Eça de Queirós
Os Maias – uma obra desmedida?
por Eugénio Lisboa
"Ao lançar, em 1888, após longos anos de labor, o romance Os Maias, Eça de Queirós estava bem consciente de ter produzido uma obra diferente de tudo quanto, até aí, tinha feito. Cortando claramente com o modelo de romance francês – curto, linear e dramático – Eça, n’Os Maias, arrastava a asa às vastas construções romanescas dos grandes romancistas ingleses, Dickens, Thackeray, Geoge Eliot… Obras de grande dimensão e de “tempo lento”, dentro das quais o leitor era aprisionado e tornado cúmplice daquela paróquia ficcional - quase um habitante dela.
O mais interessante é que Eça, um dissimulador nato, como penetrantemente observou o seu biógrafo Alfredo Campos Matos, iria “fingir”, junto dos amigos mais chegados, que via, nessa “vasta machine” que eram Os Maias, um grande “defeito”: o seu desmedido tamanho. Em carta a Oliveira Martins, datada de 12.6.1888, por exemplo, observa: “Os Maias saíram uma coisa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes.” E, com falsa modéstia, aconselhava o amigo: “Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos demais para ler.” E indicava os episódios do romance que merecia a pena ler, deixando de lado o resto, para não andar “a procurar através daquela imensa massa de prosa.” Em carta a Fialho de Almeida, datada de 8.8.1888, refere-se ao livro chamando-lhe, sucessivamente, “calhamaço” e “grosso cartapácio”. E, em carta a Luís de Magalhães, datada de 10.5.1884, diz o seguinte, em tom de franco auto-denegrimento: “Eu continuo com Os Maias, essa vasta machine, com proporções enfadonhamente monumentais de pintura a fresco, toda trabalhada em tons pardos, pomposa e vã e que me há-de talvez valer o nome de Miguel Ângelo da sensaboria.”
Todo este exercício de auto-apoucamento é, evidentemente, insincero. Ninguém iria dedicar tantos anos de esforçado e obstinado labor a uma obra que tão pouco prezasse. Eça metera ombros à construção desta “vasta machine”, consciente de que a sua grande dimensão era um valor e não um acidente de percurso. José Régio, que também amara a leitura dos longos romances e até empreendera escrever um – A Velha Casa - , aludia a esse “sentimento de intimidade que muitas vezes procuro nos longos romances.” E, falando também dos longos romances de Tolstoi, que tanto admirava, dizia que estes lhe davam “um prazer quase físico.” Por outro lado, Flaubert, igualmente amante e construtor de “vastes machines”, observava: “Les chefs.d’oeuvre sont bêtes; ils ont la mine tranquille comme les productions même de la nature, comme les grands animaux et les montagnes.” E acrescentava que a Bovary andava “a passo de tartaruga”. Citando precisamente esta passagem, no admirável prefácio que escreveu para a edição da Pléiade da obra de Martin du Gard, Albert Camus observava que, sim, que as obras-primas têm a “aparência tranquila” mas que, “no seu sangue correm sempre estranhos e jovens ardores.” Na sua quase imobilidade de “grande animal”, Os Maias, cuja acção avança também a passo de tartaruga e que oferecem ao leitor desprevenido “une mine tranquille” – escondem, no seu interior, paixões e ardores incontidos.
Era esta dimensão dos longos romances, dentro dos quais o leitor apetecidamente se demorava, que Régio tanto viria a apreciar no romance inglês e o levaria a dizer, num depoimento feito, nos anos 60, para Jorge de Sena: “Pelo que da literatura inglesa conheço através de traduções, parece-me que um seu melhor conhecimento me interessaria muito. Porventura não menos que o da literatura francesa. Leio romances ingleses com profundo gosto. Eles me dão esse sentimento de intimidade a que referi numa resposta anterior.” De facto, o romance longo permite-nos um prolongado convívio com os vários personagens e, mais ainda, um convívio presencial e não apenas alusivo. No seu notabilíssimo livro, Ideas sobre le Novela, Ortega y Gasset observa: “Esta distinção entre mera alusão e autêntica presença é, no meu entender, decisiva em toda a arte, mas muito especialmente no romance.”
Em todo o romance mas, especialmente no romance longo – onde há tempo e espaço disponíveis – mão se define um personagem, isto é, não se alude a ele, dizendo, por exemplo, que é engraçado, ou ridículo ou melancólico: o romancista, como ironicamente nota Gasset, deve mostrá-lo a ser engraçado, ou ridículo ou melancólico. Eça, n’Os Maias, não diz que o Ega é espirituoso ou que o Alencar é ridículo: mostra-os no acto de serem, um, espirituoso, o outro, ridículo. Ao romance, mas, sobretudo, ao romance longo, como diz Ortega, “move-o um magnífico apetite de ver.” É o que faz Eça n’Os Maias, onde nos movemos de uma acção para a seguinte, submetendo-nos, pelo meio, a um longo intervalo de paragem, que nos permite termos connosco, duradouramente, os personagens em acção de presença e aprofundamento.
