sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Fim de ano

Fim de ano

Um fim de ano que é um fim de mundo,
Nunca sonhara vir a viver isto!
Muito mundo meu fora já ao fundo,
Segundo um plano há muito entrevisto.

Se viver é sobretudo perder,
Se viver cava em torno um deserto,
Se vamos acabar sem perceber
O que, em nós, está errado ou certo,

Que milagre foi este, sem sentido?
Foi então vã a nossa aventura?
O que ganhámos foi tudo perdido?

O que sabemos é só noite escura?
Descobrir a luz foi então um logro?
O amor, o sol, a vida, um malogro?
                               31.12.2021
Eugénio Lisboa, Poesia inédita

Vento do Espírito


Vento do Espírito

Senti passar um vento misterioso
Num torvelinho cósmico e profundo.
E me levou nos braços; e ansioso
Eu fui; e vi o Espírito do Mundo.

Todas cousas ermas, que irradiam
como um nocturno olhar inconsciente,
Luz de lágrima extinta, não sentiam
A trágica rajada, que somente

Meu coração crispava! Ó vento aéreo!
Vento de Exaltação e Profecia!
Vento que sopra, em ondas de mistério
E tanto me perturba e me extasia!

Estranho vento, em fúria, sem tocar
Na mais tenrinha flor! E assim agita
Todo o meu ser, em chamas, a exalar
Luz de Deus, luz de amor, luz infinita!

Vento que só encontras resistência, 
numa invisível sombra... Um arvoredo,
Ou bruta pedra, é como vaga essência;
E, para ti, eu sou como um penedo.

E na minha alma aflita, ó doido vento,
Bates, de noite; e um burburinho forte
A envolve, arrasta  e leva num momento;
E vai de vida em vida e morte em morte.

Vento que me levou, nem sei por onde,
Mas sei que fui; e, ao pé de mim, bem perto,
Vi, face a face,  a névoa a arder que esconde
O fantasma de Deus, sobre o deserto!

E vi também  a luz indefinida 
Que , nas trevas, se fez, esclarecendo
Meu coração, que voa, além da vida,
O seu peso de lágrimas perdendo.

E aquele grande vento transtornou 
Minha existência calma; e dor antiga
Meu rude e frágil corpo trespassou, 
Como a chuva nos andrajos de mendiga.

E fui num grande vento; e fui; e vi:
Vi a sombra de Deus. E, alvoroçado,
Deitei--me àquela sombra, e, em mim, senti
A terra em flor e o céu todo estrelado.
Teixeira de Pascoaes, in " As Sombras", Círculo de Leitores,, Março de 1973, pp.18,19

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Bicentenário de Gustave Flaubert

Gustave Flaubert”, por German Vizulis.
Neste  mês de Dezembro, que finda amanhã, celebra-se o bicentenário de Gustave Flaubert. E tal como Julian Barnes que produziu um livro  sobre este grande escritor francês, repetimos:  "Por que é que a escrita nos faz procurar o escritor ? Por que é que não o deixamos em paz ? Por que é que os livros não bastam ? Flaubert queria que fosse assim: poucos escritores acreditaram mais  na objectividade do texto  escrito e na insignificância da personalidade do escritor;" mas mesmo assim desobedecemos e continuamos.
Num dos seus mais originais livros, "Dictionnaire des idées reçues" , (Dicionário das Ideias Feitas), " um conjunto de textos, organizado de forma enciclopédica, sobre clichés e estereótipos que a maioria das pessoas aceita sem questionar ,  Flaubert  atribui ao termo "Gloire" , "un peu de fumée".  Mas nada disso aconteceu com Flaubert . A sua glória perdura até hoje , pela beleza da sua escrita, a que se dedicou com afinco  e dedicação. Era um virtuoso da palavra. Com um punhado de obras, revolucionou não só  a  literatura francesa como  a mundial do século XIX.
Julian Barnes, nesse magnífico livro " O papagaio de Flaubert" , entre muitas belíssimas páginas sobre Gustave Flaubert , prossegue com  o seguinte: "Flaubert ensina-nos a olhar para a verdade e não temer as suas consequências ; ensina-nos , como Montaigne, a dormir na almofada da dúvida; ensina-nos a não nos aproximarmos de um livro em busca de pílulas morais ou sociais : a literatura não é uma farmacopeia ; ensina a superioridade da Verdade, da Beleza, do Sentimento e do Estilo. E se estudarmos a sua vida privada , ensina a coragem, o estoicismo, a amizade; a importância da inteligência , do cepticismo e da imaginação; a palermice do patriotismo barato; a virtude de ser capaz de ficar sozinho no quarto ; o ódio à hipocrisia; a desconfiança nas teorias; a necessidade de falar com simplicidade."
Gustave Flaubert nunca  se demitiu da verdade . Tendo consciência das suas contradições , confessa-nos:
"Há em mim, literalmente falando, dois homens diferentes: um que é apaixonado pela retórica, pelo lirismo, pelos altos voos de águia, por todas as sonoridades da frase e por ideias altas; um outro, que vasculha e escava o real tanto quanto pode, que adora mostrar o detalhe de modo tão poderoso quanto o grande facto, e que gostaria de fazer com que sentissem quase materialmente as coisas que ele reproduz."

