sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Somos hóspedes da criação


" É difícil acreditar que a história que começou com o Génesis terminou. O jogo e contra-jogo entre a "criação" e a "invenção" foi sempre, em parte, subjectivo e flexível. Para Alexander Pope, a "invenção" é a mais elevada faculdade do homem , um atributo próximo da divindade: “ É universalmente reconhecido que pertence  a Homero a maior Invenção que um escritor  jamais fez. “ Paul Celan considera que a “ invenção” equivale a falsidade. Em Dada, chega-se  à inversão dos dois termos  através da paródia e da negação. Todavia, as duas modalidades são, em si próprias , intensamente criativas. Solicitam a reflexão a ir, ainda que especulativamente, mais longe.
Estamos a entrar numa cultura planetária  e numa hierarquia de valores cada vez mais dominada pelas ciências e pelas sua aplicações tecnológicas. Umas e outras experimentam um progresso constante, na medida em que o saber produz mais saber. É precisamente este movimento de avanço ilimitado – que só a extinção do espírito humano poderia deter – que tem vindo a substituir a categoria  e os símiles do infinito que caracterizavam o Deus de S. Tomás de Aquino e de Descartes. Vimos que o ritmo da especialização nas ciências, juntamente com o volume da nova informação engendrada pelas ramificações correspondentes, poderá previsivelmente desembocar numa crise. O desfecho poderá ser uma espécie de implosão ou de derrocada interior. Todavia, de momento,  esses efeitos negativos  da entropia parecem improváveis. Em termos de energia  cerebral  e de prestígio social, de recursos económicos e de rendimento prático, as ciências e a tecnologia têm à sua frente um amanhã sem limites.
Vimos  que a relação entre a epistemologia das ciências e a noção de “criação” foi sempre equívoca. Para a maioria dos cientistas, ao longo da história , o termo  de referência  foi a “descoberta”; a tecnologia, pelo seu lado, visou  a “ invenção” . As novas cosmologias  consideram a “ criação” um conceito ambíguo, mitológico ou até mesmo tabu. Perguntar o que antecedeu o Big Bang e os primeiros  nano-segundos  de condensação e de expansão do nosso universo corresponde , dizem –nos, à adopção de uma linguagem desprovida de sentido. Porque o próprio tempo não tinha sentido antes desse acontecimento singular.  Tanto a lógica mais elementar como o senso-comum nos dizem que semelhante decreto não passa de um bluff arrogante. O simples facto . de nos ser possível formular a pergunta, e de os processos normais  do pensamento  a poderem mobilizar, basta  para lhe conferir  sentido e legitimidade. O postulado do nada  e da intemporalidade inquestionáveis  (“ que não podem pôr-se em questão”),  que os astrofísicos transformaram num dogma, é tão arbitrário e, sob múltiplos aspectos, ainda mais místico, que as narrativas da criação que encontramos no Génesis e noutros lugares. A intuição reflexiva de um vir ao ser que não compreendemos, mas cuja eficácia é sugerida através das analogias da criatividade humana, mas perdeu da sua força. O que este livro tenta demonstrar é como recurso a tais analogias  se pode tornar uma convenção vazia, ou até mesmo corrosiva, quando são recusados os pressupostos da fé e de uma metafísica transcendental. Não é gratuitamente que se ri da hipótese de Deus.
Mas, segundo a afirmação cáustica de Laplace, grande matemático e astrónomo, é precisamente dessa hipótese que as ciências ( e a tecnologia) não têm qualquer necessidade premente. São a descoberta científica e a invenção tecnológica que, cada vez  mais , governarão o nosso sentido  da história social e o idioma apropriado  a essa história. Já hoje é , em grande medida, na arquitectura e no design industrial  que procuramos a satisfação da nossa exigência de refinamento e de aventura estética. Há sinapses entre as artes  na sua acepção tradicional , a álgebra do engenheiro e o virtuosismo do artífice  (Cellini sintir-se ia maravilhosamente num Ferrari). Nesta simbiose , as linhas divisórias entre o criado e o inventado perderam o seu rigor . Depois de ouvir Duchamp, Brancusi integra as curvas dançantes da hélice na sua escultura. Pressentimos que o mesmo se passará com as artes no próximo capítulo.