Os Maias são, com efeito, um grande animal que se move lentamente, com longos períodos de “paragem”, entre dois picos de acção e emoção. Por exemplo, no período de “paragem” que imediatamente precede a cena intensa em que Ega, assistido por Cruges, humilha e desfeiteia o Dâmaso, nessa longa e quase exasperante cena de “paragem”, que tem lugar no Grémio Literário, a narrativa oferece-nos, generosamente, as presenças de Gouvarinho, Steinbroken, de Carlos, de Ega, que, diante do leitor, se demoram, quase sadicamente, enquanto este – o leitor - aguarda, com impaciência, o encontro vingador de Ega com Dâmaso. Nestes momentos de “paragem” do romance, o narrador permite um alargado convívio com personagens do romance, que nos vão sendo “mostrados” em acção, desvendando-nos, pelo que dizem e fazem – e não pelo que delas pudesse dizer o narrador – cada vez mais, um pouco da sua natureza e carácter. É nesses momentos em que a acção desacelera e a “autêntica presença” das personagens se impõe ao convívio com o leitor, que este se sente fazer, gradativamente mais, parte daquela “paróquia” ficcional. “A táctica do autor”, observa Ortega y Gasset no seu livro seminal, “há-de consistir em isolar o leitor do seu horizonte real e aprisioná-lo num pequeno horizonte hermético e imaginário que é o âmbito interior do romance. Numa palavra, tem que aldeá-lo, lograr que se interesse por aquela gente que lhe apresenta, a qual, por mais admirável que fosse, não poderia colidir com os seres de carne e osso que rodeiam o leitor e solicitam constantemente o seu interesse.” Eis o que consegue o narrador de Os Maias: pela duração prolongada da narrativa, que muito lentamente progride – a passo de tartaruga - , vai tornando o leitor um “provinciano” daquela província ficcional que é o universo do romance: um habitante dela, um cúmplice das suas intrigas, conversas e polémicas, um verdadeiro paroquiano daquela paróquia ficcional. Trata-se, em suma, de sonambulizar o leitor, de o “fechar” dentro do universo do romance, cortando-lhe todas as saídas para o universo real de que ele se ausentou ao mergulhar na leitura.
De tal forma, n’Os Maias, Eça consegue construir esse mundo hermético, capaz de, para dentro dele, capturar o leitor, que não resisto a contar aqui uma prodigiosa experiência pessoal. Quando, em Janeiro de 1977, fui viver e trabalhar em Estocolmo, no primeiro dia em que me dirigi à universidade, senti-me profundamente desorientado por toda aquela cidade soterrada na neve: tudo, jardins, ruas, parques, se encontrava tapado, feito um universo branco, álgido, uma beleza diferente de tudo quanto até então conhecera. Vindo de uma África encharcada de sol e de calor (e profundamente destapada) para aquele manto de branquidão densa, senti-me completamente alienado, quase perdido, como um náufrago sem costa à vista. De tal forma me senti sufocado que pensei: se não encontro depressa algo que me devolva àqueles mundos em que já vivi, se não mergulho rapidamente num mundo meu, num mundo que conheço e identifico, estou completamente perdido… E foi então que, com um grande sentimento de urgência, me dirigi à directora do departamento de Românicas da universidade e, sem hesitar, lhe perguntei: “Tem aqui, na biblioteca do departamento, alguma edição de Os Maias, de Eça de Queirós?” Disse-me que sim, que tinha uma, mesmo ali à mão, e entregou-ma. Agarrei nela, quase com sofreguidão e levei-a para o meu apartamento. Nessa mesma noite, depois de ter jantado, mergulhei, com apetite devorador, na leitura do romance: o reentrar naquele conhecido universo lisboeta, que eu tão bem conhecia, de outras leituras anteriores, desviou-me, com força salutar, daquela brancura alienante da cidade sueca, que me estava a sufocar. Li, pela noite dentro, com a sensação de me estar a salvar, a voltar à normalidade, ao reinserir-me naquele universo ficcional, que era tão vivo, tão mais real – naquele momento – do que a cidade coberta de neve em que me encontrava a viver. Mas o mais curioso foi que, quando, ao fim de dois ou três dias, acabei a leitura, minha mulher, que se encontrava a meu lado, me pediu o livro, nestes termos: “Também estou precisada de reler Os Maias: passa-mos cá…” E foi a vez dela de mergulhar, salvificamente, no universo ficcional do mago da Póvoa de Varzim. É que Eça criara de facto um mundo alternativo em que a duração permite saturar o leitor com a presença obstinada dos personagens, que se tornam familiares e como que reais, naquele universo ficcional que devém também mais real do que a realidade circundante (para a qual o leitor se fecha). A dimensão de Os Maias, repito, não foi um acidente de percurso, não foi algo de defeituoso que resultou de o autor não ter conseguido fazer o romance mais curto. Mais de um crítico contemporâneo da publicação do livro fez o diagnóstico errado, ao sugerir que, em vez dos dois grossos e desmedidos volumes da obra, Eça teria podido e devido tirar dali vários romances mais pequenos… A extensão do romance teria sido, segundo eles, um percalço. Nenhum se apercebeu de que aquele “tempo lento”, aquele arrastado mover-se a passo de tartaruga, aquela quase imobilidade de elefante ou de grande montanha – era o grande valor do livro. Era essa duração obstinada que permitia ao narrador criar aquele universo hermético, pletórico de criaturas duradouramente presentes ao convívio com o leitor, o qual leitor acabava por se tornar, de direito, um personagem daquela paróquia ficcional."
Ensaio de Eugénio Lisboa
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