Algumas Frases de Gustave Flaubert
“O coração das mulheres é como esses móveis secretos, cheios de gavetas escondidas umas nas outras.”
“As paixões desaparecem quando as mantém distantes.”
“O sucesso com as mulheres é geralmente uma marca de mediocridade.”
“Um infinito de paixões pode caber num minuto.”
“Cada notário carrega em si os escombros de um poeta.”
“O futuro nos atormenta, o passado nos retém; é por isso que o presente nos escapa.”
“A felicidade é um mito inventado pelo diabo para nos angustiar.”
“Cuidado com a tristeza. Ela é um vício.”
“Nada é mais humilhante do que ver o tolo vencer naquilo em que fracassámos.”
“Para se ter talento é necessário estarmos convencidos de que o temos.”
“A recordação é a esperança do avesso. Olha-se para o fundo do poço como se olhou para o alto da torre.”
“A medida de uma alma é a dimensão do seu desejo”
Dados biográficos

Gustave Flaubert nasceu a 12 de Dezembro de 1821, em  França.  O seu nascimento ocorreu no hospital onde seu pai era cirurgião-chefe, na cidade de Rouen. Ainda na infância, em 1829, o escritor conheceu Ernest Chevalier (1820-1887),com quem encetou uma amizade que duraria muitos anos
Em 1832, começou a estudar no Colégio Real de Rouen. No ano seguinte, fez uma viagem com a família à Normandia, Nogent-sur-Marne, Versalhes, Fontainebleau e Paris. Dois anos depois, em 1835, com Chevalier, lançou, no colégio, o jornal manuscrito  Art et Progrès.
Conheceu, em 1836, Elisa Schlésinger (1810-1888) por quem se apaixonou. Elisa tinha vinte e seis anos e era casada, enquanto Flaubert era apenas um adolescente. Essa paixão marcou a vida do romancista e, também, a sua escrita. Assim, no final dessa década, escreveu as obras Paixão e virtude e Memórias de um louco.
Em 1841, Gustave Flaubert fez a sua inscrição na Faculdade de Direito de Paris. No ano seguinte, mudou-se para a Cidade Luz, sem entusiasmo pelo curso. Nesse ano, conheceu o amigo Maxime du Camp (1822-1894). Em 1844, teve seu primeiro ataque epiléptico.
O escritor viajou, em 1845, a Provença, Itália e Suíça. Em 1846, teve duas perdas na família, o seu pai morreu e, depois, a irmã do escritor, deixando uma filha, a pequena Caroline. Como o pai da criança, Émile Hamard, enlouqueceu após a morte da esposa, Flaubert ficou responsável pela criação de sua sobrinha.
Nesse mesmo ano, o romancista conheceu a poetisa Louise Colet (1810-1876), separada do marido e mãe de uma jovem de 16 anos, amante do filósofo Vitor Cousin, iniciando um romance com ela. Dessa relação nasce uma abundante correspondência, publicada em livro, hoje considerada essencial para o estudo da vida e obra de Flaubert. São 281 cartas de Flaubert a Louise Colet. As cartas de Louise desapareceram quase todas, talvez queimadas por Flaubert. Nesta relação entre os dois, existiram dois períodos. As cartas do segundo período é contemporânea da redacção de Madame Bovary. Lêem-se como um diário da obra em curso, ora como um modo de produção ora como uma reflexão teórica.
No fim de 1849, o escritor viaja com  Maxime du Camp.  Será uma viagem memorável ao Oriente . Conhecem o Egito, Palestina, Constantinopla, Síria e,  na Europa,   Grécia e Itália. Dessa viagem resultará o romance Salambô. Flaubert regressou a  França em 1851 . Trabalha já na que há-de ser a sua obra-prima absoluta: Madame Bovary
Após quatro anos e meio de trabalho, em 1856, o autor terminou o seu romance  que foi publicado  na Revue de Paris, por Laurent Pichat e Maxime Du Camp, em folhetim, como era frequente na época. Apesar de alguns cortes, como a cena do fiacre, em que Emma se entrega ao amante Léon, a obra foi recebida com indignação pelas autoridades francesas . Entretanto, Flaubert não deixara de  protestar  contra os cortes efectuados  na edição do seu texto.  Considerado como um atentado  mordaz e depravado ao valor do casamento. Emma é uma mulher romântica que, ao casar-se com o médico  Charles Bovary, não consegue encarar a realidade monótona de um casamento burguês. O  marido é incapaz de lhe  oferecer as aventuras de um livro romântico. Ela vive, então, uma vida tediosa e sem nenhum encantamento. “Seria que aquela miséria duraria para sempre? Não haveria maneira de lhe fugir? Contudo, ela achava que valia tanto como todas as outras que viviam felizes! Vira em Vaubyessard duquesas com a cintura mais grossa e os modos mais vulgares e vociferava contra a justiça de Deus; encostava a cabeça às paredes para chorar; invejava as existências tumultuosas, as noites de máscaras, os prazeres insolentes com todos os delírios que deviam provocar o que ela não conhecia.”(Emma ,em Madame Bovary).
 A 7 de  Fevereiro de 1857, Flaubert , a  Revista e o seu editor  são julgados pelos crimes de atentado contra a moral pública  e  bons costumes. Após um julgamento retumbante são absolvidos. Em Abril de 1857, o editor Michel Lévy, com quem Flaubert asssinara um contrato de 800 francos, publica, com sucesso, Madame Bovary. As vendas são importantes , quinze mil exemplares são  vendidos em Junho. Gustave Flaubert torna-se célebre.
No ano de 1863, a escritora George Sand (1804-1876) escreve um artigo sobre o novo romance de Flaubert: Salambô. Tornam-se grandes amigos. No ano seguinte, a sobrinha Caroline  casa-se. Em 1866, o escritor foi condecorado como Cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra. Anos depois, em 1873, a sua saúde começou a ficar precária.
Nesse mesmo ano, começou a  corresponder-se com o escritor Guy de Maupassant (1850-1893), que se tornou uma espécie de  seu discípulo. No ano seguinte, passou um tempo na Suíça, por ordens médicas. Já em 1875, teve de  vender uma propriedade em Deauville para ajudar o marido de sua sobrinha, que estava com dificuldades financeiras.
Quatro anos depois, em 1879, o autor sofreu um acidente e teve uma fractura. Além disso, também enfrentava problemas financeiros. Morreu a  8 de Maio de 1880, em Croisset, devido a um derrame cerebral. Deixou  o seu romance Bouvard e Pécuchet inacabado.
Algumas obras de Flaubert:
Memórias de um louco (1838)
Novembro (1842)
Madame Bovary (1856)
Salambô (1862)
A educação sentimental
(1869)
As tentações de Santo António (1874)
Três contos (1877)
Bouvard e Pécuchet (1881)
Dicionário das Ideias Feitas (1913)

