Bioética nas questões da vida e da morte
A morte no século XXI é vista como tabu, interdita, vergonhosa; por outro lado, o grande desenvolvimento da medicina permitiu a cura de várias doenças e um prolongamento da vida. Entretanto, este desenvolvimento pode levar a um impasse quando se trata de buscar a cura e salvar uma vida, com todo o empenho possível, num contexto de missão impossível: manter uma vida na qual a morte já está presente. Esta atitude de tentar preservar a vida a todo custo é responsável por um dos maiores temores do ser humano na actualidade, que é o de ter a sua vida mantida às custas de muito sofrimento, solitário numa UTI, ou quarto de hospital, tendo por companhia apenas tubos e máquinas.
É neste contexto que surge a questão: é possível escolher a forma de morrer? Observa-se o desenvolvimento de um movimento que busca a dignidade no processo de morrer, que não é o apressamento da morte, a eutanásia, nem o prolongamento do processo de morrer com intenso sofrimento, a distanásia.
O problema é que existe uma grande confusão entre estes termos, e o seu esclarecimento se faz necessário. Assim, a bioética do século XXI deve retomá-los, trazendo à tona a necessidade da discussão destas questões com base em alguns princípios que são muito importantes: beneficência, dignidade, competência e autonomia. O movimento dos cuidados paliativos1 trouxe de volta, no século XX, a possibilidade de rehumanização do morrer, opondo-se à idéia da morte como o inimigo a ser combatido a todo custo. Ou seja, a morte é vista como parte do processo da vida e, no adoecimento, os tratamentos devem visar à qualidade dessa vida e o bem estar da pessoa, mesmo quando a cura não é possível; mas, frente a essa impossibilidade, nem sempre o prolongamento da vida é o melhor, e não se está falando de eutanásia, como muitos crêem.
Entre as grandes questões sobre o fim da vida, destaco as seguintes:
Tem a pessoa o direito de decidir sobre sua própria morte, buscando dignidade?
Pode-se planejar a própria morte?
Os profissionais de saúde, que têm o dever de cuidar das necessidades dos pacientes, podem atender um pedido para morrer?
Podem ser interrompidos tratamentos que têm como objetivo apenas o prolongamento da vida, sem garantia da qualidade da mesma?
Whiting (1995-1996) aponta caminhos para algumas respostas a estas questões. Sobre o encerramento da própria vida, a lei não tem o que dizer, uma vez que a decisão é da pessoa e está vinculada a determinantes pessoais e religiosos. Se pensamos em assistência no processo de morrer, aí sim, trata-se de questão legal, porque está envolvida uma proposta homicida, mesmo que por piedade.
A Bioética – algumas considerações de ordem geral
Segundo Segre e Cohen (1995), a bioética é o ramo da ética que enfoca questões relativas à vida e à morte, propondo discussões sobre alguns temas, entre os quais: prolongamento da vida, morrer com dignidade, eutanásia e suicídio assistido.
Segundo os autores, o termo bioética foi apresentado, pela primeira vez, pelo oncologista Potter (1971), na sua obra Bioethics – Bridge to the Future. Nesta obra, propõe uma ponte no trabalho de cientistas e humanistas. Nos primeiros trabalhos na área, havia grande preocupação com valores humanos, cabendo à teologia as linhas mestras. Num segundo momento, a filosofia tomou a frente, numa vertente de secularização. Entre 1985 e 2000, a bioética foi adquirindo um caráter multidisciplinar, envolvendo ciências sociais, direito, antropologia e psicologia, além da teologia. Nas ciências da saúde, surge a preocupação com as condutas médicas, que culminou, em 1962, no que se chamou de Comitê de Deus, ou seja, a escolha de pacientes que serão submetidos a determinados tratamentos em detrimento de outros (Pessini & Barchifontaine, 1994). Posteriormente, passaram a ter grande importância a relação médico/paciente, os aspectos relativos à auto-determinação, a autonomia e os direitos humanos.
