domingo, 30 de julho de 2023

Ao Domingo Há Música


Todas as flores que plantaste, mãe
 No quintal 
Todas morreram quando foste embora 
Eu sei que viver contigo, querido, às vezes era difícil
 Mas estou disposto a tentar novamente
 Porque nada se compara
 Nada se compara a ti

 Nada se compara
 Nada se compara a ti
 Nada se compara
 Nada se compara a ti
                                        
Tinha uma voz incomparável. Morreu a 26 deste mês de Julho, aos 56 anos. Tão pouco tempo  para tanto talento. Uma vida  atribulada, turbulenta e quase madrasta na escolha dos caminhos,  frente às sinuosas  e traiçoeiras curvas  por que passa um percurso existencial. 
Sinéad O’Connor partiu , mas deixou-nos uma variada obra musical. 
Hoje, apresentamos três  peças  que consideramos mais  emblemáticas da sua carreira.

Mother, na belíssima voz de  Sinéad O’Connorcom Roger Waters (Pink Floyd), em 1990, do Álbum The Wall , de 1979.
.
Sinéad O'Connor, em Something Beautiful.
   
Sinéad O'Connor, em  Nothing Compares 2 U,  um clássico de O'Connor. 
Perante esta extraordinária  interpretação, alguém confessou  que " o  seu belo rosto penetra na nossa alma, enquanto a vemos reflectir sobre a relação perdida de que trata a canção." 
 

sábado, 29 de julho de 2023

No centenário de "Os Pescadores" de Raul Brandão



Em Agosto de 1922 , Raul Brandão seguia no comboio para Sagres. Tinha já atravessado o Alentejo e chegado ao Algarve, numa manhã desse Agosto centenário. Num registo riquíssimo confessa: " De manhã saio em Olhão deslumbrado. Céu azul-cobalto - por baixo , chapadas de cal. Reverberação de sol, e o azul mais azul, o branco mais branco. Cubos, linhas geométricas, luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra."
É numa prosa de deslumbramento , num " impressionismo atlântico", como o classifica Aquilino Ribeiro, que Raul Brandão apresenta esse belíssimo roteiro de Caminha a Sagres.
Passaram cem anos, e a obra continua a descobrir um Portugal de paisagens múltiplas e denodada gente que faz de Raul Brandão um autor de hoje e de sempre.
O último capítulo deste livro, Os pescadores, é a viagem pela costa do Barlavento algarvio, em fluida e quase sensorial descrição , como se de uma grande aguarela se tratasse, feita por um paisagista excepcional.
Eis, pois, esse belíssimo quadro brandoniano:
Antiga Praia da Rocha 
SAGRES
Agosto - 1922
“Pela portinhola do comboio vou seguindo a paisagem de figueiras e de vinhas que desfila. De um lado o céu doirado e violeta, do outro todo roxo. Os nomes das estações têm um sabor a fruto maduro e exótico – Almancil-Nexe, Diogal, Marchil... De quando em quando fixo um pormenor: uma mulher passa na estrada branca, entre oliveiras pulverulentas e fantasmas esbranquiçados de árvores, sentada no burrico, de guarda-sol aberto, e dando de mamar ao filho. Terras de barro vermelho. Grupos de figueiras anainhas estendem os braços pelo chão até ao mar, deixando cair na água os ramos vergados de fruto, que só amadurece com as branduras. Uma ou outra casinha reluzindo de caiada: ao lado, e sempre, a nora de alcatruzes e um burrinho a movê-la entre as leves amendoeiras em fila, as oliveiras dum verde mais escuro e a alfarrobeira carregada de vagens negras pendentes. A mesa de Deus está posta. Estradas orladas de cactos imóveis como bronze, e a deslumbrante Fuzeta, com o seu zimbório entre árvores esguias. Ao longe, e sempre, acompanha-me o mar, que mistura o seu hálito a esta luz vivíssima. 
Atravesso Portimão de olhos postos no castelo de Arade, onde o velho poeta sonha com O Fausto, e talvez como ele em recomeçar a vida. A luz é cada vez mais viva. Um homem com dois cabazes apregoa na rua: é um tipo seco e tisnado de mouro, de camisola azul e perna nua. Passa uma carrinha guizalhando, e logo atrás outro burro com bilhas de água fresca. É extraordinário o que este pobre jerico inocente e peludo, de olhos límpidos, trabalha no Algarve. É ele que leva a fruta ao mercado e tira a água das noras. Lavra as terras calcinadas, transporta pelas estradas soalheirentas, adornado com cordões vermelhos, quase uma família a dorso. Vai às Caídas buscar as grandes bilhas vermelhas que transpiram, mata a sede da gente e a sede da terra – e não sei se embala os berços... Produz muito e contenta-se com pouco. Detenho-me um instante na cenográfica praia da Rocha, extasiado nos dois grandes penedos destacados e num fio de areia doirada ao pé da água azul – tudo pintado por Manini agora mesmo. A um lado a ponta do Altar entra decidida pelas águas; do outro, o esfumado Lagos mal se entrevê ao longe... Duas impressões se fixam no meu espírito para sempre: a noite extraordinária, a luz maravilhosa. A luz sustenta. Basta esta luz para se ser feliz. É ela que encanta o Algarve. É ela que produz os figos orjais, os coitos, os bracejotes, todos eles amarelos, a estalar de sumo, e destilando um líquido perfumado, e o figo preto de enxaire que se mete na boca e sabe a mel e a luz perfeita. É ela a criadora destas agonias doiradas que vão esmorecendo e passando por todos os tons até morrer a muito custo. E as noites mágicas e caladas, as noites sem lua, muito mais claras que as noites do norte, em que se distingue a brancura voluptuosa das casas e se vêem as estrelas enormes reluzindo através das amendoeiras.
Lagos, o deslumbramento da baia, e sigo logo de carrinha pela estrada branca, entre amendoeiras e figueiras derreadas. Andam mulheres com grandes chapeletas na cabeça, a apanhar a amêndoa varejada. Às figueiras chega-se com a mão. Há algumas que deitam braços, mergulham-nos na terra, criam novas raízes e tornam a puxar outra figueira. Há-as aninhadas, com um metro de altura e uma roda enorme. Há-as muito velhas, retorcidas, com os ramos em novelo. Mas cruzo a estrada da Luz, e logo, de Almádena para diante, a terra muda de aspecto. Estranho o Algarve. Deixa de ser risonho e torna-se rasteiro e pedregoso. Inquieta-me... É a via sacra que começa. O monte desolado enegrece. Até as casas são escuras. A terra dá calhaus roídos, e de Budens para lá, a desolação redobra. Nem uma figueira, nem uma amendoeira. Pedras cor de lousa, resteva e rosmano. E a esta uniformidade sucedem na estrada deserta as ondulações de Vila do Bispo com alguns moinhos abandonados. Cinza, vegetação pegajosa, cujas folhas rebrilham como vidrilhos – a folha do rosmano, que desta secura extrai a humidade das lágrimas. Mais alguns passos e, ao cair fúnebre da tarde, isto atinge a opressão. Não pelo que é. É nada. É o vago acinzentado. Nem tojo, nem pedras. Uma terra indefinida e plana como um pensamento doloroso que se obstina e não consegue fixar-se. Bandos de gralhas levantam voo no deserto...
O promontório é um punho nodoso, com dois dedos estendidos para o mar – a ponta de S. Vicente e a ponta de Sagres. Nos dias sem sol, como o de hoje, os dedos parecem de ferro: apontam e subjugam-no. Em frente o mar ilimitado; em baixo o abismo, a cem metros de altura. Ventanias ásperas descarnam o morro cortado a pique, e no Inverno as vagas varrem-no de lado a lado. Sagres é o cabo do mundo. Levo os pés magoados de caminhar sobre pedregulhos azulados, num carreirinho, por entre lava atormentada. Do passado restam cacos, o presente é uma coisa fora da realidade, grande extensão deserta, pardacenta e encapelada, com pedraria a aflorar entre tufos lutuosos; vasto ossário abandonado onde as pedras são caveiras, as ervas cardos negros e os tojos só espinhos e algumas folhas de zinco. O mar – é verdade, esquecia-o – mas o mar como imensidade e tragédia, e ao lado a gigantesca ponta de S. Vicente, só negrume e sombra. Mar e céu, céu e mar, terra reduzida a torresmos, e o sentimento do ilimitado. 
Grande sítio para ser devorado por uma ideia! Isto devia chamar-se Sagres ou a ideia fixa... Só agora entrevejo o vulto do Infante. Cerca-o e aperta-o a solidão de ferro. Pedra e mar – torna-se de pedra. Está só no mundo e contrariado por todos. Obstina-se durante doze anos! Contra o clamor geral. – Perdição! Perdição! – agoura toda a gente, e Ele não ouve os gritos da plebe ou a murmuração das pessoas «de mais qualidade» (Barros). Aqui não se ouve nada... Nem um sinal de assentimento encontra. Não importa. Só e o sonho, na gigantesca penedia que com dois dedos inexoráveis aponta o caminho marítimo para as Índias pela direcção da ponta de Sagres, e a descoberta do Brasil pela direcção da ponta de S. Vicente. Lágrimas, orfandades, mortes... Mas o homem de pedra está diante deste infinito amargo e só vê o sonho que o devora. Rodeia-o a imensidão. Os mais príncipes contentam-se «com a terra que ora temos, a qual Deus deu por termo e habitação dos homens». Este Príncipe não. Este Príncipe pertence a outra raça e a outra categoria de homens. Não lhe basta um grande sonho – há-de por força realizá-lo e «levar os Portugueses a povoar terras hermas por tantos perigos de mar, de fome e de sede». Não é egoísmo, mas só vive para o pensamento que se apoderou de todo o seu ser. Um pensamento e o ermo. E este é óptimo para forjar uma alma à luz do céu ou do inferno. Os dias neste sítio magnético pesam como chumbo. Uma pobre mulher do povo dizia-me ontem: – Isto aqui é tão nu e tão só que a gente ou se agarra a um trabalho e não o larga, ou morre. 
É a realidade que nos mata. Este panorama é na verdade trágico. Não cessa dia e noite o lamento eterno da ventania e das águas. E os cabos, que são de ferro e escorrem sangue, obstinam-se em apontar o seu destino de dor a esta terra de pescadores.”
Raul Brandão, in “Pescadores”, Publicações Europa-América, pp.158-159
Raul Brandão

