sábado, 30 de novembro de 2024

Os meus livros de Dezembro

Hoje, sugiro raridades para trocar entre amigos: antes que acabem. Obrigado por lerem esta newsletter

Os meus livros de Dezembro
Ah, e se o tamanho conta
por Manuel S. Fonseca
“O que eu gostava da Senhora Dona Agustina. Sem ela, talvez eu nunca tivesse sido editor. E é meia-mentira, porque devo à Senhora Dona Mécia, mulher de Jorge de Sena, como ela gostava de dizer, a outra metade de ser eu editor.
Mas o que eu queria dizer é que o tamanho conta e um centímetro faz cá – e lá – muita diferença. Ora, os primeiros livros que fiz com Agustina e Mécia eram quadrados perfeitos com 30 cm de largura por 30 cm de altura. São livros tão lindos que estão esgotados. E são irrepetíveis. Como os que agora apresento e que, felizmente, não estão esgotados e ainda podem oferecer este Natal.
Na imagem, à cabeça destes livros de Dezembro estão dois 30 por 30, que me trazem lembranças ternas. O Fama e Segredo na História de Portugal foi, ia jurar, o último livro que Agustina Bessa-Luís escreveu antes de ir para os grandes e etéreos salões onde deve haver bailes e bonecas como a que ela tinha, e me mostrou, tão grande e sem uma perna. Esse livro, como As Meninas, com Paula Rego, (o mais irreverente e tão picantemente provocatório ensaio sobre arte que o mundo já leu), como o Livro de Agustina, uma autobiografia em que aprendi e nunca me esqueço que «há poucos homens que saibam amar as mulheres e merecê-las», são todos encomendas minhas, muito conversadas em idas à Buenos Aires e até ao Gólgota, à casa e jardim tão bonito que Agustina cultivava no Porto.
Estes livros – o mais delirante livro sobre a história de Portugal, Fama e Segredo, aqui na versão grande e na edição de bolso, mas capa dura, as Meninas e o Livro de Agustina  foi o destino que os pôs na minha mão? E já ouço Agustina a segredar-me: «O destino não é uma fatalidade, é um conflito breve com um sonho.»
No meio da imagem dos meus livros de Dezembro está uma capa toda em ouro: foi a que eu quis dar ao Físico Prodigioso, de Jorge de Sena. Ai o tamanho! É mais de um metro de capa. Desdobra-se em quatro pastas, guardas pintadas pela Mariana Viana – o miolo também. O desdobramento da capa, diga-se, responde ao superlativo erotismo desta novela seniana. Leio O Físico e invejo-o ao vê-lo despertar com Dona Urraca a abraçar-lhe as pernas e a dizer-lhe: «És um deus, és um deus, és um deus.» Olho para esta edição de luxo e penso se não foi em Santa Bárbara, à conversa na cozinha com Mécia de Sena, que o sonho deste livro começou, e que as conversas com Isabel de Sena completaram.
De um erotismo mais directo, carnal e cama, a roçar uma ostensiva pornografia, é a poesia de Claude Le Petit, o último poeta a morrer numa fogueira em Paris. Sobre o seu O Bordel das Musas derramou-se, no entanto, a subtileza do traço a negro do escultor João Cutileiro. Como é que o convenci a fazer estes 22 desenhos (ou são mais?). Foi pela admiração que mostrei ao pingo de descontraída vaidade com que ele me mostrou o seu atelier em Évora? Sei é que os desenhos de Cutileiro conferem ao livro um erotismo de delicados lábios e lábil anca, que um delicioso emaranhado de cabelos – tantos cabelos – despenteia e… perturba.
Haverá um erotismo pessoano? Se há, foi o que a pintora Ana Vidigal encerrou, velado, a fazer o pino às escondidas, na pintura com que abriu Minha Mulher a Solidão, a antologia em que reuni toda a concupiscência de Fernando Pessoa. É o livro graficamente mais inventivo que o Ilídio Vasco, designer da Guerra e Paz, já fez.
Capas duras, papéis especiais, grafismo a rasgar como o vento, pintura, fotografias, lombadas a nu, eis o que todos os meus livros de Dezembro ostentam com pundonor. É assim, também, a edição especial do Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, com ilustrações do notável pintor que foi Rogério Ribeiro e que só pude publicar pela gentileza de Vasco Teixeira, da Porto Editora. Tudo já preparado pela mão hábil de editor, o meu amigo José da Cruz Santos. São os últimos exemplares.
Linda, com cartas e poemas, é a Contradança de Camões, com as ilustrações de Hans Huyghen van Linschoten, talentoso espião holandês na Goa do século XVI. Há contradança entre poemas e cartas, como há contradança entre as ilustrações,  os poemas e as cartas.
E são de Camões, as imagens que fazem o retrato do último livro que Vasco Graça Moura escreveu e me quis deixar: em Retratos de Camões, Graça Moura defende que talvez o único retrato verdadeiro do poeta seja o que dá capa ao livro «saído da mão do próprio Camões, num momento de narcisismo autocontemplativo».
Como  Fama e Segredo, de Agustina, como este livro de Vasco Graça Moura, também o Nacional e Transmissível, outro imponente 30 por 30, foi o último livro que Eduardo Prado Coelho escreveu antes de ir para a grande viagem – e tenho mais alguns «últimos livros» que muito prezo. O Eduardo vinha à editora tomar café e atacar um ou outro pastel de nata. O livro foi um desafio que lhe lancei: o que é mesmo ser português em 22 tópicos, do bacalhau às sopas e ao «senhor doutor». As coisas que, por serem nossas, nos amam. E, respondeu-me o Eduardo: «Ninguém gosta de não ser amado.»
Os meus livros de Dezembro são livros de amor, uns com mais beijos do que outros, lembranças de luxo em livros de luxo. São livros grandes, que se podem mesmo medir aos palmos, de um editor de palmo e meio.”
Manuel S. Fonseca, editor da Guerra & Paz

Sem comentários:

Enviar um comentário