Na terceira fase das discussões da bioética começam a ter lugar as discussões envolvendo a macropolítica da saúde, a economia e a questão dos excluídos (Anjos, 2002).
As atrocidades cometidas pelo nazismo, na Segunda Guerra Mundial, trazem ênfase à discussão de pesquisas envolvendo seres humanos, as intenções e o sofrimento causado às pessoas, mesmo que em nome da ciência, culminando com o código de Nüremberg, no qual se postula que nenhuma pesquisa possa envolver seres humanos, sem que haja sua autorização explícita. Atualmente, os comitês de ética zelam por estas condições em várias instituições.
Houve, também, um desenvolvimento da bioética vinculada aos seguintes princípios: autonomia, beneficência e justiça, o que Pessini e Barchifontaine (1994) denominaram de trindade bioética.
A autonomia se refere ao respeito à vontade e ao direito de auto-governar-se, favorecendo que a pessoa possa participar ativamente dos cuidados à sua vida. Segundo Fabbro (1999), só se pode falar em exercício de autonomia quando há compartilhamento de conhecimento e informação da equipe de saúde para o paciente, oferecendo dados importantes, em linguagem acessível, para que qualquer decisão possa ser tomada, garantindo-se a competência de todos os membros envolvidos na situação.
Um aspecto importante a ser apontado, quando nos referimos ao princípio da autonomia, é a constatação de que nos cuidados aos doentes, muitas vezes, ocorre uma relação paternalista, assimétrica, entre eles e os profissionais de saúde: em uma das polaridades está o poder da equipe de saúde e, na outra, a submissão do paciente. Quando se favorece a autonomia, ocorre uma relação simétrica entre profissionais e pacientes, sendo que estes últimos participam de maneira ativa das decisões que envolvem seu tratamento, bem como sua interrupção. Enfim, como já apontei, para que a autonomia possa ser exercida é fundamental que o paciente receba as informações necessárias, que o instrumentalizem e o habilitem para a tomada de decisões, diante das opções existentes em cada situação. Cabe lembrar que, em muitos casos, estamos diante de uma situação conflitiva, na qual várias opções devem ser consideradas – aliás, este é o fundamento das questões éticas. Como aponta Segre (1999), faz-se necessária uma hierarquização desses conflitos, para que se possa buscar uma resposta que atenda às necessidades daqueles que estão sob nossos cuidados.
Considerando as questões sobre o fim da vida, podemos observar que existe uma pluralidade de respostas possíveis e que vários pontos de vista devem ser considerados, não se tratando de um relativismo sem limites.
Um outro ponto que provoca discussões importantes no ramo da bioética é o desenvolvimento da tecnologia médica, o prolongamento da vida, às vezes sem limite, e o dilema entre a sacralidade da vida e uma preocupação com a sua qualidade. Se é a vida, como valor absoluto, que deve ser mantida a todo custo, nada poderá ser feito para a sua abreviação, e deve se evitar a morte a todo custo. Foi o desenvolvimento da tecnologia que favoreceu a manutenção e prolongamento da vida, e então pergunta-se até quando investir em tratamentos e quando interrompê-los. Estes são os dilemas relativos à eutanásia, à distanásia, ao suicídio assistido e ao morrer com dignidade.
Na década de 1960, com o advento dos transplantes, começaram a ser questionados os limites da vida, mantida com máquinas. O critério de morte deixa de ser a parada cardio-respiratória e passa a ser a morte encefálica.
As situações de vida e morte envolvem vários personagens: pacientes, familiares e equipe de saúde, além da instituição hospitalar. Numa relação simétrica, qualquer decisão envolverá todos estes personagens, arrolando-se os prós e os contras de cada uma das opções. Entretanto, na maior parte das instituições hospitalares observa-se a posição paternalista, na qual, baseada no princípio da beneficência, de se fazer o bem e evitar o sofrimento adicional, a equipe age unilateralmente, justificando-se com a ideia de que sabe o que é melhor para o paciente; ou seja, considera que este não está preparado para saber o que é o melhor para si. Assim, a equipe de saúde é a depositária do saber.
