Romance e romances: a arte da leitura
Por Jacinto Rêgo de Almeida
“Ao longo do tempo, alguns escritores debruçaram-se sobre a leitura do romance, a origem da ficção e o papel do leitor. Mas não conseguimos chegar ao "centro secreto" da questão. "Centro secreto" é a expressão usada por Orhan Pamuk em O romancista ingénuo e o sentimental, para sublinhar a diferença entre o romance e as outras narrativas literárias. Segundo o escritor turco, o romance, e só ele, tem um centro secreto. Que centro é esse? De que é feito? Trata-se de um centro real ou imaginário? Tolstoi chamou a esse centro de "sentido da vida". O leitor, ainda segundo Pamuk, age como um "caçador que vê um indício em cada folha e em cada galho e os examina com toda a atenção, à medida que avança pela paisagem".
Para esse Prémio Nobel de Literatura, Anna Karenina, de Tolstoi, é o maior romance de todos os tempos e sublinha a descrição do regresso de comboio de Anna a sua casa em São Petersburgo, ao marido e ao filho, após ter conhecido Vronski em Moscovo. Sublinha igualmente a descrição de Pierre a observar do alto de um monte a batalha de Borodinó, em Guerra e paz, do mesmo escritor russo.
O leitor é alguém que observa pela janela, confortavelmente, o panorama da batalha. Está diante de uma grande paisagem pintada, não entre as palavras de um romance, acrescenta. Por outro lado, em A metamorfose, de Kafka, com sufocantes atmosferas interiores, o leitor deixa-se influenciar e procura constantemente o aprisionamento da personagem. A ilusão de que o livro nos imerge num universo tridimensional dever-se-ia à presença do centro secreto. Mais imaginário do que real.
Quando lemos um romance ocorrem dentro de nós várias sensações. Essas sensações interiores diferem do que sentimos quando vemos um filme, contemplamos um quadro ou ouvimos um poema? Um romance pode proporcionar os mesmos prazeres que a leitura de uma biografia, a visão de um filme, a leitura de um conto ou de um poema, no entanto "o efeito singular e verdadeiro da arte do romance é fundamentalmente diferente do de outros géneros literários, do filme ou do quadro", segundo Pamuk.
José Ortega y Gasset, no livro que escreveu sobre o Dom Quixote, afirma que lemos romances de aventura, romances de pouca qualidade (de amor, espionagem ou histórias de detectives) ou novelas de cavalaria para ver o que acontece na sequência da história, mas lemos o romance moderno pela sua atmosfera, o que é mais valioso. O filósofo espanhol parece portanto retirar valor à obra de Cervantes, um autor consagrado da História da Literatura.
Os alemães consideram a Bildungsroman o género mais condizente com o espírito e a forma da arte do romance. Ou seja, a obra que narra a educação e o amadurecimento de jovens personagens em sua adaptação à vida e ao mundo. O "romance de formação". É o caso de A educação sentimental, de Flaubert, ou A montanha mágica, de Mann.
E o que dizer, por exemplo, do nouveau roman de Alain Robbe-Grillet ou Michel Butor? Adiante. Ao ler um romance, sobretudo nas passagens que mais surpreendem e espantam os leitores, perguntamo-nos se a história que nos é contada é uma experiência real e em que medida é penetrada pela imaginação do escritor. (Mario Vargas Llosa, a respeito do seu primeiro romance, A casa verde, proferiu uma conferência nos EUA sobre os meandros da sua consciência que teriam levado à trama e personagens desse seu livro passado na Amazónia peruana. Trata-se da melhor reflexão divulgada a este respeito, de que tenho conhecimento, por parte de um romancista).
Perdemo-nos no romance, mas com ingenuidade pensamos que é real. A vitalidade da obra provém, em grande parte, da sua confiança em gerar esse efeito. Acreditar em ideias contraditórias. E assim, como afirma Pamuk, "uma terceira dimensão da realidade começa, pouco a pouco, a emergir dentro do leitor: a dimensão do complexo mundo do romance. Os seus elementos conflituam mutuamente, porém ao mesmo tempo são aceites e descritos". Ou seja, a leitura suspende a experiência e a recompõe em outro contexto.
Temos um outro aspecto: as personagens que lêem. "Hamlet entra lendo um livro" (sinalizou Shakespeare) ao encontrar-se com Polónio que lhe pergunta o que está a ler. O ambiente é a luta pelo poder no reino da Dinamarca. "Palavras, palavras, palavras", responde o príncipe. Marlowe, o detective privado dos roman noir de Raymond Chandler, dialoga longamente sobre T.S. Eliot com um motorista negro, antes de decifrar um violento crime em Los Angeles. A tensão entre a cultura de massas (cujo campo é a informação) e a alta cultura (inspirada na experiência) é bem mediada neste estilo de narrativa policial de origem norte-americana.
"Que livro levaria para uma ilha deserta?", é pergunta recorrente em inquéritos da sociedade de massas. Há uma relação entre leitura e ilha deserta - e Robinson Crusoé é o modelo do leitor isolado. O que ele lê dirige-se só a ele. O leitor ideal é aquele que está isolado, fora da sociedade. Podemos chegar a consensos. A literatura transmite experiência e não informação e o romance é mais eficaz quando compreende as personagens e não quando as julga.
Enfim, a intimidade que se estabelece entre o leitor e o escritor, a ilusão de que o romance que o leitor lê foi escrito unicamente para ele e a cumplicidade entre o romancista e o leitor que a obra consegue estabelecer, que ajuda o leitor a evadir-se, parecem ingredientes necessários a um bom romance. Ou, como escreveu E. M. Forster em Aspectos do romance: "O teste final de um romance será o afecto do leitor por ele".
Jacinto Rêgo de Almeida, em Crónica publicada no JL a 31.03.2015
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