segunda-feira, 10 de julho de 2017

Onde me levas...


Onde me levas , rio que cantei,
esperança destes olhos que molhei
de pura solidão e desencanto?
Onde me levas?, que me custa tanto.

Não quero que conduzas ao silêncio
duma noite maior e mais completa,
com anjos tristes a medir os gestos
da hora mais contrária e mais secreta.

Deixa-me na terra de sabor amargo
como o coração dos frutos bravos,
pátria minha de fundos desenganos,
mas com sonhos, com prantos, com espasmos.

Canção, vai para além de quanto escrevo
e rasga esta sombra que me cerca.
Há outra face na vida transbordante:
que seja nessa face que me perca.

Eugénio de Andrade , in “As mãos e os frutos”, 1948, Editora Campo das Letras

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