Toda esta discussão se torna fundamental quando está em jogo a busca da dignidade, não só durante toda a vida, mas também com a aproximação da morte, envolvendo a valorização das necessidades e a diminuição do sofrimento.
O princípio da justiça envolve a propriedade natural das coisas, a liberdade contratual, a igualdade social e o bem-estar colectivo entendido como equidade: cada pessoa deve ter suas necessidades atendidas, reconhecendo-se as diferenças e as singularidades, como apontam Fortes (2002) e Garrafa e Porto (2002).
Segundo Pessini e Barchifontaine (1994), a pessoa é o fundamento de toda a reflexão da bioética, considerando-se a alteridade, isto é, a sua relação com outras pessoas. Retomamos a questão da vida, e da sua manutenção a todo custo. Quando se leva em conta apenas a sacralidade, o que importa é a vida, sem entrar no mérito de sua qualidade. Quando a discussão envolve a qualidade do viver, então, não são somente os parâmetros vitais que estão em jogo, mas sim que não haja sofrimento. O que é fundamental não é a extensão da vida e sim sua qualidade. Na verdade, estas dimensões não são mutuamente exclusivas e contrárias, porém, complementares. Engelhardt (1998) discute a questão da vida biológica e pessoal e a partir destes pontos de vista, surgem as questões: quando deve ser definido o início da vida; no momento da concepção, na sua evolução, ou na possibilidade de estabelecer relações? E quando termina a vida; na perda da consciência, na impossibilidade de cuidar de si, quando apenas aparelhos mantêm a vida, ou quando o último parâmetro biológico deixa de se manifestar? São questões que demandam muita reflexão e discussão.
Anjos (2002) aponta a importância de se pensar numa bioética para o terceiro mundo, na qual a justiça para todos é uma questão importante, uma vocação para se pensar naqueles que são os excluídos, os pobres, para quem não se discute a eutanásia voluntária, e sim, a involuntária. Trata-se de um erro conceitual, são aqueles que morrem antes do tempo, não pela sua vontade, mas pela falta de atendimento adequado e pelas condições subhumanas de vida. É neste contexto que a noção de equidade é significativa, ou seja, é fundamental atender um número maior de pessoas nas suas necessidades, tanto na alocação de recursos, quanto na sua qualidade e magnitude. Neste quadro, a teologia tem a sua grande força: a justiça, a solidariedade e a fé.
Garrafa e Porto (2002) trazem a seguinte questão: existe uma ética universal? Se a resposta for positiva, encontram-se, aí, obstáculos intransponíveis, pois uma gama imensa de valores está presente nas grandes questões que atingem a humanidade. Por outro lado, o perigo de não se ter como base alguns valores fundamentais é de se chegar a um relativismo que, em algumas situações, se torna intolerável.
Passo, agora, a apresentar quatro situações específicas, de meu interesse, para as quais a bioética tem voltado sua atenção: pedidos para morrer, eutanásia, suicídio assistido e distanásia. Na sequência, serão abordados os cuidados paliativos, como opção às três últimas situações nomeadas, e algumas críticas possíveis a eles.
Ao introduzir o assunto, quero ressaltar a importância da clarificação dos termos usados, para que as discussões que envolvem temas tão polémicos não sejam prejudicadas por diferentes entendimentos. Schramm (2002) aponta que não se trata, apenas, de uma melhor definição dos termos, mas também deve ser observado qual é o posicionamento tomado em cada questão.
Segundo este autor, só uma definição de morte não esclarece este assunto; é preciso entrar no mérito existencial e filosófico, isto é, o que significa fim da vida e por que se quer planejá-lo. A discussão é se existe ou não o direito de determinar o fim da própria vida. O autor cita Frankl e as suas obras que apontam para a questão do sentido da vida, para a percepção do vazio existencial e para o direito de exercer a liberdade da maneira mais radical, ou seja, decidindo sobre a própria vida.
