segunda-feira, 18 de março de 2024

Morreu o Nuno

Nuno Júdice,(1949-2024)
Morreu o Nuno Júdice, coitado,
prematuramente, o que é injusto.
Com aquele seu ar desactivado,
de tímido e esquivo mangusto,
 
não era pessoa de grandes falas,
antes se recolhia ao silêncio,
deixando, sem muito custo, as galas
e brilhos, a quem fosse mais propêncio.
 
Os versos que deixa terão destino,
quase de certeza, muito incerto,
como acontece, no desatino,
 
de um futuro sempre encoberto.
Sublinhe-se a passagem de um poeta,
que foi, aqui, efémero cometa.
                          18.03.2024
Eugénio Lisboa

Morreu o poeta Nuno Júdice

Nuno Júdice , (1949-2024)
“O poeta Nuno Júdice morreu este domingo aos 74 anos, vítima de doença. Estava internado no Hospital da Luz, em Lisboa.
Nuno Júdice nasceu na Mexilhoeira Grande,  Município de  Portimão, no distrito de Faro, em 1949. Poeta, ensaísta e ficcionista, formou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa. Era Professor Jubilado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou em 1989 com uma tese sobre Literatura Medieval O espaço do conto no texto medieval (Vega, 1991). Publicou antologias da Poesia do Futurismo português e da poesia de Guerra Junqueiro e fez as edições de Novela despropositada de Frei Simão António de Santa Catarina (Regra do Jogo, 1997), dos Sonetos de Antero de Quental (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994), do Cancioneiro de D. Dinis (Teorema, 1998) e dos Infortúnios trágicos da Constante Florinda de Gaspar Pires Rebelo (Teorema, 2005). Teve uma colaboração regular em jornais e revistas com crítica literária e crónicas. No campo do ensaio sobre temas de poesia, ficção e teoria literária publicou A era do Orpheu (Teorema, 1986), O espaço do conto no texto medieval (Vega, 1991), O processo poético (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992), Viagem por um século de literatura portuguesa (Relógio d’Água, 1997), As máscaras do poema (Aríon, 1998), A viagem das palavras (Colibri, 2005), O fenómeno narrativo (Colibri, 2005), A certidão das histórias (Apenas Livros, 2006). Em Jjaneiro de 2009 assumiu as funções de director da revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian.
Foi conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Paris (1997-2004) e director do Instituto Camões na capital francesa.
Organizou a Semana Europeia da Poesia, no âmbito da Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura.
Nuno Júdice foi um dos poetas portugueses mais publicados e traduzidos, tendo a sua obra merecido reconhecimento internacional com vários prémios, dos quais se destaca o Prémio Ibero-Americano Rainha Sofia atribuído em 2013. Em 2018, foi galardoado com o prémio PEN do Clube Galego e em 2021, foi distinguido com o Grande Prémio de Poesia Maria Amália Vaz de Carvalho da Associação Portuguesa de Escritores (APE) pela publicação do livro “Regresso a um cenário campestre”, editado em 2020. Foi finalista do Prémio Europeu de Literatura pela obra “Meditação sobre ruínas” que em 1994 já tinha sido distinguida também pela APE.
Em 2022, foi publicado o volume “50 anos de poesia (1972-2022), que reúne o seu trabalho poético durante meio século. "
A vida
 
A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;
a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;
a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.
Nuno Júdice, in Teoria Geral do Sentimento, Quetzal  Editores
 
Fragmentos
1
Aceita o transitório; nada do que
é definitivo, dura, te pode atingir
2
Algo de visível perpassa
nos limites do ser.
3
De noite, o vento partiu
um dos vidros das traseiras.
4
Só o ruído da noite sobrevive
à luz e ao furor matinais.
5
(Se aquelas nuvens, no horizonte,
chegassem até mim…)
6
O fragmento, porém, exprime
o estilhaçar da intensidade.
7
No último fragmento, fixa
o efémero e repousa.
Nuno Júdice, in Meditação sobre Ruínas, Quetzal Editores 1999
 

Carta ( Esboço)
 
Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação ;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.
Nuno Júdice, in Poesia Reunida, Dom Quixote 2000
 
A Terra do Nunca
 
Se eu fosse para a terra do nunca,
teria tudo o que quisesse numa cama de nada:
os sonhos que ninguém teve quando
o sol se punha de manhã;
a rapariga que cantava num canteiro
de flores vivas;
a água que sabia a vinho na boca
de todos os bêbedos.
Iria de bicicleta sem ter de pedalar,
numa estrada de nuvens.
E quando chegasse ao céu pisaria
as estrelas caídas num chão de nebulosas.
A terra do nunca é onde nunca
chegaria se eu fosse para a terra do nunca.
E é por isso que a apanho do chão,
e a meto em sacos de terra do nunca.
Um dia, quando alguém me pedir a terra do nunca,
despejarei todos os sacos à sua porta.
E a rapariga que cantava sairá da terra
com um canteiro de flores vivas.
E os bêbedos encherão os copos
com a água que sabia a vinho.
Na terra do nunca, com o sol a pôr-se
quando nasce o dia.
Nuno Júdice, in Poemas [de As Coisas Mais Simples],Dom Quixote , Outubro de   2006.
Silêncio
 
Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntar o que significam.
Mas o silêncio de onde as palavras sairam
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.
Nuno Júdice, in  A matéria do poema. Dom Quixote. 2008

domingo, 17 de março de 2024

Aquela África não acabava


Ilha de Inhaca. Moçambique, Cidade de Maputo.
A África, onde nasci, sobrava.
Era África por todos os lados,
olhava-se e nunca mais acabava,
nasciam pra sempre laços sagrados.
 
Nascer ali era ver o começo
de tudo: a areia da praia, o mar,
a chuva grossa, o sol quente, sem preço,
os mistérios do sexo a acenar.
 