Sobre o autor
Raul Brandão
(1867 – 1930)
"Nasceu na Foz do Douro (Cantareira), na rua que tem hoje o seu nome e dantes se chamava da Bela Vista. Da casa paterna, que então se destacava na «vila de pescadores e de marítimos», avistava-se o «mar diáfano ou colérico», cenário grandioso de uma infância marcada pelo desaparecimento do avô materno «com toda a tripulação do seu brigue»; pelo drama dos naufrágios costeiros; por figuras redivivas nas páginas das Memórias e d’Os Pescadores: a avó Margarida, o pai, armador de pesca e leitor de Camilo; a mãe, de quem herdou o amor pelas árvores e o sonho «que a devorou até final»; a velha criada Maria Emília, que lhe inspirou a ternura com que urde a personagem mais comovedora da sua ficção (Joana). Depois de passar por uma escola local, ingressa no Colégio portuense de S. Carlos. A rudeza da pedagogia merece-lhe esta nota: «há quem tenha saudades do colégio: eu sonho às vezes com ele e acordo sempre passado de terror» (BRANDÃO 1925, 1999 : 179). O confronto com uma realidade desconhecida, e por vezes brutal, leva-o a refugiar-se no sonho, espaço de resistência inexpugnável que se tornará um tema maior na sua obra. Em 1880, transita para o Liceu Central do Porto, onde virá a concluir os estudos liceais. Em 1888 «frequenta, como ouvinte, o Curso Superior de Letras» (CASTILHO 1979: 497) e colabora n’ O Monitor (Leça da Palmeira), onde publica os primeiros textos. A escolha da carreira militar leva-o a seguir os trâmites indispensáveis à aceitação da sua matrícula na Escola do Exército.
Impressões e Paisagens (1890) é o seu livro de estreia, colectânea de contos brevíssimos que, segundo a «Nota» de fecho, já «não represen­tam a (sua) maneira actual de sentir nem de escrever». O esclarecim­ento ganha apreciável importância no contexto da literatura finissecular, quando o realis­mo‑naturalismo entra em fase descendente e uma plêiade de escritores novistas, insubmissos ou nefelibatas se proclama em ruptura com os cânones estéticos vigentes, embora, nalguns casos, não possamos ver mais do que prolongamentos ou reformulações de tendências anteriores. Por esta altura, junta-se ao grupo dos decadentes e simbolistas portuenses, de que fazem parte, entre outros, Justino de Montalvão e Júlio Brandão, a quem dedica o texto «O Nefelibata Júlio Brandão», publicado nas Novidades (1891) e tendo como pano de fundo o sofisticado meio artístico em que se moviam os jovens literatos da cidade invicta. As suas reuniões no atelier do pintor Inácio de Pinho são evocadas no folheto Os Nefelibatas, editado sob o pseudónimo colectivo de Luís de Borja em fins de 1891 ou no início de 1892, e de inegável interesse histórico-literário. Autorizada a matrícula no curso de arma de Infantaria (23 Out. 1891), Raul Brandão fixa residência em Lisboa por dois anos e inicia-se no jornalismo, escrevendo para O Imparcial. Relaciona-se com artistas plásticos como Celso Hermínio e Columbano, que o retratará em duas magníficas telas, a última das quais com sua mulher. Publica Vida de Santos (1891), de parceria com Júlio Brandão, e escreve para a Revista de Portugal («O Livro de Aglaïs de Júlio Brandão», Porto, 1892) e a Revista Ilustrada (Porto, 1892-93). Concluído o curso (Out. 1893), segue-se o estágio de oficial do exército na Escola Prática de Infantaria de Mafra (1894), após o que presta provas práticas como cadete no Regimento de Infantaria n.º 6, no Porto. É lançada a Revista d’ Hoje (Porto-Lisboa, 1894-96), que dirige com Júlio Brandão. Alguns dos textos que aí edita – a meio caminho entre a estesia dolorista e a utopia anarquista, o fragmentarismo autobiográfico e a ficção – serão recolhidos na História dum Palhaço (v. infra). Nos anos de 1895 e 1896 colabora assiduamente n’ O Correio da Manhã (dir. Pinheiro Chagas), escrevendo crónicas e narrativas breves sobre o tema da exclusão social em cenários urbanos de doença e delinquência. Alguns destes textos são células germinativas de futuros livros. Em Maio de 1896 é promovido e transferido para o Regimento de Infantaria n.º 20, em Guimarães, onde conhece Maria Angelina d’Araújo Abreu, onze anos mais nova e por quem se enamora. Após o casamento, em 11 Março de 1897, compra uma quinta na Nespereira, cuja «vivenda antiga à lavradora» se transformará na Casa do Alto. Este período da sua vida está abundantemente documentado no livro Um Coração e uma Vontade, de Maria Angelina Brandão (1959), que é também a sua primeira e rigorosa biógrafa. A publicação de História dum Palhaço (1896) assinala uma nova fase da vida literária de Raul Brandão, como é realçado por Justino de Montalvão na revista portuense A Arte (1898), ao apresentar o «Psicólogo e Poeta» cuja «prosa […] acutângula e mordida […] feita aos bruscos rasgões dolorosos […] dúctil e nervosa» parece «como nenhuma outra apta para estenografar o drama complexo desta era torturada de revoltado pessimismo e de misticismo niilista». Seguem-se dois textos de Brandão: um excerto do romance inédito A Vida e a Dor (nunca publicado); e «Uma carta» autobiográfica ao modo “nefelibata”. Em princípios de 1899 sobe à cena, no Teatro D. Maria II., A Noite de Natal, drama escrito em co-autoria com Júlio Brandão, e que é calorosamente saudado por Abel Botelho (Brasil-Portugal, 1 Fev. 1899). Neste mesmo ano, colocado a seu pedido no Quartel-General do Porto, passa a viver na Cantareira. Nomeado correspondente literário da revista Brasil-Portugal (1899-1905), Raul Brandão é também um dos seus principais colaboradores, publicando, entre outros textos, a “História do Batel Vai com Deus e da sua Companha” – dez quadros sobre a vida dos pescadores, vindos a lume em sucessivos números (1 Jan. – 16 Jul.) e que antecipam Os Pescadores.
Em 1901, depois de nova promoção, pede para ser transferido para Lisboa, passando a colaborar n’O Dia, n’O Século (supl. «Revista Literária, Científica e Artística»), no Diário de Notícias. O teatro D. Amélia leva à cena sem sucesso «O Maior Castigo», um novo drama escrito a solo, cujo original se perdeu. Segue-se a entrega, no Teatro D. Maria II, de uma peça em cinco actos de que também se perdeu o rasto (O Triunfo, 1902). Em 1903 é secretário de redacçãod’O Dia (dir. José Maria de Alpoim), onde publica uma série de reportagens não assinadas sobre hospitais, cadeias, manicómios, teatros; e inquéritos sócio-profissionais à vida dos pescadores, dos camponeses e dos operários. Em Maio de 1906, com a saúde abalada em consequência de um esgotamento nervoso, faz um cruzeiro pelo Mediterrâneo, em companhia de sua mulher, e visita várias cidades europeias. Em 1908, já tenente do exército, condecorado com a Medalha Militar de Prata de classe “Comportamento Exemplar”. É nomeado Cavaleiro da Real Ordem Militar de S. Bento d’Aviz (1 Jan. 1910) e obtém a patente de capitão (25 Jan. 1910). Pouco tempo depois pede a reforma e passa à disponibilidade (8 Jun. 1911). Há uma nota comovida sobre a morte do pai (23 Jul.) e da mãe (4 Ago.) no volume I das Memórias. Por Decreto de 17 de Fevereiro de 1912, é reformado no posto de Capitão de Arma de Infantaria. A sua saúde frágil contribuiu para que a carreira militar – seguida por pressão familiar e não por vocação (como ele próprio confessa) – fosse desde cedo feita nos serviços administrativos do Exército. Várias comissões de serviço permitiram-lhe desempenhar as funções de bibliotecário, mais adequadas à sua condição de escritor, e coligir materiais para uma história de Portugal que chegou a projectar. Sabemo-lo pela correspondência travada com Pascoaes, com quem se relaciona a partir de 1914, tornando-se sócio da Renascença Portuguesa, que edita a primeira edição de Húmus, e colaborador d’ A Águia, onde publica importantes textos. Esta amizade inter pares, feita de mútua admiração, fica selada pela co-autoria da tragicomédia Jesus Cristo em Lisboa (1927). A partir de 1912 passa a residir na Casa do Alto, consagrando-se à escrita e à exploração agrícola da sua quinta. Contudo, continua a passar os meses de Outono e Inverno em Lisboa, onde procura o convívio intelectual com os seus amigos, alguns dos quais integram o Grupo da Biblioteca, núcleo da Seara Nova, de que foi sócio fundador em 1921. A sede da revista, que ficava na praça de Camões, passa a ser um ponto de paragem obrigatória no seu habitual «périplo do Chiado» (CASTILHO 1979: 65, ss.). A alternância entre a vida rural e a vida lisboeta – depois de longas permanências na York House acaba por alugar um andar na Lapa – não se faz contudo sem regressos regulares à casa da Cantareira, frente ao Cabedelo. O último terá ocorrido entre 10 e 16 de Novembro de 1930: A Foz está viva! Tenho-a diante de mim [...]. A Foz vai doirando lentamente, ano atrás de ano [...]» (BRANDÃO 1923, 1973: 21-22). Em 31 de Maio de 1927 é nomeado sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa. Morre em Lisboa, aos sessenta e três anos, na sua casa da Rua São Domingos à Lapa, deixando uma obra consolidada, a que se virão juntar dois livros inéditos, além da curiosa produção do «pin­tor das horas perdidas» que também foi.
Considerado em sentido lato como um escritor de desinência pós‑na­tural­ista (LOPES 1987: 343) ou, numa perspectiva comparatista, como «exemplo paradigmático do escritor de transi­ção» (MACHADO 1999: 13), Raul Brandão pôs radicalmen­te em causa as concepções estéticas vigen­tes na sua época, por uma vontade de ruptura indissociável da intensa vocação indagadora que sustenta a singulari­dade do seu projecto estético. Abolindo a oposição entre prosa e poesia, subvertendo as categorias genéri­cas, desvalorizando os elementos conven­cionais da narrativa, a ficção bra­ndoniana antecipa as experiências mais inovadoras efectuadas no âmbito da narrativa contemporâ­nea. É tempo de se reconhecer que o papel de Raul Bran­dão relativamente à novelística portu­guesa contemporânea excede em larguíssi­ma medida a impor­tância que lhe tem sido atribu­ída, uma vez que, com ele, é um novo paradigma ficcional que está em emer­gência: o de uma ficção minada pela suspeita de que a vida é «uma mentira trágica» levantada «até ao céu a poder de palavras»[i]. Ler Raul Bran­dão hoje implica não apenas um confronto com os problemas teó­ricos que a sua obra levanta, mas também a necessidade de os avaliar em função do efeito de ruptura que ela produziu. Sem deixar de interrogar criticamente o seu tempo, a escrita de Brandão surge hoje aos nossos olhos como uma extensa, profun­da e dilace­rada meditação sobre a condição humana face à finitude. Se essa meditação não teve con­dições para frutificar num terreno tão visce­ral­mente adver­so à especula­ção metafís­ica, apesar de se desenvolver no âmbito de uma ex­periên­cia estética investi­da pelo pathos de uma subjec­tividade inter­pelan­te, contribuiu, no mínimo, para refor­çar o estatuto ambíguo da sua obra, embora tal am­biguidade t­enha sido frequen­temente interpretada como o reflexo de uma deficiên­cia estrutu­ral, e não como um inequívoco sinal de moderni­dade extrema. Segundo certa crítica, tratar‑se-ia mesmo de uma abs­oluta in­capacidade de cons­trução nar­rativa, argumento que tem servido para aferir a sua grandeza por defeito. Raul Brandão é autor de uma obra vasta e multímoda, que se reparte por vários géneros – ficção, teatro, memori­alismo, literatura de viagens, ensaio historio­gráfico – além de ter cultivado a crónica jornalística e diversas modalidades de crítica (literária, teatral e de artes plásticas). Contudo, por ela se projectar muito para além do horizo­nte estético do seu tempo, nem sempre beneficiou de uma recep­ção crítica que estivesse à altura de a julgar na justa medida da sua grandeza, não obstante o seu as­sinalável êxito num meio literário restrito. No prefácio a Memórias (vol. I, 1919), datado de Setembro de 1910, Raul Brandão define lapidarmente a condição trágica do homem moderno, apontando simultaneamente o fundamento da sua angústia existencial: «A nossa época é horrível porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado desap­areceu, de futuro nem alicerces exis­tem. E aqui estamos nós sem tecto, entre ruínas, à espera...» (1919, 1998: 36). Sob o signo do desastre, a sua obra não é mais do que a expressão sublime da renúncia à felicidade da escrita – uma escrita que traz consigo o germe da destruição de qualquer sentido estável, que representa o irrepresen­tável, que dá a ver o invisível, que dá a ouvir o silêncio mortal que cerca cada palavra. Se a arte de Raul Brandão surge muitas vezes na fronteira da vida com a literatura, é porque ele concebeu a função do escritor em termos autenti­ca­mente modernos, isto é, em íntima conexão com uma atitude intelectual que a cada momento reivindica o livre exercício do espírito contra todas as formas de degradação dos valores humanos e contra todos os dog­mas. A sua intuição estética ­leva‑o a conciliar a herança romântico-simbolista com uma mundividência agónica e parado­xal, alimentada pelo radicalismo crítico que é o nervo da sua criação.