O autor afirma que o temor, em relação à legalização da eutanásia, se relaciona a um suposto aumento do poder dos médicos na determinação da morte. Por outro lado, os que a defendem retomam o princípio da autonomia e a priorização do que é qualidade de vida, apontando que na sociedade actual se observa uma desapropriação da morte. Será que o paciente tem direito a pedir para morrer? O direito à auto-determinação é que poderia justificar uma discussão mais aprofundada sobre a questão da eutanásia.
Retomando a questão de esclarecimento, Wooddell e Kaplan (1997-1998) apontam algumas distinções que devem ser consideradas:
Eutanásia activa: acção que causa ou acelera a morte.
Eutanásia passiva: a retirada dos procedimentos que prolongam a vida. Esta modalidade, na actualidade, não é mais considerada como eutanásia (grifo meu), desde que diante de um caso irreversível, sem possibilidade de cura e quando o tratamento causa sofrimento adicional. A interrupção dos tratamentos, neste caso, recebe o nome, de ortotanásia, ou seja, a morte na hora certa - distinção ainda não aceita por muitos profissionais. Segundo Maurice Abiven, diretor da Unidade de Serviços Paliativos do Hospital Universitário de Paris, citado por Zaidhaft (1990, p. 120), não há eutanásia passiva, sendo esta uma expressão inadequada. Há, simplesmente, respeito à natureza.
Eutanásia voluntária: a acção que causa a morte quando há pedido explícito do paciente.
Eutanásia involuntária: acção que leva à morte, sem consentimento explícito do paciente. Neste caso, não deveria mais ser chamada de eutanásia, e sim, de homicídio; com o atenuante de que é executada para aliviar o sofrimento, possivelmente dos cuidadores, familiares ou profissionais.
Suicídio: acção que o sujeito faz contra si próprio, e que resulta em morte.
Suicídio assistido: quando há ajuda para a realização do suicídio, a pedido do paciente. Esta situação é considerada crime, do ponto de vista legal.
Suicídio passivo: deixar de fazer alguma acção, podendo resultar em morte; por exemplo, não tomar medicação. Esta é uma situação muito difícil de ser comprovada. Falar em suicídio sempre implica na necessidade de uma cuidadosa investigação, já que vários factores podem estar envolvidos nesta acção.
Há, ainda, outros termos que são usados quando se fala de morrer com dignidade, envolvendo temas como eutanásia e suicídio assistido:
Duplo efeito (double effect): quando uma acção de cuidados é realizada e acaba conduzindo, como efeito secundário, ao óbito. Um exemplo desta situação é a analgesia e sedação, aplicada em pacientes gravemente enfermos, que têm como objectivo principal aliviar os sintomas e promover qualidade de vida, e não provocar a morte, embora esta possa ocorrer.
Testamento em vida, vontade em vida (living will): o paciente escreve o seu testamento em vida, referindo-se ao que gostaria que acontecesse, quando não mais pudesse fazer escolhas e participar de seu tratamento. Este procedimento é muito utilizado quando se trata de um pedido de não ressuscitamento. É um documento legal nos Estados Unidos da América.
Ladeira escorregadia (Slippery slope): trata-se de uma zona de conflito e polêmica, na qual certa decisão pode ter efeitos sobre os quais não se havia pensado anteriormente. Por exemplo: a legalização da eutanásia poderá colocar em risco de morte antecipada (embora este não seja o objetivo explícito) populações vulneráveis, como: idosos, pobres e doentes mentais.
Poder durável de um advogado para cuidados de saúde (Durable powers of attorney for health care): é documento por meio do qual a pessoa nomeia outra pessoa para tomar decisões sobre os cuidados de sua saúde, se, e quando ela própria se tornar incapaz de fazê-lo, permitindo, assim, que o médico obtenha de alguém o consentimento informado para algum procedimento ou para interrupção de tratamento.