A grandeza prometia grandeza,
os sonhos em nós não eram mesquinhos!
Visávamos grande, com a certeza
 
de irmos abrir bem novos caminhos!
Estar bem dentro daquele continente
não era dado a pequenina gente!
                           17.03.2024
Eugénio Lisboa

Ao Domingo Há Música


Uma  das mais recuadas imagens dos meus dias é uma mulher a cantar. Com a sua voz antiquíssima  e branca, aquela mulher , à distância de mais cinquenta anos, continua a embalar-me o coração. As palavras eram de um romance popular, sumarentas , cheias de sol, falavam de amor e de morte , de paz e de guerra, de coisas que não sabia exactamente o que fossem , mas que permanecem em mim como pequenos nós  de sombra  ou breves manchas luminosas. O tecido da vida deveria ter a transparência daquelas palavras , já que o pulsar do universo não podia deixar de ser idêntico àquele ritmo amplo e seguro, em perpétua expansão.
                     Eugénio de Andrade, Nascimento da Música


Há vozes que podem embalar o coração  Talvez a voz , que se apresenta,  tenha o ritmo e a magia necessárias.

Cynthia Erivo interpreta Somewhere, de West Side Story , acompanhada pela National Symphony Orchestra. Esta belíssima canção foi composta pelo grande maestro e compositor Leonard Bernstein, com letra de Stephen Sondheim.
Cynthia Erivo, em Stand Up,( Official Lyric Video), do filme Harriet. A canção original , "Stand up",  foi composta por Joshuah Brian Campbell & Cynthia Erivo.
   
Cynthia Erivo, numa emocionante interpretação  de Imagine, canção de John Lennon. A cantora presta  uma homenagem às vítimas do tiroteio em Pulse, já considerado "o mais mortal tiroteio em massa da história dos Estados Unidos" e outras vítimas de violência.
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sexta-feira, 15 de março de 2024

De como uma ficção histórica popular pôde impregnar o imaginário de um grande escritor francês do século XX