Mas a exultação  e a dor, a angústia e o júbilo, o amor e o ódio continuarão a reclamar uma expressão articulada. Continuarão a exercer a sua pressão sobre a linguagem que, sob essa pressão, se torna literatura. A inteligência humana continuará a fazer perguntas que a ciência decretou ilegítimas ou sem–resposta. Ainda que talvez condenada a uma circularidade última, esta persistência é a do pensamento que se torna urgente, quer dizer , metafísico. Um génio de trivialidade daimónica habita o regime imperial das ciências. É possível que a música  conheça melhor, ainda que nada oponha a qualquer definição maior resistência que a natureza desse conhecimento.
Vimos que a armação da poiesis foi, em sentido amplo, teológica; que reside nas regiões que mais se afastam da física (meta-física). Há um compromisso explícito com a transcendência em Ésquilo, em Dante, em Bach, em Dostoievski. Que intervém ainda com uma força indefinida num retrato de Rembrandt ou na noite da morte de Bergotte na Recherche de Proust. O bater das asas do desconhecido morou no coração da poiesis. Haverá , poderá haver,  a partir do ateísmo, filosofia, literatura, música e arte maiores?
Até hoje , o verdadeiro ateísmo tem sido raro. E também não ridiculariza a hipótese de Deus. Pode ser o testemunho de uma sombria privação: 
" Não existe, o sacana”  (Samuel Beckett). O ateísmo pode exigir  uma disciplina moral e um altruísmo extremos. Impõe ao escritor  ou ao pensador uma solidão ainda mais  austera que aquela  que presentemente o nosso modo de vida dissipou. O zero negro que o verdadeiro ateu  pressupõe na e depois da morte torna os seus actos ao mesmo tempo imanentemente responsáveis e, em certo sentido, desesperados. Suponhamos que um autêntico ateísmo possa vir a substituir o agnosticismo-aspirina, o “sopro nem quente nem frio” que invade  hoje  a nossa pós-modernidade. Suponhamos  que esse ateísmo comece a possuir  e a alimentar os mestres  da forma articulada  e os construtores do pensamento.  Poderão as suas obras  rivalizar com as dimensões , as forças  de convicção, de molde a transformar a vida, que já conhecemos?  O que poderá  ser a contrapartida ateia  de um fresco  de Miguel Ângelo ou do Rei Lear? Estas interrogações  nascem de uma possibilidade que não seria pertinente excluir.  E é impossível negar o fascínio das perspectivas  que abrem. Actualmente, a busca  de contacto com seres inteligentes do espaço exterior tornou-se quase uma obsessão. Trata-se-á de uma tentativa premonitória de aliviar o isolamento? De esquecer , por meio do murmúrio amplificado do rádio-telescópio, o trovão hoje demasiado longínquo da criação?
Fomos durante muito tempo hóspedes da criação, e creio que o continuamos a ser ainda . Devemos ao nosso hospedeiro a cortesia da interrogação. “ George Steiner, in Gramáticas da Criação, Ed. Relógio D’Água, pp 368-371
Sobre o livro: “George Steiner inicia Gramáticas da Criação , a sua obra mais radical, com a frase “ Já não temos começos”. Este livro , pela exploração exaustiva da noção de criação no pensamento ocidental , na literatura, na religião e na história, pode ser considerado um opus magnum”.
O fragmento que se acabou de transcrever é a parte final desta obra , a conclusão.
Sobre o autor: “George Steiner é membro do Churchill College em Cambridge. Recebeu vários prémios pelas suas obras , nomeadamente  os das Fundações  Fulbright e Guggenheim, o Prémio Morton Dauwen Zabel da Academia Americana de Artes e Letras e o Prémio Truman Capote. “ 

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