Assim considerados os diversos graus de acção do paciente, pode-se analisar o grau de envolvimento da equipe médica em questões, tais como conhecimento, cumplicidade e uma acção mais directa da equipe, com conhecimento ou não do paciente.
Estas modalidades não são estanques, mas propõem uma forma de compreensão dos movimentos dos pacientes e médicos na preservação da vida, bem como na possibilidade de induzir a morte.
Pedidos para morrer
Muitas pessoas, em fase final da doença, pedem para morrer. O que estaria na base destes pedidos, uma dor intolerável ou depressão?
Chochinov et al. (1995) estudaram 200 casos de pacientes em estágio terminal e verificaram que apenas 8,5% destes pediram que se apressasse a morte e, entre estes, observou-se uma história de depressão e abandono por parte da família.
Vários pedem para morrer porque consideram sua vida insuportável, sentem-se como sobrecarga para a família. Estão internados em hospitais, solitários, abandonados e impotentes diante da vida e da morte. Muitos se referem a um sentimento de falta de controle. Em outros casos, o pedido para morrer está relacionado com o facto de não estarem recebendo cuidados adequados, tendo sua dor subtratada.
Markson (1995) alerta para que não se considerem todos os pedidos para morrer como irracionais, delirantes, ou vindos de uma profunda depressão. Assim, os pedidos nunca devem ser avaliados como questões simples; ao contrário, devem ser escutados e contextualizados, e jamais deveriam receber respostas rápidas e impensadas. Sem dúvida, valores importantes são questionados nestes casos, inseridos numa cultura que sacraliza a vida e vê a morte como um inimigo a ser combatido a todo custo.
Por outro lado, sabe-se que muitas pessoas não aguentam mais a vida, mas nada dizem sobre isso. Não imaginam poder falar com seus médicos sobre o assunto, nem sequer se acham no direito de pedir informações sobre seu estado de saúde e prognóstico de suas doenças.
Mishara (1999) observou que a dor e o sofrimento estão na base de inúmeros pedidos para apressar a morte. Também foi encontrada, pelo autor, forte relação com depressão clínica. Observa, ainda, que está havendo maior incidência de pedidos de eutanásia, suicídio e comportamentos auto-destrutivos em pessoas com os seguintes problemas psicossociais: depressão, perdas significativas, falta de apoio social e dificuldades em dar conta da vida. Mais recentemente, tem-se observado uma alta relação entre suicídio e demência. Muitas pessoas pedem para morrer, ou cometem o suicídio, quando se vêem diante da possibilidade de dependência, aliada a um sentimento de perda de dignidade. No caso do câncer e da Aids, os tratamentos podem causar tanto mal estar e desespero que preferem morrer. Segundo Mishara, há maior tolerância da sociedade com os pedidos de eutanásia, quando são manifestos por pacientes gravemente enfermos, mesmo que nem sempre a morte esteja tão próxima ou que não haja nada mais que possa ser feito.
É necessário saber se a pessoa quer, de facto, morrer, observando-se suas atitudes, pedidos e acções. Chochinov et al. (1995), na pesquisa já mencionada, verificaram que 44,5% dos pacientes falaram que queriam que a morte chegasse logo, mas só 8,5% fizeram um pedido mais explícito e, destes, 60% tinham um quadro de depressão clínica. Entretanto, muitos pacientes em fase terminal se queixaram de solidão, da falta de presença da família e de dor.
Muitos membros da equipe de saúde não sabem como manejar a dor e outros sintomas incapacitantes, e acabam se afastando destes pacientes. Hennezel (2001) considera que 90% dos pedidos de eutanásia desapareceriam se os doentes se sentissem menos sós e com menos dor. Para ela é importante considerar a legitimidade dos pedidos, ou seja, os pacientes poderem falar que estão cansados da vida, que não aguentam mais o sofrimento. Mas ao pedirem que se finalizem os seus sofrimentos, a autora se pergunta: será que para nos apropriarmos de nossa própria morte, é preciso pedir para que alguém nos mate?