De como uma ficção histórica popular pôde impregnar o imaginário de um grande escritor francês do século XX
por Eugénio Lisboa
“A história e, para o caso que nos interessa hoje, a ficção histórica podem ter os mais diversos usos – incluindo os mais surpreendentes. Não que a história difira totalmente da ficção que nela se inspira: na congeminação do texto histórico, a imaginação, entra como elemento fecundador e, mais do que provavelmente, deturpador – “Apesar das suas ambições de verdade, a história não é, no fim de contas”, observava Barbey D’Aurevilly, “senão palavra humana, submetida à triste condição da palavra humana, que é a de poder enganar e poder enganar-se.” A história propõe-nos não uma balda de factos desgarrados e desarticulados, mas antes ambiciona construir uma narrativa coerente que os articule – para isso se servindo da razão, da especulação e da imaginação. Por isso, Anatole France, que nos deu um excepcional romance sobre o Terror – Les Dieux Ont Soif – dizia com provocação sorridente: “A história não é uma ciência, é uma arte. Nela, nada se consegue a não ser por intermédio da imaginação.” Assim vistas as coisas, poder-se-ia pois admitir que a ficção histórica é apenas uma ficção sobre outra ficção, ambas visando restituir-nos uma vida que ninguém ao certo sabe o que de facto foi: “Escrever História”, dizia Philip Hope Wallace, “pode ser tão criativo como fazê-la. São ambas uma interpretação da vida.” A História interpreta, como pode, a vida. E a ficção histórica interpreta, como pode, essa outra interpretação da vida que é a História, a qual é também uma espécie de vida. Porém, com todas estas reservas e suspeitas, a realidade duplamente traída que nos veicula o texto ficcional histórico pode ter sobre o imaginário do leitor ainda jovem, um extraordinário poder de sedução e fermentação de padrões e moldes que irão marcar de modo indelével a sua experiência emocional e intelectual. Marcado a fogo, aos oito anos de idade ,para todo o resto da sua vida pela leitura do romance polaco de Henryk Sienkiewicz, Quo Vadis?, o jovem Henry de Montherlant, futuro autor de algumas das mais poderosas ficções (romances e peças de teatro) do século XX, confessará em páginas escaldantes e inesquecíveis, os sulcos que para sempre lhe deixou no espírito e na forja emocional o popular romance, em cujo território, se passeiam, com aterradora vivacidade e desenvoltura, o Nero e o Petrónio, que não são bem os da história, mas sim os que, em livre inspiração bebida nos breves apontamentos de Tácito, nos deixou o notável romancista polaco. Montherlant dirá mais tarde, num texto escrito aos 62 anos: “A vida e a morte de Petrónio contêm-se numa trintena de linhas no meu Tácito (liv. XVI, cap. XVIII e XIX ). O Petrónio que desempenha um papel nas nossas imaginações é o Petrónio de Sienkiewicz.” Como dirá ainda o autor de La Guerre Civile, “Quo Vadis? não é uma grande obra, nem mesmo um grande romance, mas é um romance muito bom que merece inteiramente o imenso sucesso que o acolheu.”
Quo Vadis? não é, realmente, um grande romance mas é um romance inesquecível, uma daquelas obras que, uma vez lidas, deixam marca. E é nosso propósito mostrar, com a claridade e força que nos forem possíveis, como um romance que não é um grande romance, mas antes uma obra vivaz e imensamente popular, isto é, uma obra, em princípio, suspeita, pode fornecer sulcos fundamentais e pistas de comportamento e de referência profundas, no imaginário de um dos maiores escritores do século XX – Henry  de Montherlant, o qual irá ao ponto de não recear afirmar, num texto que escreveria já em plena maturidade: “Eu peso bem as palavras antes de escrever o que se segue: foi, na verdade, no Quo Vadis que aprendi a escrever [...] Entre os oito e os catorze anos. – e, repito-o, esses seis anos, nessa idade, contam tanto como uma vida inteira, - vivi do estilo da tradução francesa de Quo Vadis, compreendido o que ele tinha de bom e o que ele tinha de menos bom. Durante não somente a minha adolescência mas também a minha primeira juventude, um grande número de frases dessa tradução guardaram, para mim, um carácter como que encantatório, e durante muito tempo, elas reapareceram, mais ou menos transpostas, ou mesmo completamente cruas, nas obras que eu escrevia.”
Montherlant leu o romance de Sienkiewicz em 1904 e, em 1905, a Academia Sueca, com algum receio e munindo-se das justificações que conseguiu agenciar, conferiu ao autor polaco o prémio Nobel. Sienkiewicz não era o autor apenas de Quo Vadis?. Outros romances históricos de indiscutível fôlego épico – A Ferro e Fogo, O Dilúvio – e contos notáveis como “O Faroleiro” ou “Bartek, o Conquistador”, tinham-lhe dado mais do que jus à fama que o aureolava. Mas a obra que indiscutivelmente lhe deu uma quase instantânea reputação mundial foi o Quo Vadis?, publicado em 1896, ano, curiosamente, do nascimento de Montherlant. E foi esta quase excessiva popularidade mundial do romance polaco que foi fonte de não pequeno desconforto para os jurados do prémio Nobel. Numa curiosa “Pequena História da Atribuição do Prémio Nobel a Henryk Sienkiewicz”, da autoria de Gunnard Ahlström, membro do Instituto Sueco, podemos ler a seguinte instrutiva passagem: “Todos os Prémios Nobel foram sujeitos à crítica, de uma forma ou de outra. Sienkiewicz não escaparia à regra. A tarefa dos censores foi fácil, pois que a coroa de louros lhe tinha sida atribuída, na opinião de todos, por causa de Quo Vadis?. Tratava-se de um best seller ao alcance de toda a gente e não de uma obra digna de figurar entre as manifestações da grande literatura. Depois da sua publicação, em 1895*, havia sido rapidamente traduzido para 30 línguas. Num só ano, 800.000 exemplares foram vendidos na Inglaterra e na América. O mundo das livrarias não estava ainda habituado a estes êxitos livrescos, em avalanche. Numa época em que se prestigiava ainda os génios que habitavam nas mansardas, a popularidade tinha algo de suspeito. Havia ali, com certeza, qualquer coisa de mau gosto ou de banal.” Os mais irritados de todos, no mercado literário e dos prémios, foram os italianos que, nesse ano, queriam o troféu para o poeta Carducci. Na sua divertida história, Gunnard Ahlström dá conta desta reacção: “Os protestos”, diz ele “não se fizeram esperar. Os romanos modernos deram livre curso ao ressentimento, num artigo veemente publicado no jornal Italia. Quo Vadis? era apontado como um novo evangelho das cozinheiras, que haviam aprendido a história da França lendo Dumas, pai. A história romana, adaptada às necessidades da pia da cozinha, recheada de sentimentalismo barato e cortada em fatias muito finas, tinha deslumbrado a multidão. A fim de atender às suas piedosas leitoras, o polaco não vacilara em evocar o incêndio de Roma, em pôr em cena Nero, o “Anticristo”, o