O seu livro de estreia, Impressões e Paisagens (1890) é uma colectânea de contos brevíssimos que, segundo a «Nota» de fecho, já «não represen­tam a (sua) maneira actual de sentir nem de escrever». O esclarecim­ento ganha relevo no contexto da literatura finissecular, quando o realis­mo‑naturalismo entra em fase descendente e uma plêiade de escritores novistas, insubmissos ou nefelibatas se proclama em ruptura com os cânones estéticos vigentes, embora, nalguns casos, não possamos ver mais do que prolongamentos ou reformulações de tendências anteriores. No ano de 1890, depois do Ulti­matum, abre‑se uma crise política que vem agudizar o senti­mento de uma irreversível decadência nacional, herdado da geração dos vencidos da vida, de que Antero é o símbolo sacrificial. Sob o impulso de várias influên­cias, por vezes con­tra­ditórias, a nossa es­tética finissecular, impregnada de satanismo e transfundindo o spleen baude­lai­riano no pessimis­mo de Schopenhauer, depressa se diversifica em t­endên­cias de sinal contrá­rio, que oscilam entre o puro esteticismo e o panfletaris­mo literário. Comuns aos movimentos europeus que despontam por essa época são, em doses variáveis, os temas da revolta indivi­dualis­ta, ou da fraternidade mística, o ódio à burguesia, à sua moral, aos seus valo­res, às suas institui­ções, a atracção pelo anarquismo utópico, pelo espiritis­mo, pelas ciências ocultas, pela heterodoxia religiosa – e um niilis­mo prol­ixo, que deixa entre­ver no horizo­nte o advento de futuros messianis­mos redentores. De tudo isto encontramos ecos na Revista d’ Hoje e nas publicações literárias da época. As correntes que ganham terreno no fim do século (decaden­ti­smo, sim­bolismo e neogarretismo), e que reflectem as novas tendências estéticas, são o resultado quer da «influência do estrangeiro», quer da «regressão ao génio nacional», expressões utilizadas por Moniz Barreto no ensaio intitulado «A Literatura Portuguesa Contemporânea», publicado na Revista de Portugal em 1889, e onde o crítico aponta à nova geração «um vasto campo de acti­vidade e reforma». É interessante constatar que o folheto Os Nefeli­ba­tas, editado no Porto e tendo como presumíveis redactores Raul Brandão, Júlio Brandão e Justino de Montalvão, fica a meio-termo entre a paródia e o manifesto. Na revolta contra uma Tradi­ção caduca e na dogmática que aí se enuncia, devemos ver mais do que uma atitude snob e local de importação estrangeira. Trata-se, sim, de uma manifestação do espírito iconoclasta europeu que fará eclodir as vanguardas do século XX e ganhará uma irreprimível força no contexto literário português. A rejeição dos modelos literários do passado e a recusa de qualquer inscrição social ou religiosa levam os jovens nefelibatas a fazer uma profissão de fé no anarquismo intelectual. Apresentam-se como «uma legião indiscipli­nada, não inscrita no recenseamento da Tradição ou no recen­seamento da Academia, fora do Manual do Bom‑Tom, em revolta com o Padre‑Eterno e o Dicionário de Rimas de Castilho […] Ateus do Preconceito e da Opinião Pública [...] não professando nenhum culto, nenhum Evangelho, nem o do Classicismo nem o do Catolicismo, cuspindo em todas as hóstias consagradas dos ritos burgueses. Anarquistas das Letras, petroleiros do Ideal, desfraldando ao vento sobre os uivos e os apupos dos sebastianis­mos retóricos o estandarte de seda branca da Arte Moderna!...» (apud GUIMARÃES 1988: 31).
Raul Brandão é aqui retratado como «o alto e loiro filho de marinhei­ros», em cuja «compósita intelectualidade» são reconhecíveis duas faces: a diurna, «a das claras e azuis vagas»; e a nocturna, a «do claro‑escuro pesa­delo, a fase torcionada e alucinada da sua nevrose». Uma das pas­sagens mais significativas do opúsculo é aquela em que podemos reconhecer – ainda que saída por blague da pena de Luís de Borja – a fórmula estética em que se baseia o ideário artístico de Brandão: «A arte é a Sinceridade: cada um deve escrever como numa confis­são» (ed. cit., p. 38). O seu sentido é completado mais adiante: «[…] um livro devia ser uma confissão, com uma personagem única, o autor: – A autobio­grafia, bem simplificada, é em breves linhas a teoria de Arte que me parece a mais simples, a mais natural, a mais humana. / Ninguém como K. Maurício pôs em prática esta teoria de arte» (p. 40). Esta figura literária, criação exclusiva de Raul Brandão, é o protótipo do artista decadente e nevropata, que vive para a Arte sem a dissociar da Vida: «assim decidiu deixar um livro sofrido. [...] o seu livro Confissão é uma autobiografia estranha, de uma tristeza indefini­da. K. Maurício para escrever esse livro fez‑se uma doença de medula» (ibidem).
A recuperação desta figura nas páginas do Correio da Manhã (1895-96) e nos dois primei­ros nú­meros da Revis­ta d’ Hoje (1894­‑95) explica o subtítulo do seu segundo livro: História dum Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício), publicado em 1896. A fórmula estética d’Os Nefelibatas está, pois, na base de um programa estético que alcança aqui o primeiro desenvol­vimento consequente É com este livro que a nossa modernidade literária conhece uma nova direcção, marcada pela dualidade e pela negatividade. Numa espécie de prefá­cio­ («K. Maurí­cio»), Raul Bran­dão apre­senta‑o como «autor» póstumo de um conjunto de inéditos, «amál­gama de lama e de dor», de que destaca um «roma­nce in­completo [...] que é quase uma auto­bi­ogra­fia» e cor­respon­de à «se­gun­da parte» do livro («O Palhaço e o Amor»). A «primei­ra parte», consti­tuída por excer­tos «dos seus papéi­s» e pelo seu «Diário», abre com uma introdução de três págin­as. A terceira parte, «Os Seus Papéis», inclui quatro pe­quenas nar­rativas (1896, 2005: 7-16). De K. Maurício, figura quase sempre vista como o alter ego ficcional de R. Brandão, quase se diria ser um heterónimo de vida curta, que tendo surgido com Os Nefelibatas ganha alguma consistência nas publicações subsequentes. A sua filoso­fia, timbra­da pelo pessimis­mo finissecular, salda‑se numa volup­tuosidade niilista em que a morte surge como a única saída para o desespero existen­cial. Se uma estéti­ca está neces­saria­mente ligada a uma concepção do mun­do, este livro pode ser visto como um libe­lo anarquista em que a estrutura fragmentária e o recurso à elipse tradu­z­em no plano estético o desejo de dest­ruir um corpo social repulsivo e de desar­ticular os valores que o per­petuam. Num artigo publicado em dois números da Revista d’ Hoje («O Anarquismo»), Brandão já expressara de modo eloquente a sua compaixão pelos excluídos, através do discurso veemente do filófo Pita cujas palavras transitam para a História dum Palhaço. Por conseguinte, os grandes temas bran­donianos já aqui com­pare­cem esboço: a dualidade do «eu», o sonho, a vida como ilusão, a dor, a miséria, a mar­ginalidade, a morte, o grotes­co e o absur­do da condição huma­na. Essa rede temáti­ca é o sub­strato de uma construção simbólica onde já se torna patente o pendor expres­sionista de toda a sua obra e um incon­formismo estético que afirma uma postura ine­quivoca­mente moderna, revela­dora de um poder de negação não assimilável às tendências literárias da época. O desdobramento da narrativa, a dualidade dos narradores, a fuga ao sentido comum – à doxa – através de um discurso paradoxal que se organiza por meio de uma técnica de ascensão metafórica e do recurso frequente a figuras como a antítese, o oximoro, o quiasmo, são alguns dos aspectos que terão mais amplo desenvolvimento em obras posteriores, e que atingirão toda a sua magnitude no Húmus. A «utopia» e a «fé num ideal» são aspec­tos vitais do anar­quismo que Brandão transpõe para a sua obra e que, na sua configu­ração disfórica, assumem uma ressonância trágica: desde as produções juve­nis até às da maturidade, que se inscrevem já num sistema estético‑literário específico, onde avultam as antinomias deflue­ntes da dicotomia vida/arte. A atracção de Raul Brandão pelo jorna­lismo traduz o desejo de superar esta e outras dualid­ades, uma vez que, através do exercício da crónica ‑ o seu género predilecto ‑, foi possível transgredi­r‑lhe as fronteiras e transformá‑lo numa forma artística de intervenção imediata e de alcance ético: naquela «arte de situa­ção», preconizada por Proudhon, que é «função do tempo e do lugar». Neste aspecto, é elucidativo que Raul Brandão dê tanto realce à função testemun­hadora do jornal no folheto O Padre (1901). Nas páginas vibran­tes do opúsculo, em que se evidencia a heterodoxia do autor, adquire expres­sivo relevo a temática da revolução social. Na interpretação de T. Ramires Ferro, ela decorre de um dos motivos centrais e obsessi­vos do seu pen­samento: a desagregação do presente histórico e o fim da civiliza­ção. Posteriormente, essa temática cristalizará na imagem da insur­reição popular e ligar‑se‑á ao tema da palingenesia, como acontece na tragicomé­dia Jesus Cristo em Lisboa (1927) e numa das suas obras publi­ca­das postu­mamente: O Pobre de Pedir (1931).
Raul Brandão escreve Os Pobres entre Maio de 1899 e Janeiro de 1900, mas o romance só é publicado em 1906. O livro assinala o início de uma nova fase de cria­ção literária, em que o autor, nas palavras de Gui­lherme de Castilho, «assume plenamente a responsabilidade do seu destino de artista» (CASTILHO 1979: 165]. Para o seu relativo êxito terá certamente contri­buído a «Car­ta‑Prefácio» de Guerra Junqueiro, uma das grandes figuras literárias da época, datada de 1902‑3 (1906, 1984: 33-48). Mas o aspec­to mais importante pren­de‑se com o facto de a obra reflectir o contacto do seu autor com uma reali­da­de urbana onde os contrastes sociais se revelam chocantes. O impacto dessa experiência, proporcionada pela actividade jornalística, reforça o seu desinteres­se por uma litera­tura de moldes convencionais e leva‑o a explorar os cami­nhos abertos pela nar­rativa simbo­lista, em que a história se dilui e as per­sonagens, mais poéticas do que romanes­cas, são ícones de uma visão trágica da existência. A simpatia de Raul Brandão por aqueles que habi­tam as margens de uma sociedade «domi­nada pelo oiro», onde impera a lei do mais forte pelo mesmo determi­nismo que governa a Natureza, tor­na‑se o motor da sua criação estética. Se esta é herdeira de um Roman­tis­mo social de inspiração saint‑si­monista e lamar­tiniana, onde a influência de um Miche­let e, sobretudo, de um Prou­dhon ‑ que preconi­za «uma arte nova, con­cebida nas entran­has da Revolu­ção» ‑, se conjuga com o visionarismo épico­‑meta­físico de um Victor Hugo, a verdade é que, tanto pelo sopro de inconformis­mo que a percorre, como pela capacidade inova­dora que traduz, ela transpõe num surpreendente isolamento o limiar de uma Moder­ni­dade extrema.Com Os Pobres, é‑nos revelado o mundo dos excluídos ‑ ladrões, prost­itutas, órfãos, sonhadores, fracos ‑, cuja vida é «um rio de lágrimas, de brados, de mistério»; o «enxurro humano», feito de seres segregados por uma sociedade implacável, a quem só resta a escolha entre a