Hennezel, explorando o tema, lança um outro olhar para a questão, ao afirmar que, quando o doente pede para morrer, pede também que se olhe para ele, para o seu sofrimento, para que se sinta legitimado na sua dor. Procura também aprofundar a questão, discutindo a diferença entre desejo e necessidade. Para ela, a necessidade é o que está premente, acessível à consciência e demanda uma resolução imediata, como, por exemplo, o alívio da dor. O desejo não é tão claro à consciência. Uma grande dor para o paciente, sensível e atento, é pensar que o enterraram antes do tempo, prevendo sua morte. Nesta situação, antecipa-se, pedindo para morrer antes que o matem. E a autora afirma que, tanto no pedido para morrer, como na eutanásia, podem estar embutidos uma agressividade inconsciente, uma desilusão de ambos os lados, claros indícios de impotência.
E será que o pedido do paciente para morrer não poderia ser também uma resposta ao olhar de impotência do profissional, que não sabe o que fazer na situação? Como já referi, o pedido para morrer pode ser visto como um pedido de atenção, uma afirmação de que se é humano, que ainda se está vivo. Às vezes, o paciente está tão deformado que não se sente mais vivo, nem é mais visto assim. Não pede obrigatoriamente que se faça algo, mas para que seja visto e ouvido. Não podemos nos esquecer da importância dos últimos momentos de vida para o doente e para os seus familiares.
É importante ressaltar: será que o desejo de morrer está sempre relacionado com sofrimento e depressão? Será que, em alguns casos, não é a constatação de que a vida chegou ao fim? A diferença é que, no primeiro caso, os pacientes exalam tristeza e, no segundo, serenidade.
Há pessoas que não conseguem morrer e pedem ajuda para soltar-se. Morrer pode ser tão tensionante, que não conseguem se libertar. Permitir morrer não é igual a matar. Às vezes, o medo de morrer é tão grande que há enorme necessidade de paz, segurança e, à semelhança do parto, é a busca de um contacto que não retém e sim liberta. Como o assunto é, certamente, polémico e não há consenso entre os profissionais envolvidos, aqui estão apenas sendo alinhavadas algumas considerações.
Outro assunto de interessante abordagem é o do testamento em vida (prática que tem aumentado significativamente), no qual é pedido o não ressuscitamento em caso de parada cardíaca - também uma forma de pedir para morrer. É bastante usual, principalmente nos Estados Unidos, segundo Whiting (1995-1996). No Brasil, ainda não temos esta prática estabelecida.
Os testamentos em vida envolvem a recusa de certos tratamentos médicos que têm como objectivo o prolongamento da vida; são feitos pelos pacientes quando conscientes, e deixados com outras pessoas para o momento em que for necessário, seja em caso de inconsciência, ou de qualquer outra impossibilidade de decisão. Mesmo que este documento represente a vontade da pessoa, respeitando-se o princípio da autonomia, é gerador de muita ambivalência, quando se considera a possibilidade de eventual mudança de opinião durante o curso da doença.
Nos EUA, se não tiver sido feito o testamento em vida, os pacientes passarão por procedimentos de ressuscitamento, em caso de parada cardíaca. Segundo Stephen e Grady (1992), um terço destes procedimentos ocorreu contra a vontade dos pacientes, pelo facto de não haver pedido explícito para que não fosse realizado.
Considero que o testamento em vida pode ser instrumento facilitador, quando se trata de tomar uma decisão sobre o que fazer em situação de conflito. O paciente pode, então, clarificar os seus desejos, reduzindo a possibilidade de serem realizados tratamentos contra sua vontade; facilita, também, a situação para a família, quando esta não teve a oportunidade de conversar com ele a respeito deste assunto, e favorece o princípio de autonomia do paciente.