inimigo dos cristãos. Acusavam-no de ter lido bem demais e traduzido mal demais a obra de Renan. Bem poucos se apercebiam [ainda segundo os italianos] de que Quo Vadis? tinha tão pouco valor literário como Os Últimos Dias de Pompeia, de Bulwer Lytton.” Tratava-se, parece-me evidente, de um exagero e de uma injustiça. Mas tudo isto deixa bem claro que o sedutor romance polaco, que tem em grande parte, como cenário o Palatino romano, no tempo de Nero, era um bom romance histórico mas, de modo nenhum, uma obra de primeira grandeza, que pudesse pôr-se ao lado, por exemplo, de uma Guerra e Paz (que aliás nunca foi bafejada pelo peculiar galardão sueco). Um muito bom romance, com qualidades que o tornaram imediatamente popular e que ainda hoje é lido e visto no cinema e televisão (em péssima adaptação de Hollywood) – e é tudo. De modo nenhum, um marco de grandeza na história literária universal. Já Montherlant, em quem o livro de Sienkiewicz deixaria, como vamos ver, marcas tão profundas, é um autor de indiscutível grandeza, embora nunca tenha sido bafejado pelo Nobel que galardoou o romancista polaco. Vindo na grande linhagem de escritores que começa em Bossuet e que, passando por Saint-Simon, vem desaguar em Chateaubriand e, já no século XX, em Barrès, o autor de La Ville dont le Prince Est un Enfant e de Le Chaos et la Nuit foi reconhecido, entre os seus pares franceses, como porventura a maior força literária da França no século XX (Romain Rolland, Bernanos, Gide – que o admirava, detestando-o – Valéry, Jouhandeau, Daniel Rops colocavam-no no topo da escala, reconhecendo-lhe um génio na escrita que só nos maiores clássicos da língua encontrava equiparação). Jacques Chardonne, o mais cristalino prosador da ficção francesa do século XX e um dos mais finos prospectores das singularidades e escolhos da ligação amorosa, tinha Montherlant por “o maior escritor deste século” (referia-se, é claro, ao século XX). E  tendo o filósofo, conde de Keyserling, perguntado a Paul Valéry: “Qual é o vosso maior escritor de hoje?” o grande poeta respondera sibilinamente: “É Montherlant. Mas não convém dizê-lo.” É que o autor do Cimetière Marin conhecia o “milieu” e já se tinha apercebido dos anticorpos que a grandeza do autor de Le Songe, aliada a um profundo desprezo pelos cordelinhos do mundo literário e por aquilo a que chamava a “gló-glória”, tinham sido capazes de desencadear. Romain Rolland bem declarara, em 1926, seduzido pelos primeiros escritos do jovem Montherlant: “Você é a maior força que existe nas letras francesas. O mundo é mais rico para mim, agora que o conheço.” O mundo ficava mais rico para quem quer que mergulhasse naquele misto de fogo, altivez e insolência que se desprendia da oficina literária do autor de Les Olympiques.
A sondagem em profundidade das grandezas e misérias humanas, da força e da fraqueza, do sublime e do monstruoso, da fome dos corpos e da saciedade dos corpos, da crueldade e da doçura, este magnético “dizer sim à vida” veiculado numa prosa inigualável de rigor, precisão e maldade felina, que levarão Gide a considerar o seu detestado rival “um escritor de raça, um senhor das letras” – tudo isto foi Montherlant bebê-lo, inicialmente, ao Sienkiewicz do Quo Vadis?, lido com paixão, aos oito anos. “Eu era tão ignorante da história romana”, dirá Montherlant, no texto já citado, “que, quando o autor de Quo Vadis fala, ora de Nero, ora de César, eu comecei por pensar que Nero e César eram dois personagens diferentes. Mas, muito cedo, comecei em casa o estudo do latim com um professor de Janson. [...] esse universo do latim, no qual ia mergulhar, que poderosamente me ajudou a viver, e, por vezes, mesmo na minha vida privada, tinha-me anteriormente sido aberto por Quo Vadis. Mas Quo Vadis tinha sido para mim, aos oito anos, uma dupla revelação, mais importante ainda do que a do mundo romano, e que tinha feito desse livro, posso dizê-lo sem ênfase, um dos acontecimentos consideráveis da minha existência: a revelação da arte de escrever, e a revelação daquilo que sou. Aos doze anos, Os Doze Césares [de Suetónio] e o Satyricon [de Petrónio] vindos em linha recta do Quo Vadis para se tornarem os meus novos livros de mesa de cabeceira, vão-me familiarizar em espírito com o que de melhor se pode achar como extravagâncias: instruem-me sobre elas, e de todas as cores; estas obras, a título de serem «clássicas», existiam em todas as livrarias. Aos dezasseis, aos dezoito anos, Séneca, Marco Aurélio vão fazer-me amar e aceitar, vindos deles, os mesmos preceitos que eu não teria aceitado vindos dos Evangelhos; eles irão contrabalançar as extravagâncias, do mesmo modo que eu tinha comprado o meu Dionisios em mármore, ao sair da abadia de Solesmes, para contrabalançar, parece-me, a influência de Solesmes. Quo Vadis tinha-me dado outra coisa: aquilo que encontrara em mim, não aquilo que lá tinha posto.” Trata-se, efectivamente, de um encontro, e de um encontro fulgurante e prenhe de consequências, entre um jovem que virá a tornar-se um dos maiores escritores do século XX e um romance popular mas não insignificante, que vai servir como profundo revelador (auto revelador) do mais profundo que havia no fundo do seu ser. No texto que já citámos, escrito já na casa dos sessenta, Montherlant sublinha ainda: “Eu chamo revelação, revelação de mim a mim, a outra revelação de Quo Vadis, porque está fora de questão falar-se de influência. Aos oito anos eu banho-me no Quo Vadis como a chapa fotográfica se banha no revelador químico: Quo Vadis, faz aparecer a maior parte do que está em mim e aí estará para todo o sempre.” E acrescenta: “Faz aparecer também, coisa mais estranha ainda, acrescentando-se a essa revelação muito pessoal, a revelação de uma época da história bastante semelhante àquela em que terei que viver (...)”.