violência e o sonho. É através do sonho que todas essas personagens sublimam a violência que as tenta, padecendo a dor de existir numa socie­dade que resultou da «vitória dos arrogan­tes sobre os humildes, dos fortes sobre os débe­is, da besta sobre o anjo», diz Guerra Junqueiro (1906, 1984: 38). A dor, por detrás da qual se desenha uma Dor maior, de cariz metafísico, universal e redentora, que faz do pobre um mártir. Perante a om­nipotência do Destino e a inelutabili­dade do sofrimen­to, a vida dos pobres parece encontrar o seu derradeiro sentido no próprio processo de degradaç­ão física e moral que conduz ao desespero e à abjec­ção grotesca. Mas a via negativa da degradação alarga‑se inespera­damente para uma dimensão transcendente, em que o sofrimento individual se transfunde num dolorismo universal que adquire um valor salvífico. Na meditação brando­nia­na, onde se repercute o miserabilismo patético de Victor Hugo, prolongado pelo alegorismo social e panteísta da poesia ante­riana e pelo dinamismo pampsiquista de Junqueiro. Se o romance traz ao primeiro plano a realidade sociológica que é o pobre, segundo Vitor Viçoso (1906, 1984: 15, ss.), o seu sofrimento assume um sentido messiânico, por­que através dele se repete o mistério crísti­co da redenção. Sem um funda­mento ético de inspira­ção cristã, a dor dos pobres seria inaceitável e absurda. Contudo, a medi­ta­ção de Gabiru ult­rapas­sa de modo inesperado este sentido imp­lícito, para colocar a questão do sofri­mento na dependência de uma vontade obscura e omnipre­sente que se exerce sobre todos os seres da criação. Mesmo assim, a sua filosofia acaba por superar o pessi­mismo e encon­trar, através de um desvio poético, uma justifi­cação para a dor no prodi­gio­so processo alquí­mico que faz com que a maté­ria se trans­forme em sonho e a dor em bele­za (VIÇOSO 1999: 210, ss.). As persona­gens do romance aparecem directa ou indirectamente referidas a um espaço comum: um velho casarão «de pedra e de sonho», em cuja mansarda vive o filósofo Gabiru, alter ego do narrador que transitará para Húmus. O seu papel é essencial na estra­tégia de enunciação dialógi­ca aqui ensaiada e relançada no Húmus. Na filosofia do Gabiru, que ocupa vários capítulos da obra, o ideal utópico não é redutível à ideia de igual­dade preconi­zada por uma qual­quer teoria social colectivista, nem ao postulado ético do triunfo do Bem sobre o Mal, uma vez que se abre a um senti­do úl­timo, informulá­vel e inating­ível pela via da razão, mas de que a intuição tem uma clara presci­ência. A concluir estas brevíssimas reflexões sobre Os Pobres, sublinhe-se a presença do grotesco (na sua revivescência hugoliana) e o papel que ele desempenha na subversão das categorias narrativas. No que toca a este livro, podemos falar de uma anamorfose generalizada que é signo de uma visão trágica da realidade humana e que se coaduna com um estilo forte e fracturante.
Quando Raul Brandão publica A Farsa, em 1903, vinda a lume antes de Os Po­bres, o Neo‑Romantismo lusitanista encontra‑se em franca ascensão. É ao arrepio desta corrente literária, cujo ideário edifi­cante e nacionalis­ta se irá impor, que Raul Brandão prossegue o seu cami­nho, ensaiando uma nova forma discursiva afectada pelo «desencan­to do mundo» (Max Weber). A Farsa coloca, tal como os livros anterio­res­, o problema da sua clas­sificação genérica: o quadro inicial (uma cena intensamente teatral que antecipa o clima de O Avejão); a linearidade temporal; a concentração temática (que não impede ocasionalmente uma certa dispersão); a focalização quase constante da personagem central, à volta da qual poucas mais gravitam, a catástrofe final, aproximam‑na mais da novela que do romance. Mas o que chama a atenção do leitor é a dissolu­ção da fronteira entre a narrativa e o drama (a prosa poética de Os Pobres levou João Gaspar Simões a considerar o seu Autor «mais poeta que rom­an­cis­ta», num texto pu­blicado no n.º 9 da revista Trípti­co, que assinala a segunda edição bastante refundida desta obra, em 1925­), vindo a sugestão de teatra­lid­ade do próprio título. Se o assunto do livro é o ódio recalcado de Can­didi­nha, que lhe alimenta o sonho de uma vin­gança perpetrada até ao mínimo detalhe, a repre­sen­tação é o seu tema, facto que pode explicar determinadas opções a nível da constru­ção nar­rativa. O tema do theatrum mundi atravessa toda a sua obra de Brandão. A comparação da existência humana com uma representação teatral e a duplicidade do ser humano são temas que voltam a estar na moda no modernismo, conhecendo registos novos e surpreendentes em Pi­ran­dello e Valle‑Inclán. O tema da máscara aflora em História dum Palhaço, mas só ganha verdadeira espessura nas reflexões do Gabiru sobre a dicotomia sinceridade/fingimento: «[...] se quiseres viver com os outros tens de represen­tar. [...] tens de afivelar a tua máscara igual à do homem que precisas de conquis­tar» (1906, 1984: 132). Na prodigiosa novela que é A Farsa, a“filosofia” do Gabiru» repercute-se no discurso ferozmente crítico do narrador: «[...] todos nós somos mais ou menos actores para levarmos a vida a termo. Tudo na natureza cumpre o seu destino com gravidade ‑ só o homem é histrião» (1903, 2001: 70). Afirmações como esta fazem ressaltar com toda a nitidez a coerên­cia de pen­samento que presidiu à criação genial de Candidi­nha ‑ uma personagem ab­solutamente ímpar na litera­tura portu­guesa e que consti­tui um modelo acabado de dissimulação e de ressentimento. A sua prová­vel filia­ção queiro­siana, pelos traços que nela apontam um certo parentesco com a Juliana do Primo Basílio (LOPES 1987: 335-6), em vez de a diminuírem, engrandecem‑na: em am­bas surpre­endemos o mesmo espírito de vingança, alimentando uma revol­ta insidiosa; e a mesma impla­cável frieza na execução de um plano maquiavélico a que não é alheia uma componente sádica. Também nos dois casos o triunfo do fraco é conseguido através da explor­ação oportuna de uma fraqueza do poderoso, que se torna na presa odiada de um carrasco impiedo­so e amoral. A resistência de Candidinha à humilhação e ao sofrimento vem‑lhe da sua natureza dúplice e se o seu sonho de desforra acaba por ruir como um castelo de cartas, é porque o desastre estava inscrito no seu destino. Cum­pri­‑lo é falhar o seu sonho – «o sonho que não triunfa» – e refluir à zona de opacidade maléfica onde já só lhe resta a más­cara. Mas «a másca­ra, por mais que se queira, já a não consegue arrancar. Afivelou­‑s­e‑lhe para sempre à cara. Seu castigo é esse» (1903, 2001: 186). Em R. Brandão, o “sentimento trágico da vida” é inseparável do tema da representação e da força obscura do sonho, o que o coloca na antecâmara do nosso modernismo, cujas fronteiras podem ser hoje redesenhadas com maior precisão. Há porém outras dimensões de teatralidade que A Farsa nos apresen­ta, sendo uma das mais fascinantes aquela que se prende com o projecto de um «teatro cinemato­gráfi­co», anunciado na 1.ª edição de Húmus, e que se malo­grou. Contra todas as conven­ções de género, a vida de Candidin­ha é apresentada como uma suces­são de cenas e quadros de intenso visua­lismo que estão próximos do cinema expressionista [Reynaud, 2004: 83, ss.]. O comportamento do narrador omnis­ciente não prima pela coerência: ora subal­terniza as personagens com as suas intervenções directas, ora se limita a comentar a acção, podendo mesmo esvaziar‑se até ao ponto em que os comentá­rios dão lugar a simples didascá­lias. Apesar do afastamento das normas da novela clássica, A Far­sa é, mesmo assim, o livro «que mais se confor­ma com as regras (do) romance» e com as liber­dades formais que se tornam correntes na narrativa posterior. (CASTILHO 1979: 210-11). A sua leitura coloca-nos no cerne da arte brandoniana – a sua vocação expressionista: «A morta continua a sorrir, com os dentes arregan­hados e um lenço aper­tado no queixo, numa imobilidade pétrea (…). De quando em quando uma boca mastiga no escuro» (1903, 2001: 52).
Entre a publicação de Os Pobres (1906) e Húmus (1917), Raul Bran­dão dedica-se ao estudo de temas históricos que o apaixonam, acabando por ceder à tentação de publi­car uma série de ensaios onde a história se recria à luz do drama trágico e grotesco das figuras que a protagonizam: El‑Rei Junot (1912); A Con­spi­ração de 1817 (1914), reedi­ta­da três anos mais tarde com o título de 1817 ‑ A Cons­piração de Gomes Freire (1917) e o «Prefácio» ao Cerco do Porto ‑ Pelo Coro­nel Owen (1915). A sua concepção da História como drama humano é enunciada no capítulo introdutório de El-Rei Junot: «A histó­ria é dor, a ver­dadeira história é a dos gritos. (...) A verdadeira história é imaterial; é, (...) a história da consciência huma­na que pouco e pouco se aproxima de Deus» (1912, 2007: 23). É a sua atenção à história viva, in fieri, que explica o vasto acervo de notas coligidas ao longo de muitos anos e a partir das quais Raul Brandão redige os dois primeiros tomos das suas Memórias, deixando um terceiro inacabado. No primeiro volume (1919), os textos mais recentes são de 1918: «Prefácio» (Aos Mortos) e último capítulo, «O Mundo Político» (1919, 1998: 31-39; 233), embora o A. inclua textos muito anteriores, que se reportam a 1900), havendo uma maior incidência no período final da mo­nar­quia, onde se destaca o relato do regicídio. O segun­do volu­me abre com o magnífico trecho intitulado «O silêncio e o lume» (1925, 1999: 39-48), datado de 1924, e incorp­ora textos cujas datas oscilam entre 1910 e 1923, sendo de assinalar os que dizem respeito à implantação da república e ao período revolucioná­rio subsequente. O terceiro e último volume (1933), in­titulado Vale de Josafat – e editado postumamente – , abre com o conhecido texto de confissão autobio­gráfica, «Balanço à Vida» (1933, 2000: 35-48), geralmente visto como um dos mais signifi­cativos escri­tos de Brandão, e considerado pelos seus bió­grafos João Pedro de Andrade e Guilherme de Castilho o seu «testa­men­to espiri­tual». Apesar de a organização do volume não obede­cer a um critério cronológico, é curioso verificar que os textos mais antigos, que Raul Bran­dão deixou fora dos outros volumes, são de 1911; e o mais recente, de 1930.
