Regressamos às páginas de Diário de Eugénio Lisboa para , com ele, visitar a Reserva Natural de Paracas e a Ilha Ballescas, no Perú.
"28.8.2005.
Paracas – Partimos de Lima às 7.30 da manhã e chegámos a esta reserva natural às 11.00.
(Antes
de mais nada, registar aqui o caso singular da rapariga australiana que veio
passar férias à Inglaterra. Estava no autocarro no qual rebentou uma bomba:
escapou e resolveu ir acabar as férias aos Estados Unidos. Mudando de ideias,
veio passá-las primeiro ao Peru. E estava entre os passageiros que encontraram
aqui a morte, quando o avião em que viajavam se precipitou. Encontro em
Samarra?)
Saímos
perto do meio dia, para uma excursão de quatro horas ao longo da reserva natural: deserto lunar, praias
cinzentas e varridas por uma luz estranha – como se o sol estivesse morto ou irónico...
– vento forte, gaivotas em terra. Num observatório de flamingos, pensámos
ter visto quatro em voo. Museu arqueológico, almoço na baía de Lagunillas – de
novo uma beleza estranha, um sol surrealista, quase inquietante, no seu retraimento,
gaivotas em voo planado, rochedos cobertos de guano – e partida pelo deserto
lunar até ao promontório terminando na “catedral”, formação rochosa a que a
erosão do vento e do mar deu, ao fim de 34 milhões de anos, a forma estranha de
uma catedral emergindo do mar.
Por
todo o lado, aquele chão branco – às vezes amarelado – que já outrora esteve
coberto pelo mar: rocha laminada, que o vento, no seu vigor contínuo,
obstinado, tem trabalhado, dando-lhe aquela elegância desafiadora. Das mais
estranhas paisagens que temos visitado.Deserto habitado apenas por pequenas criaturas com que o homem não entra em diálogo amistoso: escorpiões, serpentes, moscas...
29.8.2005.Paracas. Hoje, visita à ilha de Ballescas – uma espécie de mini-Galápagos ou,
se preferirem, um antegosto de Galápagos. No percurso, por barco, passámos por
uma das ilhas do arquipélago, que nos ofereceu um espectáculo surpreendente:
esculpido no dorso deserto da ilha, pela acção do homem e durando há já 2000
anos, um gigantesco candelabro, visível a grande distância. Modo de
identificação da ilha? Sinal simbólico? Oferta religiosa?
Ballescas:
um prodígio do que o lento trabalho da erosão produz numa ilha rochosa no meio
do oceano: um indescritível teor de arcos, grutas e cavernas dando-nos
perspectivas estonteantes e quase vertiginosas de beleza natural, a um tempo
inocente e provocante. Pinguins empoleirados na rocha, empertigados de pompa,
no seu vestuário de cerimónia. Leões marinhos de andar desengonçado mas
trepadoramente eficaz.
E focas, às centenas, mergulhando e cercando
os barcos, refilando sonoramente connosco. Os optimistas dirão que eram
palavras de acolhimento. Os cínicos que eram palavras com que nos mandavam ir à
fava. Uma delas, sobretudo, destacava-se na virulência decibélica do discurso –
quase apostaria que a tradução correcta do seu falar daria qualquer coisa como
isto: “Futsek!”, como se usava dizer nos meus sítios africanos (Futsek!: vão-se
foder, ponham-se na alheta, cavem daqui para fora, pirem-se, rua! Vão à berdamerda,
etc. Curiosa a variedade de expressões que o homem congeminou para mandar o seu
semelhante dar uma volta. Dir-se-ia que o seu modo de estar no mundo é não
estar com os outros: enxotá-los, afastá-los, não conviver com eles.)
E
pássaros: gaivotas, patos e outras variedades imensas – aos milhares, que
enchem as ilhas de guano branco e do cheiro intenso que daqui deriva. Dir-se-ia
que as focas e os leões marinhos (e os pinguins) já se habituaram ao cheiro –
já não dão por nada, faz parte do habitat. Os pássaros, pelo seu lado,
se calhar, até gostam do odor que os seus excrementos exalam – sabido como é
incomensurável o narcisismo das espécies vivas (as crianças, enquanto as não
inibem os protocolos dos adultos, brincam, encantadas e cheias de curiosidade,
com os próprios excrementos.)
Olhando
para aqueles milhares de sentinelas aladas, postadas em riste no topo da ilha,
senti-me no filme do Hitchcock: The Birds. Se lhes desse alguma, pensei
com os meus botões, e se, de repente, nos atacassem, das duas uma: ou
saltávamos para a água e morríamos de frio, ou se precipitavam sobre nós e nos
destruíam à bicada. Não tínhamos safa.
Com
pensamentos destes e outros, fomos dando a volta à ilha maravilhosa e povoada
por seres com perspectivas e opiniões diferentes das nossas. Os pinguins-
poucos – olhavam-nos com altivez ou, talvez simplesmente, indiferença.
No
regresso, fomos a uma praia aqui ao lado comprar bugigangas e almoçar: A A, com
a sua curiosidade alimentícia, atirou-se a um peixe cru. Eu preferi uma
portentosa corvina. Visitámos, depois do almoço, um pequeno museu do hotel, com
cerâmicas de Paracas, cerâmicas nazcas e cerâmicas epigonais. Comprámos duas
coisas para as macnetas e regressámos a Lima."
Eugénio Lisboa , em "O Perú Revisitado - Páginas de Diário"
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