A par da obra ficcional, Gustave Flaubert  tem uma abundante correspondência que enche tantas páginas como a sua obra editada.  São cartas literárias assinadas por Flaubert em que se  fala mais de literatura que do tempo; vê-se viver um homem de letras , absoluto, em que o sofrimento e a força,  para o essencial, o seguram à escrita.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A viagem


A viagem

Há um mundo maior e distante desta esfera
onde o farol da vida se acende deslumbrante
um recanto onde a morte não impera
e onde as horas se medem pelo instante.

São degraus de uma escada interminável
ninhos de luz muito além do entendimento
onde seres de uma beleza incomparável
recriam sem cessar o firmamento.

Se sonhas chegar um dia a essa paragem
investe o próprio coração nessa viagem
e, com a caridade, tece e borda o teu vestido...

pois não entrareis jamais nessa cidade
sem o traje do amor e da humildade
e sem o passaporte do dever cumprido.
Manoel de Andrade, Poesia 



O teu tesouro

Além, muito além desta paisagem,
numa realidade apenas pressentida
compreenderás ao fim dessa viagem
de onde vens e pra onde vais, na vida.

No torvelinho incessante dos destinos
cada um com seu papel nessa ribalta
semeando a ventura ou os desatinos
colherás o que te sobra ou que te falta.

Viandante dos caminhos milenares
aprendeste na decepção e nos pesares
que “nem tudo o que reluz é ouro”.