Húmus é não só a obra-prima de Raul Brandão, mas «uma obra-prima em qualquer literatura» (MOURÃO-FERREIRA 1992: 181). Por várias razões, o livro ocupa um lugar à parte no conjunto da ficção bran­donia­na: publicado em 1917, foi posteriormente submetido a um profundo trabalho de refundição, de que resultaram mais duas versões: a de 1921 e a de 1926, que corresponde à edição «de última mão» (ne varietur), resultante da sua derradeira intervenção, a quatro anos da morte, e representando a sua última vontade (BRANDÃO 1917, 2000). Esta submissão periódi­ca do texto a um processo de reescrita, de que há significativos ecos na correspondência trocada com o poeta Teixeira de Pascoaes, constitui um dos aspectos mais perturbantes da obra. Sabemos também, através do precioso testemu­nho de Câm­ara Reys, que Raul Brandão consid­erava o Húmus a sua melhor realização literária: «Tenho essa afirm­ação, do seu pró­prio punho, na dedi­cat­ória dum exemplar da 2.ª edição desse livro» [Reys, 1942: 102-3]. Esta informação, saída da pena de um escritor que raras vezes se referiu à sua própria obra, revela uma ponderável capacidade de autocrítica. Numa carta escrita a Albino Forjaz de Sampaio pouco tempo antes de morrer, e na qual se escusa a redigir uma autobiografia literária com destino à «Colecção Patrícia», faz um balanço sintético da sua obra, sem deixar de referir o Húmus: «Tenho horror às pala­vras postas umas ao lado das outras, em préstito (...). O que eu procuro encontrar nos livros é humanidade e outra coisa viva que se pega para todo o sempre ao papel e à tinta» (Diário de Notícias, 6 Dez. 1930). Quando em 1927 José Régio fala de «Literatura Viva», no n.º 1 da Presença, definin­do‑a como «aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria», há uma notória ressonância de Raul Brandão, a quem três anos antes dedica­ra um clarividente artigo na Bysancio: «Raul Brandão compraz‑se em denunciar nos homens, a par da vida quotidiana e aparente, a vida íntima, profunda e verdadeira. Esta vida, que todos os seus personagens vivem com uma intensidade dolorosa, pesquisa‑a Raul Brandão com audá­cia, com obsessão, quase com ferocidade, num estilo que lhe vem dos nervos, todo em golpes e em gritos» (6 Jan.1924). Voltando à Presença, é sintomático que um dos auto­res escolhidos para exemplificar essa espécie de literatura, a que ele opõe a «literatura livresca», seja Raul Brandão (“Literatura Livresca e Literatura Viva”, Presença 9, Fev. 1928; RÉGIO 1977: 46-7), Todos os elementos valorizados no ensaio Em Torno da Expressão Artística (1940) estão presentes, por antecipação, em R. Brandão que, nas palavras de Régio, é «um visionário do grotesco, possui um modo próprio de exprimir e sentir, é um psicólogo fragmentário, mas audaz e lúcido...» (RÉGIO 1977: 49). A «intuição psicológica», a qualidade que ele mais admira em Brandão, é indissociável do con­ceito regiano de «expres­são». «Um artista é (...) um homem que possui faculdades anormalmente desenvolvidas; que possui a neces­sidade de as realizar pela exteriorização», ou seja: pela expressão» (“Lance de Vista”, Presença 6, Jul. 1927; RÉGIO 1977: 36). Ora Régio «faz depender a «individualidade artística» de uma personalidade humana excepcional, capaz de garantir a originalidade» e a «sinceridade» da arte. A «outra coisa viva» de que fala Brandão extravasa desta (ou de qualquer) definição: enraíza no fundo obscuro da natureza humana, com os seus tumultos e as suas tensões irreso­lúveis; nas profundezas abissais do «eu», onde as tensões dilacerantes se acumulam; na zona inefável do ser. Por tudo isto, a sua obra tem uma dimensão ontológica que é rara na nossa literatura ‑ e que a projecta num horizonte pouco familiar. Como escreve Gaspar Simões, «visitado pelo Anjo da Morte», expressa na sua obra o que ele viu com os seus segundos olhos» (SIMÕES 1931, 1971: 111).
A existência de três edições originais abre a possibilidade de outro tipo de abordagem que, partindo do seu con­fron­to, procure demonstrar a razão profunda de um trajecto onde a ideia de perfeição se confunde com a busca progressiva de uma verdade interdita ou inacessível. Deste modo, a obra torna-se espelho de uma mobilidade espiri­tual que é indissociável do sistema de pensa­men­to que recusa a identificação hegeliana da verdade com a totalidade, para apenas reivindicar uma verdade fragmentária, regida pelo princípio do inacabamento (REYNAUD 2000). Em Húmus (um diário lacunar que se reporta a uma temporalidade puramente simbólica), a escritafaz-se e refaz-se no compulsivo work in progress de um texto sempre futuro. Tudo se passa como se ela buscasse, na espiral do pensamento que a mobiliza, o livro onde a palavra e o tempo mutuamente se abolissem – «le livre à venir», na bela expressão de Blan­chot. A vila fantasmagórica de Húmus, verdadeiro personagem deste romance poético, é habitada por figuras decrépitas e com nomes burlescos (Dona Procópia, Dona Bibliote­ca, Elias de Melo, Melias de Melo, Dona Restituta, Dona Bisbórria, o padre Ana­nias, etc.), cujo quotidiano é registado por um narrador anónimo, numa espécie de diário fragmentário e elíptico. O narrador tem porém um alter-ego: Gabiru, o filósofo louco, o alquimista do sonho, que é o contraponto dialógico da sua voz, ou melhor: da sua consciência desdobrada, onde se repercutem, recalcitrantes, as vozes exteriores das velhas cujo sorriso é um esgar, numa vertiginosa duplicação enunciativa. Através da sua ilimitada capacidade de sonho e das suas experiências alquímicas, o Gabiru consegue banir a morte da vila. Mas, com a supressão da morte desapareceram o céu, o inferno e Deus. O pânico, a degradação e o caos grassam numa vila que se torna ainda mais grotesca pela irrupção de um absurdo maior. A «intrig­a», no sentido clás­sico do termo, não existe, embora o narrador não deixe de ligar cada uma das personagens a uma his­tória pessoal, em que o dever se contrapõe à violência dos recal­camen­tos. Destaca-se entre as demais Joana, a única personagem positiva e com consistência diegética (cf. «A mulher da esfrega», «A velha e os ladrões», «A árvore» (1917, 2000: 123; 155; 201), que concita a ternura do narrador. Cria-se assim uma acção simbólica, dominada pelo tema da duplicidade do ser, que serve de suporte a uma meditação poético­‑me­tafísca sem precedentes sobre a relação entre a vida e a morte, a realidade e o sonho, o ser e o parecer: «E quando tiro a máscara? Mas eu já não posso tirar a máscara, mesmo quando me fecho a sete chaves: a mentira entra­nhou‑se‑me na carne» («A vila e o sonho», ed. cit.: 84). A estratégia discursiva, sustentada pela disjunção da instância enun­ciadora num nar­rador‑lo­cutor e num nar­rador‑personagem (o Gabiru), justificada em todos os planos da narrativa (cf. «Papéis do Gabiru», 1917, 2000: 133; 163; 209), pode ser vista como uma ruptu­ra formal sem precedentes, na medida em que é posta em causa a concep­ção em que se baseia o romance tradi­cional (e não apenas o romance realis­ta e naturalista), a qual pressupõe a unicidade do sujeito de enunciação e a sua identificação com o «sujeito de cons­ciência». O questionar metafísico de Raul Brandão, que nalguns momentos de Húmus surge profundamente sintonizado com o pensamento de um dos escri­tores que ele mais admirava, Dostoievski, torna-o o pri­meiro ficcionis­ta de "ideias", o que primeiro esboçou «o que vulgar­mente se vai chamar "romance‑e­nsai­o", ou (...) "ro­mance‑problema"» (FERREIRA 1991: 195-6). A concepção dialóg­ica que Brandão transpõe para o romance toma como valor exponen­cial a categoria da Relação, fazendo do texto um espaço de abertura ao Outro e da enunciação literária um modo interactivo de comuni­cação.. Por último, veja-se que no Húmus, o A. tenta articular «o sonho de não morrer» com o problema moral da morte de Deus, criando uma tensão crescente e sem apaziguamento, que se salda num grito que atinge a sua culmi­nância nas últimas páginas do livro: «Para onde vamos aos gritos? para onde vamos aos gritos?» (1917, 2000: 221). Raul Bran­dão abre assim um novo horizon­te especu­lati­vo, em que a escrita ficcional de Vergí­lio Ferreira se virá mais tarde inscrever, como se prolon­gasse a resso­nância desse grito que continua a repercutir‑se na cons­ciên­cia dilace­rada do leitor actual.
Cabe agora perguntar se Húmus é uma obra menos modernista do que O Livro do Desassossego. Segundo Eduardo Prado Coelho, «é um texto tão denso e perturbante para a literatura portuguesa como é o Livro do Desassossego (1982). São duas obras-primas da literatura europeia, que marcam entre nós o século XX. Ambas indecisas na fixação da sua textualidade ou arquitectura, e no entanto ambas abrindo um novo espaço no curso da modernidade» (E. P. COELHO 2003: 4). Note-se que, numa carta enviada a João Gaspar Simões (4 Abr. 1931), Fernando Pessoa faz este comentário: «Recebi, sim, a Presença, e achei muito bom e seu estudo sobre o Raul Brandão» (Cartas a João Gaspar Simões). Trata-se de «Raul Brandão, poeta» (Presença, n.º 30, Jan.-Fev., 1931), editado em O Mistério da Poesia (1931). Pré-modernista, é-o sem dúvida, acontecendo que, depois de marcar de forma profunda os maiores escritores da segunda metade do século XX – representativos de várias correntes literárias – fez a sua entrada imperceptível, mas impositiva, na ficcção pós-modernista. Multiplicando enigmas em torno da origem e do destino do homem, Raul Brandão elabora uma filosofia da dor e do absurdo da condição humana que o inscreve no diapasão existencialista.
Entre o Húmus e O Pobre de Pedir, a criati­vidade de Raul Brandão volta-se de novo para o teatro. Depois de um largo interregno (v. supra), edita três peças surpreendentes num único volume, com o título Teatro (1923): O Gebo e a Sombra (drama em quatro actos); O Doido e a Morte (farsa em um acto); e O Rei Imaginá­rio (monólo­go). Depois destas, seguem-se mais duas peças: o monólogo Eu sou um homem de bem, publicado na Seara Nova (n.º 104), em 1927; e O Avejão (Episódio dramático), publica­do primeiramente na revista (n.º 150) e dado à estampa em 1929. Há ainda a assinalar a public­a­ção de Jesus Cristo em Lis­boa, Tragicomédia em sete quadros escrita em colabo­ração com Teixeira de Pascoaes e editada nos princí­pios de 1927. O seu teatro existencial, embora sintonizado com os temas da ficção – miséria, marginalidade, sonho, honra, dever – não é tão radical na contestação de uma ordem social injusta, excepção feita a Jesus Cristo em Lisboa, texto de uma insólita e exuberante polifonia (REYNAUD 2004: 59, ss.) É geralmente sublinhado pela crítica o seu contributo para a renovação da dramaturgia portuguesa e a sua sintonia com as correntes do teatro europeu da época. Basta pensar n’ O Doido e a Morte, que é, segundo Régio uma «afirmação de génio» (RÉGIO 1977: 55). Sendo «do ponto de vista do género a mais perfeita» [Andrade, 2002: 201], ela «bastaria para consagrar um dramaturgo – como o Rei Ubu bastou a Alfred Jarry» (REBELLO 1985: 38), porque aí se fundem, magistralmente, o grotesco, a crítica social e o absurdo. A presença do sagrado torna‑se mais evidente no último livro de Raul Brandão, O Pobre de Pedir (1931), escrito em três meses e concluído um ano antes da sua morte, como testemunha Maria Angelina Brandão no prefácio que acompanha a edição póstuma. As várias interpretações críticas coincidem na sobrevalo­rização da sua dimensão autobiográfica, vendo nele, como acontece em Óscar Lopes, a manifesta­ção mais directa da «atitude confitente» do protagonist­a, «um pequeno-burguês» que enfrenta a sublevação dos pobres e um «remorso social» avassalador (LOPES 1987: 362, ss.). Os ecos da Sonata a Kreutzer, de Tolstoi; ou de Crime e Castigo, de Dostoievski (a figura angelical de Stela lembra Sónia e «Santa Eponina», protagonista do conto com o mesmo título, publicado em A Morte do Palhaço e O Mistério da Árvore, 1926, versão refundida de História dum Palhaço), têm sido realçados pela crítica. A omni­presença da figura crística, que se vis­lumbra por detrás do rosto dos mendigos, é simbo­lizada pelo pobre de pedir. Próximo de «Balanço à Vida», pórtico de Vale de Josafat (COELHO 1976: 232), o livro «insere-se numa estética do pânico e do crepuscular», sendo o seu tema axial a oposição entre o eu-individual e o outro-social (VIÇOSO 1984: 21). No cenário apocalíptico de O Pobre de Pedir, e na fronteira da ficção com a verdade, ocorre uma experiência‑limite de autognose onde Deus se revela uma repres­entação tão vulnerável como a fé do homem.
Os Pescadores (1923) e As Ilhas Desconhecidas – Notas e paisagens (1926) compõem um «incomparável díptico de prosa impressionista» (CASTILHO 1979: 84), a que poderíamos juntar muitas páginas de Portugal Pequenino (1931), obra de que é co-autora Maria Angelina Brandão e que se inscreve na vertente solar da sua criação. Foi o sucesso obtido com a primeira destas obras que lhe trouxe o reconhecimento tardio e consensual do seu enorme talento. A inflexão poética da sua escrita, o intenso visualismo que a percorre, o esplendor que a língua portuguesa aí atinge, até nos assomos da mais pura vernaculidade, são elementos que ajudam a explicar tal sucesso. Nas Ilhas Desconhecidas, ao «impressionismo atlântico» de que fala Aquilino Ribeiro vem agora juntar-se um realismo cru, de onde irrompe um frémito de inquietação que faz deslizar a escrita para o lado do expressionismo dramático. Na carta, já citada, a Albino Forjaz de Sampaio, Raul Brandão fala da alegria com que se detém «a fixar a paisagem e a luz», subitamente toldada pela aparição do «outro [que] só gosta de nódoas escuras». É esta alternância entre o «esplendor da luz» e abismo «negro» da dor que faz de Raul Brandão um escritor de hoje e de sempre."
Maria João Reynaud, in Modernismo, Arquivo Virtual da Geração de Orpheu

