sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Homo sapiens

Homo Sapiens                                
                               
Primo do primata, irmão ou primogénito
por tantas linhas que essa História abarca
nessa ilustre família do passado
diga-nos: afinal quem foi teu patriarca???
                           
Sobrevivente de todos os caminhos
de Neanderthal às passarelas do terror
grego ou troiano, cruzado ou sarraceno
judeu e palestino no ódio e no amor.
                           
Ei-lo chegado dos arraiais do tempo
sem pêlos, ereto e bem trajado
ostentando as etiquetas do progresso
e o seu orgulho de homem civilizado.
                           
Ei-lo no terceiro passo do milénio
herdeiro da filosofia e da ciência
depositário infiel da lei e da razão
o senhor da guerra e da violência.
                           
Ei-lo no palco da comédia humana
protagonista do escândalo e da inocência   
resignado a gargalhar, chorar, fingir
na incomunicável pantomima da existência.
                           
Ei-lo manequim do orgulho e do egoísmo
trajando sua incómoda  religiosidade
encurralado pela vida e para a morte
tateando tragicamente a eternidade.
                                                              
Ei-lo garimpando as jazidas da ilusão
escravo  do ouro, do poder e da aparência
condenado ao remorso, à dor e à solidão
no tribunal implacável da consciência. 

                          
Ei-lo a dançar no Carnaval do mundo
nesse  eterno festim, grotesco e sensual
triste figura de pierrô e colombina
pobre bacante dessa orgia universal.
                                
Ei-lo desvendando os caminhos siderais
ainda que na Terra viva a esmo
imantado aos seus instintos bestiais
incapaz de abrir uma rota pra si mesmo.
                            
Ei-lo arrebatando impaciente o seu bocado 
no gesto cego, primitivo e infantil
disputando a qualquer preço o seu brinquedo
qual uma criança em seu íntimo perfil.
                            
Ei-lo  mafioso, sedutor e corrompido
traficando em um varejo alucinante
de colarinho branco ou encardido
parceiro inconfessável de um mundo degradante.
                            
Ei-lo a cuspir no prato que comeu
e desse banquete só migalhas restarão
as águas mortas, florestas abatidas
um planeta devastado àqueles que virão.
                            
Promotor da fome e da miséria
com sua elite global e rapinante
vai saqueando a vida dia-a-dia
impassível ante um grito agonizante.
                            
Mas apesar de tudo é o  herói que sonha
pra buscar na utopia a sua glória
arauto da liberdade, da paz e da justiça
sacrificado nas trincheiras da história.
                                                              
Missionário do amor, da arte e do progresso
anónimo  na humildade e na grandeza
indiferente aos holofotes do “sucesso”
mora na luz da fraternidade e da beleza.
                            
Ei-lo enfim  a se arrastar no chão da vida
com a alma manchada por tantos desatinos
milenar caminheiro  da esperança
solitário e sem rumo diante do destino.
                            
Perplexo frente a tantos holocaustos 
ensurdecido ante os canhões da guerra
fita as estrelas e suspira fundo
sonhando um dia com a paz na Terra.
                                                          Curitiba, Março de 2004
Manoel de Andrade, in "Cantares", Escrituras Editora, São Paulo, Brasil, 2007, pp. 82-84

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

O enterro do Sinhô

O Enterro do Sinhô 
Por Manuel Bandeira
"Ele era o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana. Daí a fascinação que despertava em toda a gente quando levado a um salão.
Vi-o pela última vez em casa de Álvaro Moreyra. Sinhô cantou, se acompanhando, o “Não posso mais, meu bem, não posso mais”, que havia composto na madrugada daquele dia, de volta de uma farra. Estava quase inteiramente afónico. Tossia muito e corrigia a tosse bebendo boas lambadas de Madeira R. Repetiu-se a toada um sem número de vezes. Todos nós secundávamos em coro. Terán, que estava presente, ficou encantado.
Não faz uma semana, eu estava em casa de um amigo onde se esperava a chegada de Sinhô para cantar ao violão. Sinhô não veio. Devia estar na rua ou no fundo de alguma casa de música, cantando ou contando vantagem, ou então em algum botequim. Em casa é que não estaria; em casa, de cama, é que não estaria. Sinhô tinha que morrer como morreu, para que a sua morte fosse o que foi: um episódio de rua, como um desastre de automóvel. Vinha numa barca da Ilha do Governador para a cidade, teve uma hemoptise fulminante e acabou.
O seu corpo foi levado para o necrotério do Hospital Hahnemanniano, ali no coração do Estácio, perto do Mangue, à vista dos morros lendários… A capelinha branca era muito exígua para conter todos quantos queriam bem ao Sinhô, tudo gente simples, malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (lá estava o velho Oxunã da Praça Onze, um preto de dois metros de altura com uma belida num olho), todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas… Essa gente não se veste toda de preto. O gosto pela cor persiste deliciosamente mesmo na hora do enterro. Há prostitutazinhas em tecido opala vermelho. Aquele preto, famanaz do pinho, traja uma fatiota clara absolutamente incrível. As flores estão num botequim em frente, prolongamento da câmara-ardente. Bebe-se desbragadamente. Um vaivém incessante da capela para o botequim. Os amigos repetem piadas do morto, assobiam ou cantarolam os sambas (Tu te lembra daquele choro?). No cinema d’a Rua Frei Caneca um bruto cartaz anunciava “A Última Canção” de Al Johnson. Um dos presentes comenta a coincidência. O Chico da Baiana vai trocar de automóvel e volta com um landaulet que parece de casamento e onde toma assento a família de Sinhô. Pérola Negra, bailarina da companhia preta, assume atitudes de estrela. Não tem ali ninguém para quebrar aquele quadro de costumes cariocas, seguramente o mais genuíno que já se viu na vida da cidade: a dor simples, natural, ingénua de um povo cantador e macumbeiro em torno do corpo do companheiro que durante tantos anos foi por excelência intérprete de sua alma estóica, sensual, carnavalesca."
Manuel Bandeira , em  crónica  extraída do livro “Os Reis Vagabundos e mais 50 crônicas”, Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1966, pág. 11. 
Nesta crónica , Manuel Bandeira  narra a sua convivência com o famoso compositor de música popular brasileira, Sinhô, que muitos dizem ser o autor do primeiro samba e a cena de seu velório, transformando este testemunho numa peça de alto valor.



segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Evocar José Régio

Resultado de imagem para fotos de José Régio
José Régio à distância de 50 anos
Por Eugénio Lisboa 
"Quando José Régio fechou para sempre os olhos, em 22 de Dezembro de 1969, na sua casa de Vila do Conde, onde escolhera aguardar o desfecho e não em qualquer hospital do Porto, fê-lo, depois de um longo percurso de vida e de escrita, sempre, a um tempo, admirado, invejado, contestado e, frequentemente, mal lido. Régio, em que pese aos seus detractores, que foram, muitas vezes, apenas outros poetas de quem a memória e o ouvido dos leitores não guardaram um único verso – é uma das maiores figuras do nosso mundo literário e cultural. Nascido em 1901, foi bafejado por três grandes favores: inteligência, sensibilidade e talento. Três dons que são também, quase sempre, três rebuçados veladamente envenenados. A inteligência assusta e afasta. A sensibilidade complica e dificulta o convívio fluente; e o talento promove, não raro, a inveja e a insídia. Prodigiosamente provido destas três perigosas componentes de um complexo e completo equipamento criativo, José Régio, nascido num acanhado meio pequeno-burguês do norte de Portugal, viveu os primeiros anos da sua vida numa vigilância inquieta e apertada pelo lado de uma mãe nervosa e altamente sensível, mas ricos de leituras e aventuras – e sondagens – interiores. Cedo e simultaneamente, descobriu as seduções da poesia, do teatro e da ficção de largo fôlego.
Sensibilidade de alta amperagem e inteligência de superior gabarito, associadas, compõem um aparelho de sondagem interior e exterior de poder excepcional mas de recepção duvidosa: ninguém gosta de ser avaliado por uma sonda tão aguçada e sofisticada. Alguns camaradas e amigos que o dissessem…
Transferido, após concluídos os estudos liceais, para Coimbra, ali frequentou, como aluno livre, o curso de filologia românica, que concluiria com uma lúcida, perceptiva e atrevida tese de licenciatura sobre os mestres da moderna poesia portuguesa. Reconhecido pelos seus camaradas universitários como o mais inteligente e o mais bem apetrechado de todos eles, em Coimbra  promoverá, com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, o aparecimento de uma revista de artes e letras, a presença, que traria, para além do estudo, divulgação e publicação dos argonautas do Orpheu, um exemplo de pedagogia sólida e bem argumentada e, também, a promoção de toda uma arte oriunda de personalidades fortes e inovadoras, mas despreocupada de “escolas”, de “ismos” e de “modas”. Preconizando uma arte produzida por personalidades ricas e realmente originais –  não de uma originalidade fabricada e rebuscada – Régio sorriu sempre, em itálico, para os entusiasmos juvenis dos que acreditavam que um novo “ismo” – o deles – vinha arrasar todos os “ismos” passados, para se estabelecer, finalmente, como o “ismo” definitivo . Alérgico à superficialidade e pouca durabilidade das modas, afastando de si com vigor a literatura feita só de “literatura” e escassa ou mesmo desprovida de substância e de vida, recusando uma total rotura com o passado – como anunciavam que faziam os do Orpheu - , mas inovando a partir desse passado e não contra ele, divulgador intenso de nomes novos que a geração anterior ignorara (Proust, Gide, Claudel, Dostoiewsky…), munido de uma inconfundível coragem cívica e artística, arauto convicto daquilo em que acreditava mas cauteloso, qual avisado cientista, ao sugerir uma hipótese nova, que logo admitia poder substituir-se por uma hipótese melhor, fugindo como da peste aos dogmas mal digeridos dos iletrados das letras, dono de uma escrita de uma claridade sem batota e de uma musicalidade muito pessoal, Régio, dentro e fora da presença, recorta um dos mais singulares, poderosos, sedutores e perturbantes perfis de toda a nossa história literária.
