moça e mantive o livro (e creio que fui chamado de feio). Também já ganhei uma colectânea das tragédias de Shakespeare na qual uma esperançosa admiradora escreveu: “Para Marcelo, a fim de que um dia entenda”. Passaram-se quase vinte anos, entro a passos largos na meia-idade e ainda não entendi. Aliás, não entendi nem mesmo o que seria aquilo que deveria tentar entender — não entender tem sido o meu fado.
Outra digressão: é também Fadiman, citando o nosso já mencionado Holbrook Jackson, que lembra a proeza de Lorde Byron escrevendo duzentas e vinte seis palavras para a Condessa Teresa Guicciolini num exemplar de “Corinne”, de Madame de Staël. O fogoso poeta terminou sua dedicatória com um apelo de fidelidade: “Eu mais do que a amo, e não consigo parar de amá-la. Pense em mim algumas vezes quando os Alpes e o oceano nos separarem — mas eles jamais o farão, a menos que o desejes”. Falta-me o título de nobreza, mas ao menos empato com Byron em matéria de verborragia e excessos melosos.
Como tudo na vida, há regras a serem obedecidas, pois descubro — ainda no livrinho de Fadiman — que existe uma etiqueta para a dedicatória: devemos escrever no falso-rosto, pois a folha de rosto é reservada para o autor do livro. Ora, ora. Eu, como a própria Fadiman, venho há anos estragando centenas de folhas de rosto — quando estou inspirado, começo no falso-rosto, passo ao seu verso, continuo na folha de rosto e de novo no verso. Volto às minhas estantes e vejo, surpreso, que muitos dos livros a mim dedicados o foram correctamente. Por que ninguém me disse isso antes? (A propósito: a suprema falta de elegância seria dedicar um livro de etiqueta na folha de rosto?)
Sim, tudo isso é de pouca importância e pequeno e talvez seja somente o exercício de minúsculas vaidades em agitações desnecessárias, mas nossas glórias e tragédias quotidianas são também pequenas e pouco importantes (foi Shakespeare quem escreveu que as maneiras como falhamos a vida são a própria vida?). Por isso, sei que tenho em mim uma dedicatória ainda não escrita e que porei num livro que ainda não comprei e com o qual presentearei uma pessoa que ainda não conheci — e meu pequeno momento de sinceridade e desnudamento poderá ser uma aragem numa calmaria entediante ou uma bonança depois de um cataclismo. Ou, caso eu consiga transmitir pelas palavras meus sentimentos mais profundos, talvez fique, tal qual marca feita com ferro em brasa, como memento do encontro da minha vida imprecisa e vã com essa outra vida que terá me levado a escolher um livro e nele depositar as minhas próprias palavras, algo sagrado para mim, que sempre tento, e não consigo, entender os mecanismos de funcionamento do mundo nos livros. E, não fôssemos nós humanos tão pouco atentos ao próximo, tudo isso poderia ser também — ah, suprema glória! — sagrado para quem receber na forma de dedicatória meus pequenos e sobretudo tristes instantes de fraqueza e, compreendido o carácter ritualístico de um gesto só na aparência menor, porventura minhas palavras possam abrir uma brecha no entendimento de tal pessoa por ora apenas imaginada e iluminá-la para que perceba que se render ao amor ainda pode ser uma das riquezas de nossas vidas. Sim, há esse livro no qual escreverei palavras talvez aflitas ou talvez resignadas, e haverá uma pessoa que as receberá — por supuesto." Crónica de Marcelo Franco e Pinturas de Francine Van Hove, Revista Bula, Brasil.
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