BIBL.: Raul Brandão, El-Rei Junot (1912), ed. Maria de Fátima Marinho, Lisboa, Relógio d’Água, 2007; Raul Brandão, Húmus (1917), ed. Maria João Reynaud, Porto, Campo das Letras, 2000; Raul Brandão, Memórias, II (1925), Lisboa, Relógio d’Água, 1999; Raul Brandão, Os Pescadores (1923), Lisboa, Relógio d’Água, 1999; Guilherme de Castilho, Vida e Obra de Raul Brandão, Lisboa, Estúdios Cor, 1973; Eduardo Prado Coelho, A Escala do Olhar, Lisboa, Texto, 2003; Jacinto do Prado Coelho, Ao Contrário de Penélope, Lisboa, Bertrand, 1976; Vergílio Ferreira, Espaço do Invisível, II, Lisboa, Bertrand, 1991; Óscar Lopes, Entre Fialho e Nemésio, Lisboa, IN-CM, 1987; Álvaro Manuel Machado, Raul Brandão entre o Romantismo e o Modernismo, 2.ª ed., Lisboa, Presença, 1999; David Mourão-Ferreira, Tópicos Recuperados, Lisboa, Caminho, 1992; Luís Francisco Rebello, “Um Teatro de Dor e de Sonho”, in Raul Brandão, Teatro, Lisboa, Comunicação, 1985; José Régio, Páginas de Doutrina e Crítica da “presença”, Porto, Brasília, 1977; Maria João Reynaud, Metamorfoses da Escrita – Húmus de Raul Brandão, Porto, Campo das Letras, 2000; João Gaspar Simões, O Mistério da Poesia (1931), 2.ª ed., Porto Inova, 1971; Vítor VIÇOSO, A Máscara e o Sonho. Vozes, Imagens e Símbolos na Ficção de Raul Brandão, Lisboa, Cosmos, 1999.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Aforismos sobre o invejoso