O mundo romano é um mundo que o fascina um pouco narcisicamente, como quem nele se revê, como se num universo iluminado por uma lucidez que se não detém diante de nada. Para Montherlant e para o seu amigo (e mais tarde biógrafo, J:N: Faure-Biguet) o universo romano, isto é, o universo, abre-se-lhes a uma luz quase cruel, quase insuportavelmente atraente. Falando de Sienkiewcz, o autor de Quo Vadis, Montherlant observa com uma espécie de estupefacção agradecida: “O autor (Sienkiewicz) repete várias vezes que, a Nero, não lhe falta talento; que, até, pela sua arte, chega a comover. Durante a orgia «nem a voz de César, ainda que velada, nem os seus versos deixavam de ter encanto» Outra vez, «com óptima voz, nesse dia, sentia que a música encantava os auditores». Erguido sobre os arcos do aqueduto, enquanto Roma arde, ele canta, «e os senadores, os funcionários e os augustanos tinham baixado a cabeça e escutavam, num encanto mudo». Quando ele fala sobre arte, com Petrónio, toda a conversa é muito interessante e muito fecundante para jovens espíritos que se vão dedicar à literatura. Como o monstro se revela humilde diante da beleza! Não vai até ao ponto de dizer que, por vezes, a arte o faz sentir-se «tão bom como uma criança de berço»? Que ressonância estas páginas tinham em Faure-Biguet e em mim! No estado de moral vaga que é, com frequência, o da infância e adolescência, este amor dominante da arte parecia-nos desculpar muita coisa. E, depois, a ideia essencial em Nero, de que a vida, em definitivo, não tem outra justificação que não seja permitir ao artista criar a sua obra, que este tem mesmo o direito de fazer sofrer para a criar (Nero pretende que, se matou a sua mãe e a sua mulher e se incendiou Roma, foi porque isso serviu a sua arte), essa ideia impressionava dois rapazes que sabiam que o seu destino único era serem escritores.” Esta ideia do direito quase ilimitado que assiste ao artista de fazer sofrer, a favor da sua criação, teve sempre, mesmo no nosso tempo – para além de Montherlant – fervorosos, eloquentes e, às vezes, quase ultrajantes defensores. Não se pode pensar em ninguém mais diferente do autor de Les Jeunes Filles do que, por exemplo, o romancista americano William Faulkner, que afirmava ser todo e qualquer escritor genuíno capaz de matar a mãe para escrever uma obra conseguida. E levava a “boutade” até ao limite de sugerir que a “. Ode a uma urna grega”, de John Keats, valia bem uma cabazada de velhas senhoras... “Mais tarde”, conclui Montherlant, no texto fundamental que temos vindo a transcrever, “[Mais tarde] devíamos aprender que uma tal ideia – frequentemente expressa pelos autores antigos – é comum nos artistas, que muitas vezes se não escondem dela, mas, naquele momento, não a conhecíamos a não ser expressa por Nero. Os artistas, de facto, acreditam que a vida desaparece e que a arte permanece, até ao dia em que compreendem que a arte, com muito raras excepções, desaparece tão inexoravelmente como a vida. Mas eles continuam a acreditar, como se assim não fosse, porque acreditar é o que lhes agrada, quando são verdadeiros artistas.” O mundo romano, tal como lhe aparece revelado pela força persuasiva do Quo Vadis?, é a primeira e intensa revelação de que muito há que aceitar, na vida, mesmo quando a acomodação pareça difícil ou mesmo insólita. Aceitar o sim e o não, a elegância e a brutalidade, tudo guardar, tudo compondo (“garder tout, en composant tout”) – eis o que nos mostra, em cenas inesquecíveis, o romance de Sienkiewicz, mesmo quando faz uma apologia (pouco convincente) dos valores preferenciais do mundo cristão. “A morte de Nero”, observará Montherlant, já no fim da vida, “[a morte de Nero], a morte de Petrónio duraram em mim muito tempo. Quanto tempo? Petrónio morto e Nero morto olharam-me com os seus olhos mortos, como górgonas, ao longo de toda a minha vida. E como não notar, de passagem, que, amando igualmente Petrónio e Nero, que o mata, amando igualmente o terror de Nero e a serenidade de Petrónio, eu já me encontrava, simultaneamente, nos dois campos adversos? Disposição de que guardei sempre alguma coisa para sempre.” Está aqui já, ainda em embrião, talvez ainda de modo não demasiado consciente, o seu famoso princípio da alternância, que se inscreve no cerne da sua vida e da sua obra e de que teve a primeira iluminação ao contacto com as páginas de fogo do romance polaco: tout garder, en tout composant. Henri Perruchot resume assim a “alternância” que habita no génio do autor de Le Maître de Santiago: “Montherlant, o homem menos sistemático do mundo, «o anti-sistema», não teve provavelmente razão ao dar nem que fosse a aparência de um sistema a um estado que era, por assim dizer, fisiológico, e que se poderia explicar do modo seguinte: 1º) Verificação de facto: há em mim um conjunto de tendências diferentes, de que algumas se opõem ou parecem opor-se. 2º) Posição intelectual: recuso-me a sacrificar qualquer delas. 3º) Conclusão no concreto: não podendo vivê-las todas ao mesmo tempo, sou obrigado a alterná-las.” É o que o protagonista da sua pérfida e salutar tetralogia romanesca, Les Jeunes Filles, Pierre Costals, postula, nos seguintes termos, de um cinismo desenvolto e solar: “Há em mim todas as estações do ano, sucedendo-se umas às outras. Sou um cosmo que roda e expõe ao sol sucessivamente os pontos diferentes da sua superfície, um de cada vez.” E, no seu livro, Coups de Soleil, reitera esta visão de si mesmo, assumida com força e sem sombra de remorso: “Eu alumio, uma de cada vez, todas as partes de mim mesmo, pondo, durante esse tempo, todas as outras em vigília”. Ou, com mais nitidez e desenvoltura ainda: “O poeta não pode rejeitar nada...Tenho necessidade de viver toda a diversidade do mundo e os seus pretendidos contrários...Imenso amante, nada há de sublime que lhe não serre a garganta (ao poeta), nada há de atroz de que se não sinta o cúmplice e o irmão...Nós vemos que tudo é verdade... O universo, não tendo nenhum sentido, é perfeito que se lhe dê, ora um, ora outro. É mesmo assim que se deve tratá-lo.” Por outras palavras, empatia com Petrónio, que é o cepticismo, a ousadia, a desenvoltura e a elegância, e empatia também (porque não?) com Nero, que é atroz mas tem também os seus genuínos momentos de encanto e melodia, mesmo que à custa do incêndio de Roma... É o equivalente do moto de Nietzsche: “Dizer sim à vida,” ou do de Marco Aurélio: “Ó mundo, eu quero o que tu queres. Tudo o que acontece acontece justamente.”
Na vida que vai prosseguir, após o encontro com o mundo romano como ele é visto pelo romancista polaco – a vida no colégio de Santa-Cruz de Neuilly, a guerra de 14-18, em que participa como voluntário, nas trincheiras solidárias e mortíferas, os anos de “voyageur traqué” pelo Norte de África, Espanha e Itália, voltando afrontosamente costas ao milieu literário parisiense e à gló-glória que lhe sorrira com o seu sorriso hediondo, a segunda guerra mundial e a França desorganizada, apodrecida e cobarde ocupada pelos alemães, a libertação com o seu cortejo de coisas boas, mas também de saneamentos e de infâmias, a glória teatral com todo um cortejo de obras-primas onde fulguram vigorosas intuições e padrões de vida bebidos outrora na leitura de Quo Vadis, enfim o envelhecer, com a perda de um olho e a ameaça de perder o que lhe resta de visão no outro e a escolha final, serena, racional, romana, do suicídio (“Je deviens aveugle, je me tue”) - nesta vida cheia de tudo, Montherlant vai cumprir à risca o seu programa de alternância, julgando e não julgando, amando e distanciando-se, fruindo e entediando-se, vivendo e descrevendo com igual empenho a grandeza e a fraqueza, os sentidos e a espiritualidade, o sublime e o atroz, a coragem e o medo, a elegância e a grosseria, a atenção e o desleixo, a infância e a velhice, a vida esplendorosa e solar mas também o caos e a noite, contrários que fazem da vida o que ela é e que estavam em si desde sempre e de que se apercebeu, com desarrumadora percepção, ao vê-los reflectidos, aos oito anos, no espelho lúcido e perturbante do mundo de Quo Vadis?.
