sexta-feira, 23 de maio de 2025

Porquê esta tristeza inescapável?"


Dez razões (possíveis) para a tristeza do Pensamento
por George Steiner

1.
"Tanto quanto estamos disso conscientes, tanto quanto nos é permitido «pensar o pensamento» — regressarei a esta estranha expressão —, o pensamento é ilimitado. Podemos pensar sobre tudo e qualquer coisa. Aquilo que fica fora ou para além do pensamento é rigorosamente impensável. Esta possibilidade, que é em si uma demarcação mental, situa‑se fora da existência humana. Seja como for, não há dela qualquer prova. Perdura como uma categoria oculta de conjetura religiosa e mística.Mas poderá também figu- rar nas especulações científicas, cosmológicas, na concessão de que uma «teoria de tudo» reside fora e para além da compreensão humana. Assim, podemos pensar/dizer: «Este problema, este tópico, ultrapassa as nossas possibilidades cerebrais, seja no momento presente ou para sempre.» Mas dentro destes limites mal definidos, sempre fluídos e talvez contingentes, o pensamento não tem fim, não tem qualquer ponto — orgânico ou formalmente prescritivo — onde se deter. Pode supor, imaginar, reunir, brincar com qualquer coisa (não há nada mais sério e, em certos aspetos, enigmático do que brincar), sem saber se há, ou se poderia haver, alguma outra coisa. O pensamento pode conceber uma tiplicidade de universos com leis científicas e parâmetros inteiramente diferentes dos nossos. A ficção científica gera tais «alternativas». Um bem conhecido enigma lógico postula que o nosso universo não tem mais do que um nanos‑ segundo de existência e que a soma das nossas memórias é embutida no córtex no momento do nosso nascimento. O pensamento pode teorizar que o tempo tem um princípio ou que não o tem (decretar que não faz sentido questionar sobre o momento anterior ao Big Bang tem algo de sofisma despótico). Ele pode produzir modelos de espaço‑tempo delimitados ou infinitos, em expansão ou em contração. A classe dos contrafactuais — dos quais as frases com «se», opcionais e conjuntivas, são a codificação gramatical — é incomensurável. Podemos negar, transmutar, «desdizer» o que é mais óbvio, o mais solidamente estabelecido. A dou‑ trina escolástica, segundo a qual o único limite concebível à omnipotência divina é a incapacidade de Deus para alterar o passado, não é convincente. Podemos facilmente pensar e dizer uma tal alteração. A memória humana executa este truque diariamente. As experiências do pensamento, das quais a poesia e as hipóteses científicas são eminentemente representativas, não conhecem quaisquer limites. Aquela simples expressão monossilábica inglesa «let»(1), que precede as conjeturas e as demonstrações na matemática pura e na lógica formal, representa a licença arbitrária e a ausência de limites do pensamento, do pensamento manipulando os símbolos, do mesmo modo que a linguagem manipula as palavras e a sintaxe. O pensamento humano reflete sobre a nossa própria existência. Suspeitamos, embora sem estarmos disso absolutamente certos, que os animais não o podem fazer, mesmo os primatas que partilham algo como noventa por cento do nosso genoma. Nós podemos modelar e inventar expressões matemáticas para a «morte térmica» do nosso universo em virtude da termodinâmica da entropia. Ou podemos, em oposição, avançar argumentos para a vida eterna, para a ressurreição — um pensamento aterrador — ou mecanismos cíclicos de «eterno retorno» (como em Nietzsche). O axioma da finalidade do zero psíquico depois da morte do corpo foi rejeitado por inúmeros homens e mulheres comuns, mas também pelos criadores das religiões, por metafísicos como Platão, e ainda por determinados psicólogos, como Jung. O pensamento pode percorrer livremente a escala inteira de possibilidades. Ele pode, até antes de Pitágoras, apostar nas transmigrações da alma humana. Seja como for, não há, e não poderá haver, qualquer prova verificável. A infinitude do pensamento é um marcador crucial, talvez o marcador crucial da eminência humana, da dignitas dos homens e das mulheres, como Pascal memoravelmente o declarou («caniço pensante»). Ela assinala o que é inequivocamente humano no homem animal. Permite às gramáticas do nosso discurso articularem rememoração e futuridade, embora apenas raramente nos detenhamos para tentar compreender a fragilidade lógica do tempo futuro. O pensamento possibilita o domínio do homem sobre a natureza e, dentro de certas limitações, tais como a enfermidade e o sofrimento mental, sobre o seu próprio ser. Ele apoia a liberdade radical do suicídio, de 
interromper voluntariamente, e no momento escolhido, o pensamento. Por isso, porquê esta tristeza inescapável?"
George Steiner, in Dez razões (possíveis) para a tristeza do Pensamento, Relógio d'Água Editores, Abril de 2025, pp.15-17
(1)- Em português, o equivalente não é monossilábico: «suponhamos que». (N. T.)

Sobre o Livro: 
«Schelling, entre outros, atribui à existência humana uma tristeza fundamental, inescapável. Mais particularmente, esta tristeza oferece o fundamento sombrio sobre o qual assentam a consciência e a cognição. Este fundamento sombrio deve, na verdade, ser a base de toda a percepção, de todo o processo mental. O pensamento é rigorosamente inseparável de uma “melancolia profunda e indestrutível”. A cosmologia atual oferece uma analogia à crença de Schelling. Aquela do “ruído de fundo”, dos comprimentos de onda cósmica, esquivos mas inescapáveis, que são os vestígios do Big Bang, do surgimento do ser.»
«As ideias de Steiner revelam imparcialidade, seriedade, erudição sem pedantismo e um charme sóbrio.» [The New Yorker]
«George Steiner é talvez o último humanista. O seu pensamento, não isento de paradoxos e indefinições, revela uma enorme ternura, não apenas pela nossa espécie como um todo, mas pela pessoa. Pelo milagre irrepetível de cada ser humano.» [El Cultural]
Sobre o Autor:
George Steiner é considerado um herdeiro de Sócrates no século xx.
Nasceu em Paris, em 1929, partindo com a família para Nova Iorque no início dos anos 40 para escapar ao nazismo. Obteve a sua licenciatura em Letras na Universidade de Chicago em 1948. Em 1950, concluiu o mestrado na Universidade de Harvard, onde recebeu o Bell Prize in American Literature. De 1950 a 1952, foi bolseiro da Fundação Cecil Rhodes na Universidade de Oxford, onde se doutorou. Juntou-se à redação do The Economist, em Londres, sendo depois membro do Institute for Advanced Study, em Princeton. Em 1959, recebeu o prémio O. Henry Short Story. Foi professor de Inglês e Literatura Comparada na Universidade de Genebra de 1974 a 1994 e membro da Churchill College em Cambridge a partir de 1969.
Foi também professor de Literatura Comparada na Universidade de Oxford e professor de Poesia em Harvard. Colaborou na The New Yorker, no The Times Literary Supplement e no The Guardian.
Faleceu em Cambridge, em 2020."

Autor : George Steiner
Título: Dez razões (possíveis) para a tristeza do Pensamento
Categoria: Ensaios
Tradução: Ana Matoso
Nº de páginas: 80
Editora: Relógio D'Água
Preço: 14,40€

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