Aliás, os familiares são ambivalentes quando se trata do paciente, mas muitos, quando pensam o que gostariam para si, relatam que prefeririam terminar logo com tudo.
Hennezel (2001) aponta que muitos familiares acabam pedindo que se apresse a morte do paciente, porque não aguentam ver seu sofrimento; o fim da vida pode ser muito assustador, o paciente pode se tornar um estranho para si mesmo, e para aqueles que lhe são mais próximos. Por outro lado, quando o período final da doença é prolongado, os próprios familiares acabam se esgotando por causa das semanas de vigília ao pé do leito, estimulando os pedidos para o abreviamento da situação.
A equipe de saúde também não sabe o que fazer quando surge o pedido de morte pelo paciente. A tendência mais comum é a de sempre preservar a vida; entretanto, o aumento da expectativa de vida e do tempo de doença, começa a criar pontos de conflito sobre até que ponto é legítimo o prolongamento da vida, às custas de muito sofrimento. Os médicos não se sentem preparados para conversar sobre o assunto e não conseguem lidar com o facto de que o pedido para morrer possa ter uma motivação ligada a um sofrimento intolerável - neste caso, o pedido para morrer seria, basicamente, para alívio. Pesquisa de Chochinov et al. (1995) indicou que 54% dos médicos entrevistados acham que o pedido é razoável, quando levam em conta o grau de sofrimento envolvido; entretanto, quando questionados sobre a possibilidade de, eles mesmos, realizarem o acto de apressar a morte, esta percentagem cai para 33%.
Pesquisas mostraram que 40% dos médicos entrevistados já receberam, de seus pacientes, pedidos para morrer. Este número de pedidos é significativo e demonstra como o fim de vida pode ser muito penoso. Entretanto, a maioria destes pedidos não resultou em sua aceitação. Quando os médicos falam da consumação do acto, o método mais utilizado é o dos coquetéis que misturam calmante, anestésico e veneno, e que permitem uma morte tranquila. A fronteira entre sedação e eutanásia é muito ténue; o que diferencia as duas é a intenção, nem sempre muito clara. Infelizmente, a diferença entre palavras e intenções nem sempre pode ser explicitada.
Hennezel (2001) aponta para a importância de o profissional poder se referir à sua impotência e vulnerabilidade diante do paciente, principalmente quando os tratamentos não estão surtindo os efeitos esperados, mas não significa que se tenha de atender o pedido de apressamento da morte. Confirmando, não prolongar a vida com tratamentos invasivos, permitir morrer, não é igual a matar.
Aponta, também, que vários profissionais não suportam ver o sofrimento de seus pacientes, acabando por atender seu pedido de morte, transformando-se nos anjos da morte, também conhecidos como eutanatólogos. Alguns actos de apressamento da morte podem ser fruto da solidão dos profissionais, que se sentem sem apoio nas tarefas de cuidar dos pacientes em grande sofrimento. Esta solidão pode ocorrer, também, em hospitais ultra movimentados, nos quais os corredores fervem com pessoas correndo de um lado para o outro e, talvez, por isto mesmo sejam chamados de "corredores". Nesta correria ninguém se enxerga e, muitas vezes, nem se sabe o que está acontecendo na sala ao lado.
Em vários hospitais, o fim de vida é pleno de sofrimento, com muitas dores e sem calor humano; pacientes, familiares e enfermeiros abandonados à própria sorte, não sabendo o que fazer, e os últimos tendo mesmo de realizar procedimentos com os quais não concordam.
O que é mais complicado nos hospitais não é a morte em si, mas os dramas até a morte, a agonia. É aí que surge a tentação de aliviar o sofrimento, induzindo a morte. Mishara (1999) observa que houve um aumento de 35% nos pedidos de eutanásia, de 1990 a 1995. Acredito que este facto esteja directamente ligado às intervenções médicas, que provocam um prolongamento da vida, sem preocupação equivalente com a qualidade da mesma.
Maria Júlia Kovács, Instituto de Psicologia –USP, São Paulo 2003
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