Inveja (c. 1304-1306), afresco de Giotto di Bondone
e ajudantes, na Cappella degli Scrovegni, Pádua.

Aforismos sobre o invejoso

 
                       À memória do grande aforista Cioran.
 
O invejoso morre, muitas vezes, não à míngua de excesso, mas à míngua de pouca coisa.

A inveja é uma espécie de impotência.

O invejoso morrerá sempre de não ter comido o que outros comem. Mais do que comer, ele desejaria que os outros não comessem.

Não sendo capaz de fruir, o invejoso quer impedir os outros de fruir. Como o caranguejo, que, vendo outro caranguejo a subir um montículo, em vez de o imitar e subir também, puxa-o para baixo, impedindo-lhe  a subida.

O invejoso odeia o vazio, mas não sabe preenchê-lo.

O invejoso tem fome, mas não sabe mastigar.

O invejoso não procura ter, procura que o outro não tenha.

O invejoso gostaria de irradiar luz, mas irradia peçonha.

O invejoso olha-se ao espelho e não gosta do que vê.

O invejoso, escritor medíocre, incendiaria bibliotecas e livrarias, para evitar comparações.

O invejoso não deseja medir-se com os outros: prefere aniquilá-los. Pereça o universo, mas salve-se o seu orgulho.

O invejoso é um assassino impotente, um criador estéril e um amante sem líbido.
Eugénio Lisboa, 28.07.2023

O purgatório do invejoso

O Purgatório ," Divina Comédia", de Dante

Enviado para o segundo círculo
do Purgatório, pela mão de Dante,
o invejoso só possui currículo
que o transforma em ser nauseante.
 
Vejamos, seja, o invejoso Iago,
cobiçando, ao escuro e bravo Otelo,
Desdémona que, em dia aziago,
visitou, sem querer, o pesadelo!
 
Iago, mais do que querer Desdémona,
queria que Otelo a não tivesse:
mais que cobiçar a doce anémona,
 
desejava que Otelo a perdesse!
Quem inveja não sabe querer ter,
importa é o outro não haver.
                        29.07.2023
Eugénio Lisboa

quinta-feira, 27 de julho de 2023

A mais bela respiração da vida


A mais bela respiração da vida
por Eugénio Lisboa
 
Pomos de lado cartas, para nunca mais as voltarmos a ler e,por fim,
destruímo-las, por razões, de discrição, e assim desaparece 
a mais bela, mais imediata respiração da vida, irrecuperavelmente, 
para nós e  para os outros.                           
                Goethe – As Afinidades Electivas
 