Nos diálogos, cheios de inquietantes subentendidos, travados nos Cafés de uma cidade de província (Coimbra?), nesse sibilino e profundo romance que é o Jogo da Cabra Cega, publicado em 1934 e logo apreendido, Régio mostra, com abundância de exemplos, como é complicado, turbulento e crispado o convívio entre seres humanos, sobretudo em naturezas ricas e complicadas como os artistas e os intelectuais. Todo o convívio se faz, parece dizer o autor, em terreno minado, e se defronta, pois, com surpresas explosivas. O convívio com os outros (amor, amizade, simples conhecimento) é eterna fonte de mal-entendidos e crispação. Não o é menos o convívio consigo próprio e com os seus fantasmas interiores. Também o convívio ambicioso com algum transcendente aparece cheio de escolhos, armadilhas e impossibilidades. Visar a perfeição é o mesmo que visar a morte – é ver o Príncipe Perfeito com Orelhas de Burro, que só perde a sua pequena imperfeição – as orelhas – no momento em que perde a vida. Ou a Benilde – da peça com o mesmo nome – que parece finalmente cumprir o seu difícil destino no preciso momento em que a morte a visita. Todo este fecundo tema de uma morte que promove uma “ressurreição” está patente em muitos momentos da obra de Régio: na poesia, na ficção, no teatro (no seu principal teatro – Jacob e o Anjo, na Benilde ou a Virgem-Mãe, no El-Rei Sebastião, em A Salvação do Mundo morre-se e “ressuscita-se” em sentido real ou metafórico e, frequentemente, nos dois).
Neste breve artigo celebrativo dos cinquenta anos da morte do poeta de As Encruzilhadas de Deus e desse grande romance de aprendizagem que é A Velha Casa, não tenho, como é óbvio, nem tempo nem espaço para glosar, mesmo superficialmente, todas as obsessões que alimentam, obstinadamente, o tecido vasto e complexo desta grande obra de poesia, ficção, teatro, ensaio, crítica, autobiografia e diarística. Mas não gostaria de terminar sem sublinhar uma característica deste grande escritor: a sua admirável capacidade de trabalho, isto é, de perceber que a inteligência, a sensibilidade e o talento não chegam para produzir uma obra notável, se não forem acompanhados por uma grande disciplina de trabalho. Por outras palavras um tanto rudes, não se consegue produzir obra que valha, se à inspiração se não acrescentar a transpiração. A este respeito, gostaria de aqui transcrever uma passagem, admirável e reveladora, de uma carta que Régio dirigiu a Nemésio, nestes termos: “Quanto a criação, inspiração e trabalho, penso explicar-me numa das cartas que tenho vindo rabiscando para a Seara. A respeito de várias personalidades da minha geração, ou já da seguinte, o que penso é que lhes faltam exactamente aquelas qualidades de ruminação, de paciência, de persistência, de trabalho, sem as quais todo o poder de criação se limita, e toda a inspiração não produz senão clarões (quando não fogachos) intermitentes. De aí a minha alegria quando vejo reunirem-se qualidades de inspiração e, digamos, de profissionalismo. Ah, se toda a gente soubesse como eu gosto de ver toda a gente dar tudo quanto pode! Cá por mim, sempre foi o meu maior sonho ser ao mesmo tempo um criador e um operário, para completar esta nota: um boémio e um homem de gabinete e de oficina.”
De saúde frágil, com uma vida de professor, coleccionador de antiguidades, jornalista e epistológrafo ocupando-lhe muito tempo, Régio, recorrendo esforçadamente a muita paciência, disciplina, persistência e trabalho, tudo próprio de um bom profissional e de um exímio operário, pôs de pé uma obra monumental, sem se fiar apenas nos poderes da inspiração. E demolindo, de passagem, o tão acarinhado mito lusíada do preguiçoso de génio… Por tudo isto e muito mais, não fica mal recordar agora o escritor que, há 50 anos, nos deixou. Porque nos deixou, deixando também, para nosso proveito, uma grande obra e um grande exemplo." Eugénio Lisboa,em ensaio publicado no JL.

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Ao Domingo Há Música


Se te disser dos dias que não sei
dos meses que passaram que não achei
dos anos que findaram que não vivi
das noites que chegam e não acabam
das palavras que não acodem sem ti.

Há sempre um regresso para quem não pode viver sem Música. 
Os sons enchem as palavras e a Música  explode-as em  infinda melodia. É essa a magia e o prodigioso encanto da Música, desde os tempos primevos.

Com a voz de Bárbara Padilla, rendemo-nos à beleza dos sons de "A time for us" ,( "Un giorno per noi"). O registo foi efectuado na célebre Abbey Road Studios,  numa produção de Gregg Field e Jorge Calandrelli, com a participação da London Symphony Orchestra.