Ao contrário do que se passava com o romance histórico tradicional e com o mundo dos seus leitores, que convergiam no uso de uma reconstituição histórica como meio de sondagem de uma identidade nacional, Montherlant vai encontrar num romance histórico alusivo a um mundo que, à partida não é o seu – o mundo romano – a revelação de uma singularíssima identidade pessoal: o universo central de Quo Vadis?, a elegância de Petrónio e a atrocidade de Nero são ele próprio, Montherlant. E o horror e o grotesco de muito daquele universo são também o do mundo em que vive, no século XX, o autor de Port-Royal.
O mundo romano, o de Tácito, de Suetónio e, sobretudo, a transposição deles feita pelo autor de Quo Vadis? vai, ao longo da vida do autor de Les Bestiaires fornecer as referências essenciais, os padrões, as obsessões sugestivas que lhe impregnam o imaginário e vão imprimir marcas de fogo nas suas melhores páginas. O tema do suicídio – que inunda de luz e de panache a parte final do romance polaco – será uma ruminação omnipresente e solar (não doentia) na obra de Montherlant. Suicídio não por desespero, mas por elegância, para se não persistir em viver, por amor à vida, porque a qualidade de vida vai diminuir e o homem exigente deve saber morrer, como soube viver: “Petrónio” [o de Quo Vadis?], observa Montherlant, “por carta, informa Vinícius de que decidiu morrer. Deixou de falar com desprezo dos cristãos. Reconhece que, de todos os deuses, ‘o Cristo é ainda o mais honesto’. Mas: ‘A vossa doutrina não é feita para mim» e mesmo, mais profundamente: ‘A vossa felicidade, não é feita para mim’. Porquê? As razões dadas, de ordem unicamente estética, são bastante arrepiantes. De resto, ele nomeia os seus deuses, Pirro e Anacreonte. Sobre o suicídio em si, a sua carta tende para o pálido -–mas as mais célebres apologias do suicídio, tema repisado pelos Antigos em certas épocas, serão mais eficazes? Os personagens atraentes de Quo Vadis, Petrónio e Nero, suicidam-se os dois. Eis por que posso dizer, de Faure Biguet e de mim próprio, que quase bebemos o suicídio com o leite: o suicídio de duas espécies, a serena, de uma serenidade socrática, com Petrónio: ‘Peço-vos, não dramatizemos’, e a turva, a demasiado humana, com Nero. Com a idade de quarenta anos, assinalei, no meu volume, a página com o suicídio de Petrónio; quando voltava a pegar no livro, era para ela que em primeiro lugar me voltava. A sua coragem sorridente, melancólica e tranquila tem um perfume que não é passageiro. ‘Para terminar, meus amigos, se da nossa alma alguma coisa subsiste, depois da nossa morte, a minha alma ver-se-á pousar, não longe da vossa casa, com o aspecto de uma borboleta...’ Que de vezes,” observa ainda Montherlant, “eu acreditei ver a alma de Petrónio acompanhar-me, volteando na luz do verão!” E concluia “A frase essencial sobre o suicídio não se encontra nessa carta. Petrónio disse-a a Vinicius no decurso de uma das suas conversas precedentes: ‘Aquele que soube viver deve saber morrer.’”.
O suicídio, bebido com o leite na leitura de Quo Vadis? iria constituir-se em tema recorrente na obra de Montherlant, que a ele regressa constantemente, mas de modo viril, solar e nada mórbido.Honrei o suicídio”, observa Montherlant, num texto fundamental, A Morte de Catão, “[honrei o suicídio] desde a idade dos 30 anos”. E acrescentava esclarecendo que não falava de desespero mas sim de outra coisa mais nobre: “Suicidamo-nos,  “ dizia, “por respeito pela razão, quando a idade ou a doença a entenebrecem, e que há demais honroso do que o respeito pela razão? Suicidamo-nos por respeito pela vida, quando a nossa vida cessou de ser digna de nós, e que há de mais honroso do que este respeito pela vida? Suicidamo-nos sem dar as nossas razões,  e temos o direito de não as dar: porque não havia um homem de ter o direito de  renunciar, sem explicações, a uma vida que não solicitou?” E, ainda no mesmo texto, explica que «Aticus se mata para escapar à doença». Bebida no mundo complexo, a um tempo impiedoso, consolador e cheio de panache de Quo Vadis? , onde os princípios cristãos ombreiam, contradizendo-o mas não o anulando, com o estoicismo romano, o suicídio ou a ideia dele ou do eventual recurso a ele habitará para todo o sempre a casa da ficção e do ensaio do autor de La Guerre Civile, porque começou por lhe mobilar, de modo forte e impressivo, o imaginário da infância e adolescência. Próximo do fim, doente, meio cego, impedido portanto de exercitar as duas paixões que foram os pilares fortes da sua existência – o amor e o trabalho criativo - Montherlant mostrou, em acto, que as suas recorrentes palavras sobre o suicídio não eram apenas má literatura: aos 76 anos de idade, no dia 21 de Setembro de 1972, exactamente, às quatro horas menos um minuto, da tarde, honrando a ideia do suicídio, porque a vida se lhe estava a tornar indigna de ser vivida, o autor de Le Songe trincou uma cápsula de cianeto e disparou um revolver na boca. Fê-lo às quatro menos um porque marcara encontro com o filho adoptivo às quatro em ponto – e era conhecida a obsessiva pontualidade militar do grande escritor. Pessoalmente, gosto de pensar que nesses segundos finais, que presidiram à sua saída deste mundo, a borboleta de Petrónio volteou no seu apartamento do Quai Voltaire, em Paris, saudando e aprovando: “O que soube viver deve saber morrer.” Vinha tudo no Quo Vadis?, romance histórico popular, talvez literatura que não era do mais alto calibre, mas que foi capaz de fecundar a imaginação e o código de viver de um dos maiores escritores da literatura francesa de todos os tempos. Não dizia Goethe, figura cimeira da literatura alemã e mundial, que a si tudo o influenciava, mesmo obras de segunda, terceira ou quarta categoria? E quando estas obras secundárias se revelam assim capazes de motivar os gigantes, não deveremos acordar-lhes um valor acrescentado? “Vivi”, escreveu Montherlant, num posfácio à sua peça, La Guerre Civile, “[vivi] durante sessenta anos entre estas sombras romanas, sombra entre as sombras. Pedia-lhes, ora um motivo de exaltação, ora um modelo de conduta, ora um modo de reagir nos momentos difíceis. Quem não teve desses momentos em que sente tudo desagregar-se à sua volta e em que se sente a necessidade de se agarrar imediatamente  a um corrimão? Quando isso me aconteceu, o corrimão foi sempre, para mim, a história romana.” Foi, realmente, a história romana, mas ela começara, para Montherlant, nas páginas fundadoras e inesquecíveis do romance de Sienkiewicz.”
Eugénio Lisboa, Novembro/2002
 