“Conheci, pessoalmente, José Régio, por puro acidente. Quero com isto dizer que o não conheci por me ter posto à procura de o conhecer. Nunca fui de andar a correr atrás de glórias, mesmo de glórias que eu admirasse. Nunca fui, por outras palavras, um caçador de troféus, com que me fizesse fotografar. Nunca manejei uma máquina fotográfica, com que fosse preparando uma fotobiografia-a-haver. Nunca acreditei em me dar um hipotético acréscimo de estatuto, por uma estratégia de proximidade fotográfica (ou outra) de outros de maior estatuto que o meu. Trata-se, digamos, de uma questão de pudor e, também, se quiserem, de sentido estético. No meu código de conduta, isso não se faz. É feio correr atrás da glória dos outros, para construir, com ela, um pouco da nossa própria. É, além do mais, grotesco. Nenhuma glória durará excessivamente, porque a aventura humana, neste planeta – e o próprio planeta – têm o seu fim garantido, a mais ou menos curto prazo. Nada ficará disto, nem sequer a memória disto. Acho pois bem que alguma coisa se preserve, para melhor instrução dos vindouros próximos, mas cabe aqui, ao pudor, uma função amaciadora. Nada de exageros de ambição: devemos estar conscientes de que trabalhamos para herdeiros de um futuro de duração limitada. Convém ser modesto, isto é, realista. Deixemos, com carinho, as nossas memórias, mas sabendo muito bem que não há, para elas, eternidade. Elas – com as nossas visões, emoções, pensamentos, descobertas – irão durar o que puderem durar e que não será, em termos galácticos, mais do que um instante. Tudo passa.
Conheci, pois, José Régio, por acidente. Se quiserem, por castigo. Fizera um curso para oficial miliciano, em Mafra, onde fui um cadete rebelde, desobediente e desrespeitador da disciplina militar. Acumulei castigos que me recusei a cumprir. Poderia ter pago uma factura pesada, mas não cheguei a pagá-la, porque o comandante da unidade era um homem benigno (encontrava-se, além do mais, seriamente doente). Tive boas (muito boas) classificações, nas disciplinas “técnicas”, mas fui atirado para o fim da lista, em matéria de “comportamento”. Resultado: em vez de ser colocado em Lisboa, como me convinha (e pedi), para concluir o último ano do curso de engenharia, mandaram-me para um Batalhão perto da fronteira alentejana, a cinco horas de combóio de Lisboa (o Batalhão de Caçadores nº1, em Portalegre). A notícia perturbou-me e, simultaneamente, acenou-me com uma possível compensação. Perturbou-me porque estar longe de Lisboa me iria dificultar muito as idas necessárias ao Instituto Superior Técnico, para trabalhos práticos, uma ou outra aula, exames, etc. O aceno de esperança compensatória tinha que ver com José Régio, que vivia, grande parte do ano, em Portalegre, como professor do liceu, e cuja obra eu admirava desde os meus dezasseis anos, em Lourenço Marques. A Velha Casa – o que dela já existia, nessa altura: os dois primeiros volumes – empolgara-me, pelo poder dramático, pela excelência e minúcia da análise psicológica, pelo estilo, pela promessa de uma longa aprendizagem... Afinal, talvez o castigo militar viesse a valer a pena e eu fosse ao Alentejo “faire un bon usage des maladies”, como recomendara o grande Pascal. E, com efeito, assim viria a ser.
Devido ao Carnaval, cheguei ao Batalhão com um ou dois dias de atraso. Recebeu-me o 2º Comandante, Major Azevedo Coutinho, homem de poucas falas, caçador de mérito, e, como vim depois a saber (e verificar), leitor aplicado dos clássicos portugueses, que gostava de citar. “Só agora? Andou a brincar ao Carnaval?”, perguntou-me, sério, mas sem aleijar... Aquilo até soava mais a ironia benigna de quem não alinha por aí além no empertigamento militar. Calhou-me. Não me apeteceu repontar com ele e disse-lhe que tivera coisas universitárias a alinhavar. Em breve, vim a verificar que, embora cumpridor, o Major Azevedo Coutinho era dotado de sentido de humor, deslocava-se devagar como um elefante pesado e bom, e não desgostava de, muito a propósito, citar uma passagem de clássico bem faisandé... A citação vinha sempre bem mastigada, com as sílabas bem separadas e impecavelmente debitadas, ao sabor de uma sonoridade muito bem emitida.
O comandante propriamente dito, isto é o Coronel Silveira e Lorena (descendente dos Távoras da Índia, dizia-se), não era o comandante de facto. Mais ou menos pusilânime e atrapalhado, tinha um medo de morte do segundo comandante, que até era, afinal, boa pessoa, apesar do ar severo e secreto, de caçador empenhado. Ironias.
Logo um ou dois dias depois de ter chegado a Portalegre e me ter acomodado na espelunca que era o Quartel de S. Francisco, antigo convento a cair aos bocados  e pertinho do cemitério e da casa do Régio (tudo aquilo, algo sinistro e ventoso, como no Monte dos Vendavais, da Emily Brontë), o meu colega de tropa Rui Serrão (a estudar Direito) veio, alvoroçado, perguntar-me: “Queres conhecer o Régio?” Fiquei logo a abanar. Claro que queria conhecer o Régio! Nem eu queria outra coisa! Como? Onde? Quando? Aquilo, realmente calhava-me: virem assim oferecer-me o Régio, numa bandeja...a mim que não era nada dado a andar a correr atrás das eminências! O Rui esclareceu: tinha estado no Café Central, depois do almoço, com outros aspirantes milicianos da nova fornada, eis se não quando se aproximara da mesa deles um Dr. Feliciano Falcão, simpático e sorridente, que lhes perguntara se, por acaso, quereriam conhecer o José Régio. O Rui dissera logo que sim e que tinha um outro colega (eu), que, por certo, desejaria o mesmo. Combinámos, pois, a seguir ao jantar desse dia, darmos um salto ao Café Central, mais ou menos a meio da Rua Direita.
O Dr. Falcão, como vim a verificar, com o convívio, era um médico analista de grande mérito (galardoado com um prémio de investigação), bastante culto, melómano, possuidor de uma magnífica biblioteca e de uma não menos magnífica discoteca, e um homem de uma extrema bondade. Como poucos anos antes, estivera ali um aspirante miliciano, de nome David Mourão-Ferreira, que rendera para tertúlias, literaturas, convívios e amizades, o Dr. Falcão, ao ver, agora, ali no Café, uns oficiais de conversa menos boçal, pensou que se pudessem renovar os anos de ouro do David ou algo de mais ou menos semelhante. De aí a simpática aproximação. Feliciano Falcão era um alentejano profundo, que se lhe via na fala, e tinha um ar de entrega generosa e desajeitada. Era, por convicção, comunista (não o proclamava nem se lhe via nos modos nem no débito da conversa), mas admirava sem reservas a obra do Régio, embora ele e o poeta já tivessem estado de relações cortadas. Tinha uma inteligência aberta e gostos eclécticos e gostava de convívio e de o alargar generosamente a outros. Fiquei logo a gostar dele e considero-o um dos mais raros exemplares de ser humano com quem me cruzei na vida. Em grupo, a sua candura e quase “inocência” (no melhor sentido) chegavam a irritar e provocar os demónios assanhados do Régio, que, uma ou outra vez, lhe enviesou umas farpas besuntadas de veneno. Confesso que não gostei. (Os jogos de cabra cega não tinham, pelos vistos, acabado na Coimbra dos anos vinte e os dias de trovoada, no Alentejo, traziam demasiado à tona os demónios interiores do autor de A Velha Casa...)
Seja como for, depois do jantar, eu e o Rui Serrão dirigimo-nos para o Café. Era inverno e o Régio já lá estava, sentado, de sobretudo, presidindo, com bonomia, à tertúlia, enrolando vagarosamente o cigarro, enquanto respondia às perguntas daquela assembleia visivelmente suspensa das suas palavras: o Dr. Falcão, o pintor Arsénio Ressurreição, o educadíssimo Sr. Pombeiro e outros. Em noites subsequentes, apareceria também, com frequência, o excelente capitão Saraiva e a sua simpática mulher, Luísa, que fora aluna do Régio, no liceu de Portalegre. Não foi também infrequente a presença do meu colega (e hoje amigo) de Batalhão, Mário Carrinho (apesar de um namoro intercidades, que lhe comia o melhor do tempo livre, ao telefone...) Feitas as apresentações, sentámo-nos, entrando com dificuldade naquele círculo já bastante apertado, eu, intimidado que baste, por ter à minha frente, aquele monumento da literatura, que me dera tantas horas de deslumbramento e descoberta. O Régio ia-nos deitando, à sorrelfa, um olhar perscrutador, às vezes disparado, de soslaio, a partir daqueles “olhos sulfúricos, esfíngicos e belos”, que narcisicamente cantara no primeiro poema dos Poemas de Deus e do Diabo. Aquilo, caramba, intimidava! De tal maneira, que, à moda dos do jogo da cabra cega, entornei, para começar, uma chávena de café! Bonito, disse eu, com os meus botões: começas bem! Nunca me esquecerei dessa noite: embora nervoso, lá procurei escorvar a conversa, dirigindo ao grande escritor perguntas aos baldes. Ele era um conversador estimulante, extremamente articulado e procurando, visivelmente, formular, diante de nós, um pensamento, que ia construindo, com cuidado mas sem pretensões de brilho (que, aliás, detestava) ou de originalidade rebuscada. Aquilo cheirava mesmo a seriedade, sem vestígios de trapaça. O Régio que ali nos falava ficava igualzinho ao personagem que a obra inculcava. Vi logo que a minha estadia em Portalegre, com todos os seus inconvenientes (e eram de monta!) ia muito valer a pena.
Falar-lhe n’A Velha Casa, com o pormenor e a paixão com que lhe falei, obviamente agradou-lhe. Sentia-se, como ficcionista, um mal-amado da crítica. E com mais do que alguma razão.
Conversámos pela noite dentro e eu fui metendo a minha colher em minúcias da obra poética, ficcional, teatral e ensaística, que tanto me tinha cativado, perturbado e ensinado. Régio não se fazia rogado ao assalto da minha curiosidade e percebia-se que era sensível à minúcia e ao cuidado das minhas leituras. À saída, eu, ele e o Rui Serrão fomos juntos: íamos, Rua Direita acima, na mesma direcção, visto que, como já disse, o quartel de S. Francisco ficava a dois passos da casa do Régio.
De aí em diante, as reuniões no Central tornaram-se diárias. Tirante os dias em que eu ia a Lisboa ou aqueles em que Régio ia , de férias, a Vila do Conde, ou os que estive em Santa Margarida, para manobras militares, o resto foi dedicado à conversa, à mesa do Central, a qual, por vezes, se prolongava, madrugada dentro, à boleia de uns copos e umas rodelas de chouriço, numa tasca, perto da Rua Direita.
Falámos abundantemente de poesia, de teatro, de ficção, de filosofia... Régio andava a afastar-se, cada vez mais, da literatura francesa e, sobretudo, da Nouvelle Revue Française, que lhe parecia, na sua fase posterior à segunda guerra mundial, dominada por uns peralvilhos brilhantes, superficiais e irresponsáveis... Pendia mais para o romance inglês e russo e menos para o francês (ressalvando, é claro, gigantes como Stendhal e Proust). O “brilho” e a “facilidade” francesas incomodavam-no. A rapidez com que faziam extrapolações e punham de pé, como dogma, uma teoria com pés de barro encrespava-o. E o meio literário lisboeta, vastamente amamentado nas leviandades gaulesas, ia ser, no quarto volume de A Velha Casa, submetido, por Lelito, a uma análise de uma crueldade implacável e demolidora.
Em Portugal, dos nomes mais recentes, admirava enormemente Irene Lisboa, considerava Miguel Torga “um grande escritor de curto fôlego”, estimava muito (mas com reservas) Adolfo Casais Monteiro, admirava francamente António Sérgio, respeitava Ferreira de Castro, tinha pena de que Gaspar Simões se tivesse ido enterrar no atoleiro do jornalismo lisboeta, não levando, por outro lado, nada a bem a (ressentida) avaliação crítica, cheia de reticências, que Simões dedicara aos volumes da Velha Casa... Não estimava Miguéis, cujo brilho inegável tinha por superficial e cujo discurso crítico normativo em relação à “arte que se devia fazer no nosso tempo” Régio totalmente desvalorizava e desprezava. Branquinho da Fonseca era excelente, mas preguiçoso – Lisboa dera cabo dele. Não podia deixar de admirar o virtuosismo linguístico de Nemésio, a sua erudição, mas desconfiava do homem e da verdadeira espessura da obra. Aquilino era grande (enorme), mas começara, a partir de certa altura, a “profissionalizar-se”, isto é, a aproveitar-se demasiado do “treino de escrever”, ou seja, da “velocidade adquirida”, o que, num pequeno país como Portugal, pode levar a uma forma de prostituição... Admirava Pascoaes, genial bardo nocturno (como o viu Sérgio), apesar das passagens delirantes e dos desarrumos que nele abundavam. Mais para trás, mas ainda próximos, preferia claramente Oliveira Martins e Camilo a Eça de Queirós. Pessoa era um “grande homem de letras”, um virtuoso de causar vertigens, mas tinha sérias dúvidas quanto à natureza do poeta que nele houvesse. Tinha profunda e amistosa admiração por Raul Brandão. Admirava António Botto, cuja obra estudara e corajosamente defendera, embora não tivesse ilusões quanto à vaidade e megalomania do homem. E adorava cinema, de que não perdia um filme que lhe passasse à mão de semear.
Régio deixou, de um modo geral, fama mal fundamentada, de bicho soturno e fugido ao convívio. Nada mais falso. Sabia preservar as horas necessárias ao trabalho de professor (rigoroso) e de escritor, sem falar na abundante correspondência que, a partir de certa altura, devido à celebridade crescente, teve que manter. Mas era-lhe indispensável a tertúlia regular, com os amigos. E era, não raro, divertido e brincalhão. Para dar só um exemplo, uma noite, no Café, (estava eu, o Rui Serrão, o capitão Saraiva e a mulher, o Dr. Falcão e mais alguém que agora me não ocorre), desafiou-nos para irmos a sua casa (o casarão...), para ali fazermos uma leitura “dramática” da sua peça em um acto, As Três Máscaras. Cada um de nós “interpretaria” um dos personagens, embora nós fôssemos em maior número do que os personagens (a Luisa, claro,  foi a Columbina). Assim fizemos, lendo o texto, com a ênfase que conseguimos municiar, para grande gáudio colectivo e do próprio Régio, que se comportou como anfitrião aplicado. No final do exercício, perguntou-nos se queríamos um copinho para aquecermos. Ao toque de um uníssono “sim”, dirigiu-se a um enorme baú onde armazenava dezenas de Cristos de madeira e desenterrou, de entre toda aquela tralha sagrada, uma profaníssima e bruta garrafa de Pedro Domecq, cujo néctar agressivo nos serviu em copinhos adequados... O sagrado e o profano, ali, no seu máximo esplendor! O “teatro” veio abaixo, com aplausos!
Embora cada vez mais à vontade connosco (eu, o Rui Serrão, o capitão Saraiva), à medida que o tempo passava, Régio , homem de pudor, no contacto social (nunca se lhe ouvia um palavrão ou, simplesmente, uma palavra um pouco mais grosseira), chegava a ficar embaraçado, indo mesmo ao ponto de corar, com certas saídas espalhafatosas e brejeiras do Rui Serrão. Uma noite, no Central, a reunião prolongou-se. À meia noite, o relógio de parede começou a badalar a mudança de dia. Olhando, fixa e dramaticamente, o relógio, de olhos muito arregalados, o Rui estendeu os braços, pedindo o nosso silêncio, e pronunciou, em tom solene  e tribunício, dirigindo-se directamente ao poeta: “Régio! Meia noite! A hora pornográfica por excelência!” Visivelmente intrigado e embaraçado, Régio balbuciou, corando muito: “Ó Rui Serrão, francamente... Pornográfica porquê?...” E logo o Rui: “Então não vê um dos ponteiros em cima do outro?” Rimos todos, mas quem riu mais, fazendo as despesas da casa, foi o Rui Serrão.
Nem sempre estávamos de acordo, eu e o Régio, como, por exemplo, quando ele torcia o nariz ao Gide e ao Valéry, que eu admirava e a quem muito devia. Concedia-lhes, ele, a fina inteligência, mas achava-os “estéreis”. Eu ia aos arames, civilizadamente, claro, para o não magoar. Ele era mais pela poesia espontânea e menos pela arte cerebral e triturada de Valéry ou Mallarmé (ou Pessoa ou Sena). O “desarrumo” de Brandão ou Dostoiewsky não o incomodava, pelo contrário (o que não deixava de ser irónico, quando nos lembramos das acusações de excesso de “formalismo” e de “esteticismo” que os neo-realistas lhe assacaram a ele e aos da presença...)
Em suma, noite dentro, noite fora, cruzávamos ideias, paixões e desafectos e pouco ficava por escavar. No Verão, Régio partiu para férias, em Vila do Conde e eu parti para Santa Margarida, para manobras militares, poeira e pouca água para o banho. Santa Margarida serviu para eu aprofundar, com baldes de argumentos, a minha aversão à vida militar. Naquela palhaçada poeirenta e sem propósito, consolava-me apenas com a contemplação da esbelteza dos cavalos: lindos animais! Uma carga de infantaria, com fogo real, deu-me uma ideia aproximada do inferno que é a guerra. E do crime que cometem os que a engendram.
Mas tive o prazer inesquecível de ver o Santos Costa – braço direito da repressão salazarista – a ser flagrantemente desobedecido e desautorizado pelo comandante militar do campo: o fascista mandão a proibir, em alta grita, que saíssemos do campo, para fim de semana prolongado, e o general-comandante, logo após a saída do energúmeno, a mandar entregar-nos os passes para o combóio que nos ia levar ao desejado interregno! Tive aí o primeiro vislumbre de que nem tudo era sossego e harmonia no casulo lusíada a que Salazar presidia. A paróquia começava a cansar-se do pároco e seus oficiantes.
No regresso a Portalegre – eu, vindo da poeira, da militança, do sujo e da má comida, o Régio, de umas apetecidas férias, em Vila do Conde - , retomámos a nossa conversa, no Café Central. Logo na primeira noite, quando saímos do Café, a caminho de casa, o Régio, com ares de quem tinha alguma coisa de importante a comunicar-me e gerindo, com malícia, algum saboreado “suspense”, disse-me, com ar sobriamente pimpão: “Ah, tenho uma novidade para si: arranjei-lhe um editor...”  Surpreendido e um pouco aterrado, respondi que ficava muito lisonjeado, mas que não precisava de editor porque não tinha nada para publicar. O que era verdade: não tinha na minha gaveta, nenhum livro de poemas clandestino, nenhum diário escondido, nenhuma novela secretamente congeminada... Não cometera ainda o pecado de escrever. Nada. “Não tem, mas vai ter”, respondeu ele, muito assertivo. Fiz-lhe notar que parecia saber mais sobre o meu futuro do que eu próprio. Acabou por abrir o jogo: um editor do Porto – Tavares Martins – iniciara, havia pouco, uma colecção de bolso, “Poetas de Ontem e de Hoje”, dirigida por João Gaspar Simões, na qual acabara de ser publicado o primeiro volume, dedicado à poesia de Garrett. O editor queria que o volume seguinte contemplasse a poesia de Régio. Pedia-lhe, para isso, aprovação e apoio: fotografias, sugestões, o que fosse. Régio ter-lhe-ia respondido que sim, mas com a condição de ser ele a escolher a pessoa que iria organizar o livro e a escrever a introdução e demais aparelhagem crítica. E logo acrescentou que essa pessoa era um aspirante miliciano, que acabara de conhecer em Portalegre e lhe parecia a pessoa adequada para a tarefa. Tavares Martins aceitou e logo comunicou a decisão a João Gaspar Simões, que não pôs objecções (apesar de estar, nessa altura, de relações cortadas com José Régio).
Fiquei, é claro, lisonjeado, mas sem vontade nenhuma de aceitar. Fiz-lhe, mais uma vez, ver que nunca tinha publicado uma linha que fosse, de artigo, crónica, crítica ou simples testemunho. Que lia muito, com atenção crítica e genuíno prazer. Mas não passava disso. Régio ripostou que, ao longo de todos aqueles meses de convívio apertado, em conversas longas e aquecidas, pudera avaliar o meu acúmen crítico, a minha sensibilidade e perspicácia e o conhecimento profundo que mostrava ter da sua obra. Quanto à arte de escrever, era simples: mergulhasse, e logo se via! Ele não tinha dúvidas quanto à valia do resultado. Dei bom, honesto e prolongado combate, mas não arredou pé. Acabei por me render, dizendo-lhe que ia arriscar, mas que o responsável pelo fiasco seria ele... Acho que sorriu em itálico. De aí a pouco terminaria o meu serviço militar e iria para Lisboa, onde faria os estágios que me faltavam para obter o diploma de engenheiro electrotécnico. Nesse período, a começar no início de Março de 1955, procuraria congeminar a introdução e demais aparelhagem crítica que sustentasse a antologia. Régio dava-me liberdade de escolha dos poemas, com uma condição: não incluísse o famoso “Cântico Negro” e até, preferivelmente, nenhum dos poemas que constituíam os Poemas de Deus e do Diabo (queria pôr um travão à demasiada popularidade do livro todo e daquele poema em particular). Não me resignei e disse-lhe que, popular ou não, aquele poema era uma bandeira da sua autonomia e feroz independência. Não podia ser eliminado. Com muito trabalho, acabei por convencê-lo.
Ia ser duro: estágios, relatórios dos ditos, e mais aquele exercício literário, ainda por cima, novo: um ensaio de sondagem original de uma obra vasta, rica e complexa, cheia de vivências religiosas e místicas, que me eram alheias, mas que me fascinavam, vividas por um ser excepcionalmente sensível e inteligente, que soubera moldá-las em arquitecturas eficazes e empolgantes. E o ensaio, num estilo que fosse meu e não traísse demasiado a teia de significados que           o autor d’Encruzilhadas tecera, ao longo de atormentados anos.
Instalado na simpática casa do Rui Serrão (inesquecível República, onde se aboletavam também, a Fernanda Simões, a Célia e o João Machado), à Rua Praia da Vitória, no Saldanha, trabalhei denodadamente, aproveitando as noites e os fins de semana. Aconteceu-me o que costuma acontecer aos que começam: quis pôr tudo quanto tinha a dizer – despejar o saco! – logo no primeiro parágrafo... Saber esperar, aguardar o momento próprio para fazer fulgurar a farpa iluminada, que tinha de reserva – não era comigo. Não poder mostrar logo as riquezas todas era um sofrimento! As ideias “boas” atropelavam-se umas nas outras, sôfregas de virem à luz da ribalta... Passei noites sem dormir, à custa de doses maciças de anfetaminas e, finalmente, em meados de Maio enviei ao Régio o manuscrito (mesmo manuscrito, escrito à mão, em letra muito bem desenhada, para evitar dificuldades de leitura: não podia pedir à Fernanda que mo dactilografasse, porque andava ocupada a dactilografar os relatórios dos estágios). E fiquei a aguardar, com grande nervosismo, o veredicto do autor de Benilde: ia-me valendo, como distracção para os nervos, o esforço com os estágios e a redacção, mais ou menos inepta, dos relatórios dos ditos. Ao fim de alguns dias, que me pareceram uma eternidade, recebi, com data de 22 de Maio, a carta dilacerantemente aguardada. Régio, eu sabia-o, não era dado a excessos histéricos, quando se tratava de avaliar e elogiar. Eu estava preparado para um juízo sóbrio e cauteloso. Por isso, mesmo lendo a carta, onde ele não traía este protocolo de alguma reserva, as suas palavras deixaram-me a tremer de emoção e prazer: “O que não pode ser louvar-me – é reconhecer eu a penetração, a densidade, o encadeamento lógico, visíveis (e creio que, felizmente, não só a mim!) em todo o estudo e que, aliás, eu já esperava de Você.”  E por aí fora. Fiquei literalmente eufórico. Tinha finalmente escrito um ensaio literário e o melhor juiz no assunto tinha-o aprovado e até elogiado! Era realmente demais! Andava pela rua a ter pena de toda a gente que andava por ali sem ter recebido uma carta como aquela...
O manuscrito foi devidamente encaminhado para o editor, depois de algumas correcções de pormenor, sugeridas, com justeza e justiça, por Régio, e, em 21 de Agosto,, depois de ter recusado um bom emprego, em Alverca, parti para Lourenço Marques, à la recherche du temps perdu.
Noutro lugar – o meu terceiro volume de memórias, há pouco publicado – conto o que foi esse reencontro com Moçambique e essa segunda (ou terceira) vivência africana, que duraria 21 anos. Fui mantendo, com Régio, um contacto epistolar não demasiado assíduo, mas, em todo o caso, continuado, acrescentado de duas visitas que lhe fiz, em idas minhas a Portugal, em 1963 e 1968. É esse acervo de cartas suas, a que junto as que lhe escrevi, que hoje aqui se fixa em livro, por me parecer de interesse humano e literário. Nele, Régio dá eminente testemunho da sua integridade, frontalidade, inteligência e sensibilidade. E da sua fidelidade, na amizade. A sua insistência amiga – e quase severa – para que eu levasse “mais a sério” a minha vocação de escritor ficar-me-á, para sempre, como um remorso. De facto, só comecei a sair de uma certa forma  - embora valiosa – de “amadorismo” literário, já depois da morte do escritor. E comecei a fazê-lo, pagando, assim, a sua insistência amiga e bem intencionada, com a redacção do meu volumoso José Régio – A Obra e o Homem. E foi uma factura pesada: a obra, minuciosamente documentada e meticulosamente pensada, foi escrita, em Lourenço Marques, num isolamento quase monacal, que me devorou  férias, noites, fins de semana e repeliu, por longo tempo, o contacto com amigos. Era este o livro que eu gostaria de ter oferecido, em vida sua, ao escritor que tanto deslumbrara e iluminara os meus anos adolescentes. E que não parei de ler e estudar, pela vida fora.
As correspondências de escritores podem ser – e são-no muitas vezes – um retrato penoso de egos não domesticados e de vaidadezinhas torpes. Esta, de Régio, não envergonha o homem que fez a obra, o qual é, em tudo, igual ao homem que a obra faz supor. Dá-nos um discurso límpido, originado numa alma atormentada e rica. Por isso, faço questão de o não deixar esquecido.”
Eugénio Lisboa
S.Pedro do Estoril, Outubro de 2013.