Baptista-Bastos, homem da escrita e da palavra, publicou um artigo sobre a obra de Hemingway. A importância da releitura dos grandes escritores universais é um dos cânones do ensino da Literatura. Os grandes cultores da palavra foram e serão sempre óptimos leitores.
Hemingway ocupa um lugar de excelência na Literatura Universal. O rigor, a fragância, a frescura, a profundidade, a genialidade, a surpresa, a conflitualidade, a mestria, a intensa actualidade da sua escrita permanecem em toda a sua obra. Revisitá-la é um imperativo.
Hemingway: a palavra como atributo da honra
Por Baptista Bastos
"A polémica sobre o pretenso envelhecimento da obra de Hemingway não faz sentido. Como é absurda a insistência na qualificação de quem é melhor: ele, ou Fitzgerald ou Faulkner. São todos muito bons; e há mais alguns outros. Ainda há dias estive a reler "Do outro lado do rio, entre as árvores", por alguns críticos de sebenta considerado um romance menor, e voltei a regalar-me não só com a escrita, poderosa e límpida, como com a profundidade do que ele queria dizer, e disse. A influência exercida por este escritor maior e insistentemente trabalhador, é enorme e perdura. Vittorini, em Itália; Duras e Vailland e Blondin, em França; Garcia Hortelano, em Espanha, muitos outros mais, sempre se reclamaram da sua tutela. Em Portugal, Cardoso Pires e Abelaira e eu próprio lemos os livros dele com mão diurna e mão nocturna. Aliás, na parede do meu canto da escrita está uma foto de Hemingway, obtida por Youssuf Karsh, que se tornou quase mítica. De vez em quando olho-o e sorrio-lhe, como se faz a uma pessoa de família.Todos aqueles que andamos no batente da palavra devíamos, volta e meia, reler o grande escritor. Não só os clássicos, "O Adeus às Armas", "Por quem os Sinos Dobram", "Fiesta", "O Velho e o Mar"; mas, também, e talvez sobretudo, "As Verdes Colinas de África" e "Morte de Tarde". Tanto este como aquele não constituem meros exercícios de valentia (o que seria grotesco); são, isso sim, graves meditações sobre a natureza do homem, o carácter precário da vida, e a funda transcendência do homem.Não esqueçamos de que ele era leitor da Bíblia, tendência justificada e explicada pela índole da sua educação. E as leituras do texto sagrado não só lhe inculcaram a premência da morte e a fragilidade da condição humana como o ensinaram uma técnica narrativa repleta de sinédoques e de alegorias, gramaticalmente servida pela insistência nas adversativas e nas copulativas. Tal e qual como as parábolas. Além do que Hemingway era um devorador de livros, nunca ocultando a admiração por Stendhal e, um pouco estranhamente, por Pio Baroja, o espanhol que era o contrário absoluto da sua maneira de ser. A violência que ele via em Espanha era, creio, determinada pelo individualismo que reflectia a própria procura do «eu.» Associava essa tipicidade ao seu peculiar temperamento. Tomou partido pelos republicanos na Guerra Civil, o que lhe valeu o ódio dos franquistas. Escreveu textos admiráveis, pelo estilo e pela originalidade da visão, sobre o conflito espanhol. E há um, "Os Táxis de Madrid "(incluído num dos dois volumes de Hemingway by Line), uma pequena obra-prima de jornalismo e de literatura. Em quatro páginas, ele condensa o espírito e a barbaridade de uma guerra que deixaria cicatrizes nos espanhóis e no mundo.A emoção que transmitia não era fingida. Acreditava no poder das palavras e nos sentimentos que elas pudessem transmitir. Era vaidoso, impulsivo, ciumento, birrento e vingativo. E é um dos maiores prosadores da história da literatura universal. Uma obra que se renova no encontro com outros leitores de outras gerações. Quando se suicidou, por não poder escrever em consequência da destruição da memória, a revista francesa Paris-Match imprimiu um título perfeito: «O Gigante que não quis Envelhecer.» Baptista Bastos em Artigo de Opinião, publicado no DN, em 2 de Julho de 2011
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