" É difícil acreditar
que a história que começou com o Génesis terminou. O jogo e contra-jogo entre a
"criação" e a "invenção" foi sempre, em parte, subjectivo e
flexível. Para Alexander Pope, a "invenção" é a mais elevada
faculdade do homem , um atributo próximo da divindade: “ É universalmente
reconhecido que pertence a Homero a
maior Invenção que um escritor jamais fez. “ Paul Celan considera que a “
invenção” equivale a falsidade. Em Dada, chega-se à inversão dos dois termos através da paródia e da negação. Todavia, as
duas modalidades são, em si próprias , intensamente criativas. Solicitam a
reflexão a ir, ainda que especulativamente, mais longe.
Estamos a entrar numa
cultura planetária e numa hierarquia de
valores cada vez mais dominada pelas ciências e pelas sua aplicações
tecnológicas. Umas e outras experimentam um progresso constante, na medida em
que o saber produz mais saber. É precisamente este movimento de avanço
ilimitado – que só a extinção do espírito humano poderia deter – que tem vindo
a substituir a categoria e os símiles do
infinito que caracterizavam o Deus de S. Tomás de Aquino e de Descartes. Vimos
que o ritmo da especialização nas ciências, juntamente com o volume da nova
informação engendrada pelas ramificações correspondentes, poderá
previsivelmente desembocar numa crise. O desfecho poderá ser uma espécie de
implosão ou de derrocada interior. Todavia, de momento, esses efeitos negativos da entropia parecem improváveis. Em termos de
energia cerebral e de prestígio social, de recursos económicos
e de rendimento prático, as ciências e a tecnologia têm à sua frente um amanhã
sem limites.
Vimos que a relação entre a epistemologia das
ciências e a noção de “criação” foi sempre equívoca. Para a maioria dos
cientistas, ao longo da história , o termo
de referência foi a “descoberta”;
a tecnologia, pelo seu lado, visou a “
invenção” . As novas cosmologias
consideram a “ criação” um conceito ambíguo, mitológico ou até mesmo
tabu. Perguntar o que antecedeu o Big Bang e os primeiros nano-segundos
de condensação e de expansão do nosso universo corresponde , dizem –nos,
à adopção de uma linguagem desprovida de sentido. Porque o próprio tempo não tinha
sentido antes desse acontecimento singular.
Tanto a lógica mais elementar como o senso-comum nos dizem que semelhante
decreto não passa de um bluff
arrogante. O simples facto . de nos ser possível formular a pergunta, e de os
processos normais do pensamento a poderem mobilizar, basta para lhe conferir sentido e legitimidade. O postulado do
nada e da intemporalidade
inquestionáveis (“ que não podem pôr-se
em questão”), que os astrofísicos
transformaram num dogma, é tão arbitrário e, sob múltiplos aspectos, ainda mais
místico, que as narrativas da criação que encontramos no Génesis e noutros lugares. A intuição reflexiva de um vir ao ser
que não compreendemos, mas cuja eficácia é sugerida através das analogias da
criatividade humana, mas perdeu da sua força. O que este livro tenta demonstrar
é como recurso a tais analogias se pode
tornar uma convenção vazia, ou até mesmo corrosiva, quando são recusados os
pressupostos da fé e de uma metafísica transcendental. Não é gratuitamente que
se ri da hipótese de Deus.
Mas, segundo a afirmação
cáustica de Laplace, grande matemático e astrónomo, é precisamente dessa
hipótese que as ciências ( e a tecnologia) não têm qualquer necessidade
premente. São a descoberta científica e a invenção tecnológica que, cada
vez mais , governarão o nosso sentido da história social e o idioma apropriado a essa história. Já hoje é , em grande
medida, na arquitectura e no design industrial que procuramos a satisfação da nossa
exigência de refinamento e de aventura estética. Há sinapses entre as
artes na sua acepção tradicional , a
álgebra do engenheiro e o virtuosismo do artífice (Cellini sintir-se ia maravilhosamente num
Ferrari). Nesta simbiose , as linhas divisórias entre o criado e o inventado
perderam o seu rigor . Depois de ouvir Duchamp, Brancusi integra as curvas
dançantes da hélice na sua escultura. Pressentimos que o mesmo se passará com
as artes no próximo capítulo.