* Outras referências dão o romance como publicado, não em 1895, mas sim em 1896, ano que é, coincidentemente, o do nascimento de Montherlant. 

quinta-feira, 14 de março de 2024

Do infinito falemos

Do infinito falemos
Sátira para uso dos dela necessitados
 
Se o universo é infinito,
a estupidez é-o muito mais.
Mas se o primeiro pode ser finito,
a estupidez não acaba jamais.
 
A estupidez tem carapaça dura
e sabe muito bem como insistir.
A estupidez quimicamente pura
fala muito antes de reflectir.
 
Talvez precisemos da estupidez
porque ela condimenta a vida:
se confunde francês com albanês,
 
torna-nos mais divertida a vida!
Tudo está em usá-la com medida,
para que se não torne atrevida!
                      14.03.2024
Eugénio Lisboa

Carta ao Pai

 
Carta ao Pai
por Franz Kafka
                                                                             Silésia
“Queridíssimo pai,
Perguntaste-me, há pouco tempo, por que razão afirmo ter medo de ti. Como de costume, não soube responder; por um lado, precisamente pelo medo que tenho de ti, por outro, porque, na base deste medo, existem demasiados pormenores para que possa exprimi-los oralmente, de forma mais ou menos lógica. E se neste momento procuro responder-te por escrito será de forma bastante incompleta porque, também por escrito, o medo e as suas consequências me tolhem diante de ti e porque, enfim, a importância do assunto ultrapassa, de longe, a minha memória e o meu entendimento. As coisas sempre se te afiguraram muito simples, pelo menos a avaliar pelo que disseste à minha frente e, indiscriminadamente, à frente de muitos outros. Parecia que, para ti, era qualquer coisa do género: trabalhaste arduamente toda a vida, sacrificaste tudo pelos teus filhos, sobretudo por mim, vivendo eu, por isso, «à grande e à francesa», tive toda a liberdade para estudar o que quisesse, nunca tive de me preocupar com o sustento, nem ter outras preocupações, de resto; nunca exigiste gratidão em troca, sabes como é a «gratidão filial», mas pelo menos alguma amabilidade, algum sinal de simpatia; em vez disso, desde sempre me escondi de ti, no meu quarto, no meio dos livros, no meio de amigos loucos, no meio de ideias extravagantes; nunca falei contigo abertamente, não fui ter contigo ao templo, nunca te fui visitar a Franzensbad, nem nunca, de resto, tive espírito de família; não me preocupei com o negócio nem com outros assuntos teus, empurrei-te para a fábrica para depois te abandonar; defendi a Ottla na sua teimosia e, enquanto por ti não mexo um dedo (nem sequer um bilhete para o teatro te ofereço), pelos estranhos faço tudo. Se resumires o teu juízo a meu respeito, dirás que até não me acusas de nada de propriamente indecente ou perverso (com excepção, talvez, dos meus últimos planos de casamento), mas de frieza, alheamento, ingratidão. E, na verdade, censuras-me como se a culpa fosse minha, como se eu, com uma volta ao leme, por exemplo, tivesse podido mudar tudo, enquanto tu não tens a mínima culpa, a não ser a de teres sido bom de mais para comigo.
Só considero correcta esta tua concepção habitual na medida em que também eu acredito que estás completamente inocente quanto ao nosso afastamento. Mas também eu estou completamente inocente. Conseguisse eu fazer-te admitir isto, não digo que fosse possível uma vida nova, pois já estamos velhos de mais para isso, eu fazer-te admitir isto, não digo que fosse possível uma vida nova, pois já estamos velhos de mais para isso, mas uma certa paz, não o fim, mas talvez um abrandamento das tuas constantes acusações.
Mas, curiosamente, até tens uma certa ideia daquilo que eu quero dizer. Disseste-me, por exemplo, há pouco tempo: «Sempre te quis bem, mesmo quando parecia não agir contigo como os outros pais, precisamente porque não sou capaz de fingir como os outros.» Ora eu, pai, nunca duvidei, em geral, da tua benevolência para comigo, mas considero a observação incorrecta. Não consegues fingir, é certo, mas querer afirmar, apenas nesta base, que os outros pais fingem ou é uma atitude dogmática que não admite discussão, ou — e essa é, de facto, a minha opinião — a expressão velada de que entre nós algo não está bem, para o que também tu contribuíste, embora sem culpa. Se, na verdade, pensares assim, então estamos de acordo. Claro que não quero dizer que aquilo que sou se deve apenas à tua influência. Seria um grande exagero (e eu até tenho tendência para estes exageros). É bem possível que, mesmo se tivesse crescido completamente fora da tua influência, não conseguisse vir a ser um indivíduo a teu contento. Ter-me-ia tornado, talvez, um indivíduo mais fraco, mais ansioso, mais indeciso, mais inquieto, nem um Robert Kafka, nem um Karl Hermann, mas um ser completamente diferente daquilo que sou, e teríamos conseguido darmo-nos às mil maravilhas. Ter-me-ia sentido feliz por te ter como amigo, chefe, tio, avô, e até mesmo (se bem que com alguma reserva) como sogro. Só que como pai foste forte de mais para mim, sobretudo atendendo a que os meus irmãos morreram de tenra idade, e que só muito mais tarde viriam as minhas irmãs, pelo que tive de aguentar o primeiro embate completamente sozinho, sendo eu fraco de mais para isso. Compara-nos os dois: eu, para me exprimir de forma breve, um Löwy com um certo fundo dos Kafkas, mas que, em vez de ser impelido pela vontade de viver, de negociar e de conquistar dos Kafkas, sinto antes o aguilhão dos Löwys que, da forma mais oculta, mais tímida, actua noutro sentido, levando, muitas vezes, ao fracasso total. Tu, pelo contrário, um autêntico Kafka em força, saúde, apetite, voz sonante, dotes oratórios, satisfação consigo mesmo, sobranceria, perseverança, presença de espírito, conhecimento dos homens, uma certa generosidade, naturalmente também com todos os defeitos e fraquezas inerentes a tudo isto, nos quais te precipitas pelo teu temperamento e, muitas vezes, pela tua irascibilidade. Talvez não sejas bem um Kafka na tua mundividência, tanto quanto posso comparar-te com os tios Philipp, Ludwig e Heinrich. É estranho, também neste caso não vejo as coisas com toda a clareza. Todos eles eram mais joviais, mais vivos, mais espontâneos, mais estouvados, menos severos do que tu. (Nesse aspecto, de resto, herdei muito de ti e administrei bem a herança, sem, no entanto, ter na minha natureza o necessário contrapeso como tu tens.) Mas, por outro lado, a este respeito, passaste por diversos períodos, talvez fosses mais jovial antes de os teus filhos, especialmente eu, te desiludirem e atormentarem lá em casa (com estranhos tu eras diferente) e também talvez te tenhas tornado novamente mais jovial, já que os netos e o genro voltam a dar-te algum daquele calor que os filhos, com excepção da Valli talvez, não foram capazes de te dar. Em todo o caso, éramos tão diferentes e, nessa diferença, tão perigosos um para o outro que, se alguém tivesse querido prever de que modo eu, a criança em lento desenvolvimento, e tu, o homem feito, iríamos comportarmo-nos um com o outro, poderia supor que irias simplesmente aniquilar-me, até que nada restasse de mim. Tal não aconteceu, a vida não se deixa calcular, mas talvez tenha acontecido algo pior. Insisto, porém, em pedir-te para não esqueceres de que de forma alguma acredito que tenhas a mínima culpa. Agiste comigo como tinhas de agir, só que devias deixar de considerar uma maldade especial da minha parte o facto de eu ter sucumbido a essa actuação.
Eu era uma criança ansiosa mas, decerto, também obstinada, como são as crianças; é verdade ainda que a mãe me mimava, mas não posso crer que eu fosse particularmente difícil de levar, não posso crer que uma palavra meiga, um suave dar-a-mão, um olhar bondoso não tivessem conseguido de mim tudo quanto se quisesse.”
Franz Kafka, in  Carta ao pai,  Relógio D’Água Editores, 2004,  pp.7-11 
Franz Kafka ,(1883-1917)
Sobre o autor:
“Franz Kafka nasceu em 1883, em Praga, no seio de uma família da pequena burguesia judia de expressão alemã. Começou a escrever os seus primeiros textos em 1904. Em 1906, terminou os seus estudos universitários, doutorando-se em Direito. Em vida, publicou apenas sete pequenos livros e alguns textos em revistas. De entre estes livrinhos e textos, destaca-se A Metamorfose, que veio a lume em 1915. Esta pequena novela viria a afirmar-se como uma das suas obras de referência. A 3 de Junho de 1924, não resistindo à tuberculose diagnosticada em 1917, morre em Kierling, a poucos quilómetros de Viena, deixando três romances fragmentários, que seriam publicados postumamente pelo seu amigo e testamenteiro Max Brod: O Processo (1925), O Castelo (1926) e América (1927), a que se seguiram volumes com contos, cartas e diários. A sua obra, centrada no homem solitário moderno, refém de uma vida absurda, tornar-se-ia uma das mais influentes do mundo literário do século XX.”

