quarta-feira, 19 de junho de 2019

INTERMEZZO EUROPEU



INTERMEZZO EUROPEU
por Eugénio Lisboa                       

                      Na Europa Ocidental, só existem, agora, países pequenos 
                      – aqueles que o sabem e aqueles que ainda o não sabem. 
                                     Théo Lefèvre, Primeiro Ministro belga, 1963

                     Why should any country continue, forever, to be great? 
                                      William F. Buckley Jr. 

"Ao fim de alguns dias de descanso mais ou menos desencantado, partimos para a Europa, como disse, sem a euforia que normalmente acompanhava estas sortidas: foi um retorno melancólico àquilo que costumava ser uma festa celebrativa – Paris, Londres, Lisboa já não souberam a Paris, Londres e Lisboa, já não eram as mesmas porque nós já não éramos os mesmos. A graça deixara de estar connosco, porque, no regresso, nada iria ter eco nem partilha junto de familiares e amigos. A Joanesburgo que nos aguardava no termo da viagem não era a Lourenço Marques que costumava estar à nossa espera, ávida de notícias. Nunca uma viagem à Europa me soube a tão pouco. Era quase uma despedida. Paris pareceu-nos melancólica, Londres tristonha e desajeitada e, pior do que tudo, Lisboa estava suja, pindérica, pintalgada de “graffiti” e “slogans” políticos de todas as tendências, e pesadamente sombria. Depois da festa desordenada que se seguira ao 25 de Abril e de um PREC delirante e devastador, viera a ressaca. Fui, sem entusiasmo, ao lançamento de um livro, salvo erro, de Álvaro Guerra, e encontrei uns amigos, de crista caída, que me olharam de soslaio: “Que vieste aqui fazer? Deixa-te estar onde estás.” Pensei, com os meus botões: “Por aqui, não haverá saída…” É verdade que eu estava agora a residir na África do Sul, onde iria fazer um estágio para director de uma das maiores e mais modernas refinarias do mundo, mas isso parecia-me um bocadinho irreal. Os meus colegas da “Total” – com pequeníssimas excepções – não tinham os mesmos gostos, os mesmos entusiasmos, as mesmas paixões… Na África do Sul, eu nunca teria o companheirismo da Voz de Moçambique, do “Cine-Clube”, das reuniões de sábado. Iria caminhar, solitariamente, com a morte na alma, por aquelas ruas sem festa e pejadas de tensões e ressentimentos. E o que via, naquele Portugal “depois da festa”, morno, desfeado, pobrete e decadente, por outro lado, também me não animava. Um mundo acabara e outro mundo estava a começar – e não parecia auroral nem bonito o que estava a começar. havia democracia, havia liberdade, é certo – e era muito. Era mesmo muito, lutara-se por isso e tinha-se, miraculosamente, lá chegado. Mas as pessoas andavam tristes, amedrontadas, inseguras. O país era cinzento e as pessoas mortiças. O grande humorista, jornalista político, escritor e pioneiro da “terapêutica pela gargalhada”, Norman Cousins, notava, com grande perceptividade, que “a morte não é a maior perda na nossa vida. A maior perda é o que morre dentro de nós, enquanto estamos vivos.” O que eu, por essa altura sentia, dentro de mim, era uma espécie de morte interior. A minha sobrevivência material e a dos meus estava assegurada, mas a festa tinha acabado, ou, pelo menos, tinha sido severamente interrompida. E era o que se pressentia por todo o lado. Nunca me esquecerei do que me disse o meu velho amigo, o Zeca [José Tiago Oliveira, Professor de Matemática na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa]: que chegara a ter os passaportes dele e da família prontos e as malas feitas, para poder partir, de um momento para o outro, para uma universidade estrangeira, onde lhe tinha sido oferecido um lugar. O que se estava a passar, em Portugal, era, sob um aspecto importante, deveras perturbador: estava-se a construir uma democracia, sem se fazer uma pedagogia sã e empenhada da cidadania. Por outras palavras, estava-se a pôr de pé um Estado democrático, sem cidadãos. A palavra “liberdade” era declinada da maneira mais boçal, pela maioria das pessoas. Cinquenta anos de repressão tinham feito saltar a tampa e os que iam ao leme do barco da Democracia não se apercebiam da incultura cidadã que, por todo o lado, grassava. “Não pode haver democracia quotidiana, sem cidadania quotidiana”, observava o “sage” Ralph Nader. Os novos patrões do regime não se tinham apercebido disto e, até hoje, essa pedagogia está por fazer. Com o que só têm a ganhar os inescrupulosos barões dos mercados à solta, que são o rosto moderno da barbárie que, de quando em quando, assola o planeta. Portugal estava finalmente livre, mas era uma liberdade triste, pelintra e desiludida. Lembro-me de, no lançamento do livro de que atrás falei, ter encontrado o Palma-Ferreira, de asa caída e prevendo, apocalipticamente, o pior. Antigamente, sob o antigo regime, com ditadura e tudo, com uma guerra surrealista em África, mesmo com tudo isso, uma ocasião como esta – um reencontro de amigos, à sombra de um livro novo – teria sido, paradoxalmente, um momento de emoção, agitação, vida e festa. Agora, era tudo cinzento, amarrotado e murcho. A melancolia depois do coito? Ninguém acreditava muito no futuro, depois das devastações autoritárias ou mesmo para-totalitárias do PREC. O país estava pobre, desarmado e pouco promissor. Nem às livrarias apetecia ir. À quoi bon? A literatura, a cultura desinteressada eram, por essa altura, a menor das preocupações de quem não sabia o que viria a ser o dia de amanhã. A “política”, não a Política, envolvia tudo, impregnava tudo, envenenava tudo. Os Bandarras de serviço anunciavam toda a espécie de desastres – e havia-os para todos os gostos. Os políticos e os para-políticos (entre os quais, muitos militares, demasiados militares) tornavam-se perigosamente assertivos: sabiam tudo, pontificavam sobre tudo, metiam-se em tudo. George Bernard Shaw, muitas décadas antes, observara, numa das suas peças de teatro mortiferamente certeiras: “Ele não sabe nada¸ ele pensa que sabe tudo – isso aponta claramente para uma carreira política.” Era isto que se passava naquele momento, com gente de um povo já de si demasiado inclinado àquilo que o Eça classificara como “a coragem de afirmar”. No meio daquela bagunça pelintra e daquelas paredes conspurcadas com “slogans” wagnerianos, mais idiotas uns do que os outros, agitavam-se também os saudosos do PREC, proclamando, azedos, que a revolução “tinha sido traída”. De facto, ainda não o fora: sê-lo-ia algumas décadas mais tarde, ajudada pela “Europa” e pelos gangsters dos mercados, que precipitaram o mundo no paraíso neoliberal. Por outro lado, choramingavam, cada vez mais indiscretamente, os saudosos do salazarismo, a quem assustava o ruido que a democracia sempre faz… Tanto para mim como para a Antonieta, esta visita à Europa foi triste e desarrumadora. A África do Sul não nos apetecia de maior; mas esta Europa também não nos motivava por aí além. Para onde ir? Regressámos a Joanesburgo, murchos, retornados de uma não festa e sem grande visão de futuro."
Eugénio Lisboa, in Acta est fabula. IV. Peregrinação: Joanesburgo . Paris . Estocolmo . Londres – 1976-1995, Editora Omnia Opera, Outubro de 2014,  pp. 21-24

1 comentário:

  1. E um bom retrato do que se passou e de problemas que ainda hoje vamos pagando.

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