Mas a exultação e a dor, a angústia e o júbilo, o amor e o
ódio continuarão a reclamar uma expressão articulada. Continuarão a exercer a
sua pressão sobre a linguagem que, sob essa pressão, se torna literatura. A
inteligência humana continuará a fazer perguntas que a ciência decretou
ilegítimas ou sem–resposta. Ainda que talvez condenada a uma circularidade
última, esta persistência é a do pensamento que se torna urgente, quer dizer ,
metafísico. Um génio de trivialidade daimónica habita o regime imperial das
ciências. É possível que a música conheça melhor, ainda que nada oponha a
qualquer definição maior resistência que a natureza desse conhecimento.
Vimos que a armação da poiesis foi, em sentido amplo,
teológica; que reside nas regiões que mais se afastam da física (meta-física).
Há um compromisso explícito com a transcendência em Ésquilo, em Dante, em Bach,
em Dostoievski. Que intervém ainda com uma força indefinida num retrato de Rembrandt
ou na noite da morte de Bergotte na Recherche
de Proust. O bater das asas do desconhecido morou no coração da poiesis. Haverá , poderá haver, a partir do ateísmo, filosofia, literatura,
música e arte maiores?
Até hoje , o verdadeiro
ateísmo tem sido raro. E também não ridiculariza a hipótese de Deus. Pode ser o
testemunho de uma sombria privação:
" Não existe, o sacana” (Samuel Beckett). O ateísmo pode exigir uma disciplina moral e um altruísmo extremos.
Impõe ao escritor ou ao pensador uma
solidão ainda mais austera que
aquela que presentemente o nosso modo de
vida dissipou. O zero negro que o verdadeiro ateu pressupõe na e depois da morte torna os seus
actos ao mesmo tempo imanentemente responsáveis e, em certo sentido,
desesperados. Suponhamos que um autêntico ateísmo possa vir a substituir o
agnosticismo-aspirina, o “sopro nem quente nem frio” que invade hoje a
nossa pós-modernidade. Suponhamos que
esse ateísmo comece a possuir e a
alimentar os mestres da forma articulada e os construtores do pensamento. Poderão as suas obras rivalizar com as dimensões , as forças de convicção, de molde a transformar a vida,
que já conhecemos? O que poderá ser a contrapartida ateia de um fresco
de Miguel Ângelo ou do Rei Lear?
Estas interrogações nascem de uma
possibilidade que não seria pertinente excluir.
E é impossível negar o fascínio das perspectivas que abrem. Actualmente, a busca de contacto com seres inteligentes do espaço
exterior tornou-se quase uma obsessão. Trata-se-á de uma tentativa premonitória
de aliviar o isolamento? De esquecer , por meio do murmúrio amplificado do
rádio-telescópio, o trovão hoje demasiado longínquo da criação?
Fomos durante muito tempo
hóspedes da criação, e creio que o continuamos a ser ainda . Devemos ao nosso
hospedeiro a cortesia da interrogação. “ George Steiner, in Gramáticas da
Criação, Ed. Relógio D’Água, pp 368-371
Sobre
o livro: “George Steiner
inicia Gramáticas da Criação , a sua obra mais radical, com a frase “
Já não temos começos”. Este livro , pela exploração exaustiva da noção de criação
no pensamento ocidental , na literatura, na religião e na história, pode ser
considerado um opus magnum”.
O fragmento que se acabou
de transcrever é a parte final desta obra , a conclusão.
Sobre o autor: “George Steiner é membro do
Churchill College em Cambridge. Recebeu vários prémios pelas suas obras ,
nomeadamente os das Fundações Fulbright e Guggenheim, o Prémio Morton
Dauwen Zabel da Academia Americana de Artes e Letras e o Prémio Truman Capote. “
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