terça-feira, 12 de março de 2024

Considerações sobre o resultado das eleições

 
Considerações sobre o resultado das eleições
por Eugénio Lisboa
“O resultado destas eleições evidencia, sobretudo, uma dramática subida do CHEGA e, pior ainda, uma tendência a continuar a subir. A tão universalmente gabada queda da abstenção, infelizmente, quer dizer que os habituais abstencionistas que, desta vez, levantaram o rabinho do sofá, para irem votar, foi para irem votar no CHEGA. Havia, é claro desilusão e ressentimento, devido ao estado do país, mas isso, só por si, não explica tudo. A maioria das pessoas gosta de milagres e, milagres, foi o que Ventura, despudoradamente, lhes prometeu. As pessoas mais qualificadas da nossa sociedade, Professores universitários, juízes, médicos, altas patente do exército, por maior cultura profissional e geral que possuam, gostam de acreditar em milagres que, de repente, os tornem ricos e famosos. Viu-se isso, de forma calamitosa, com a “banqueira do povo”, D. Branca. Quando eu soube do que se estava a passar, fiz logo o diagnóstico, porque me lembrava de casos acontecidos, na minha vida empresarial, em que alguns gerentes de instalações da minha empresa foram despedidos por fazerem o que se chama “rolling the cash”. Era o que fazia a D. Branca e o que fez o americano Madoff. Mas os mais altamente qualificados cidadãos deste país precipitaram-se a depositar as suas poupanças nas mãos daquela “miracle worker” (fazedora de milagres). Muitos ficaram sem nada, quando a suspeita levou a uma corrida geral aos levantamentos. Fui altamente repreendido, ao não aderir àquela loucura, por pessoas que alegavam que senhores Professores universitários não tinham hesitado em pôr o seu dinheiro nas mãos da banqueira. Respondi-lhes sucintamente que, universitários ou não, esses senhores não sabiam fazer contas. André Ventura é a D. Branca da política portuguesa: oferece milagres a quem gosta de milagres e quem gosta de milagres é muita gente. O problema é que esses milagres não estão disponíveis.
Por outro lado, esta iliteracia política de muitos cidadãos deriva do baixíssimo grau de cultura e de educação cívica, com que hoje se sai das escolas e universidades. É assustador ver o que se passa nas redes sociais, que indicia um nível de boçalidade intelectual, que não é de bom augúrio para um futuro saudável do país.
Que, ao fim de oito anos de desgaste governamental do PS, com tudo quanto de negativo aconteceu, o PSD só tenha conseguido um número de deputados igual ao do PS, mostra a fragilidade do futuro governo e a relativa pouca fé dos eleitores no partido de Montenegro. Isto convocaria, a meu ver, uma atitude de adultos da parte tanto do PSD como do PS: esquecerem-se de lutas partidárias e entenderem-se naquelas áreas essenciais ao bem estar do país. Se o não fizerem o descrédito nesta democracia aumentará e o ovo da serpente dará mais filhos.
Eis, em resumo muito resumido, o que penso da situação em que estamos.”
Eugénio Lisboa, 12.03.2024