Guarda-te pois das ciladas da ilusão
porque “aonde estiver teu coração,
ali estará também o teu tesouro”.
Manoel de Andrade, Poesia

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Os homens e o seu absurdo

"A vida é curta e é pecado perder o seu tempo. Sou activo, diz-se. Mas ser activo é ainda perder o seu tempo, na medida em que nos perdemos. Hoje é um descanso e o meu coração parte ao encontro de si próprio. Se uma angústia ainda me estreia, é a de sentir este impalpável instante escorregar-me por entre os dedos como as gotas do mercúrio. Deixai, pois, aqueles que querem voltar as costas ao mundo. (...) Posso dizer, e direi daqui a pouco, que o que conta é ser humano e simples. Não, o que conta é ser verdadeiro e então, tudo aí se inclui, a humanidade e a simplicidade. E quando posso eu ser mais verdadeiro do que quando sou eu o mundo? Sou satisfeito antes de ter desejado. A eternidade está ali e eu esperava-a. Já não é ser feliz o que eu desejo agora, mas apenas ser consciente.
Um homem contempla e o outro cava o seu túmulo: como distingui-los? Os homens e o seu absurdo? Mas aqui está o sorriso do céu. A luz aumenta e breve será o Verão? Mas aqui estão os olhos e as vozes daqueles que é preciso amar. Estou preso ao mundo por todos os meus gestos, aos homens por toda a minha piedade e o meu reconhecimento. Entre este direito e este avesso do mundo, eu não quero escolher, não gosto que se escolha. As pessoas não querem que se seja lúcido e irónico. Eles dizem: «Isso mostra que não és bom.» Não vejo a relação. Decerto oiço dizer a uma delas que é imoralista, traduzo que ela tem necessidade de atribuir-se uma moral; a outra que despreza a inteligência, compreendo que ela não pode suportar as suas dúvidas. Mas porque eu não gosto que se faça batota. A grande coragem é ainda a de ter os olhos abertos para a luz como para a morte. Além disso, como explicar a ligação que leva deste amor devorador à vida a este desespero oculto? Se escuto a ironia (1) escondida no fundo das coisas, ela descobre-se lentamente. Piscando o olho pequeno e claro: «Vive como se...», diz ela. Apesar de muitas pesquisas, aqui está toda a minha ciência.
Afinal de contas, não estou  certo de ter  razão. mas não é isso que é importante se pensar naquela mulher  cuja história me contavam. Ela ia morrer e a filha vestiu-a para o túmulo enquanto ela estava viva. Parece , com efeito, que a coisa é mais fácil quando os membros não estão rígidos. Mas é mesmo assim curioso como vivemos entre gente apressada."
Albert Camus, in O avesso e o direito, Editora Livros do Brasil, pp.109-111

(1) Essa garantia de liberdade de que fala Barrès.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

domingo, 26 de dezembro de 2021

Aviso por causa das coisas


Aviso por causa das coisas
ou Os homens sem cabeça
 por Eugénio Lisboa 
Se me cortassem a cabeça,
a minha capacidade de pensar
ficaria francamente diminuída.
Bertrand Russell
 
“Da epígrafe roubada a esse gamin que dava pelo nome de Bertrand Russell, o qual, em co-autoria com Alfred North Whitehead, publicou o famoso PRINCIPIA MATHEMATICA, pode concluir-se que há toda a vantagem em conservarmos, pela vida fora, a cabeça com que nascemos. Uma sociedade de decapitados teria uma probabilidade diminuta de dar uma contribuição séria ao avanço da Filosofia e da Ciência.
Embora alguns chefes de regimes que se propuseram instalar o céu na Terra tenham preferido fazê-lo, cortando as cabeças a um aflitivo número de cidadãos recalcitrantes – logo, perigosos – também não é líquido que regimes de maior liberdade tenham sistematicamente produzido cidadãos que conservam intactas as suas cabeças. A verdade é que, como dizia Huxley, o acto de pensar é a excepção à regra de não pensar. Pensar pela sua própria cabeça, embora apoiado no esforço de pensadores antecedentes, exige trabalho e coragem. Dá muito mais fáceis dividendos ir com a corrente dominante e não causar ondas de inquietação. Em termos de carreira e de glória, chega-se lá mais facilmente, aceitando os dogmas em vigor, do que contrariando-os, quase sempre com sofrimento. Os frutos da terra caem mais provavelmente no colo dos conformistas. Ser Galileu não ajuda. Uma carreira universitária bem oleada não se faz, preferencialmente, com ideias originais, antes investigando afanosamente quais os evangelhos em vigor e seguindo-os com mansidão. O vigor de uma ideia que desarruma o statu quo incomoda os proprietários do saber, preferindo estes a devoção canina dos que seguem os caminhos já muito percorridos e confortavelmente acarinhados.
A surpresa desagradável é que esta glória conformista é fluentemente conseguida mas dura, de modo geral, muito pouco. Ao chato do Galileu chegaram quase a cortar-lhe a cabeça, mas, tendo ele insistido em conservá-la, com grande astúcia e engenho, a sua glória ficou para sempre e a dos seus perseguidores desapareceu. De Galileu, ficou o eternamente cintilante “E, contudo, move-se”, mais um punhado de leis que não esquecem, ao passo que, dos seus perseguidores, restou apenas o emblema infame: “Quot non fecerunt barbari fecerunt Barberini” (“O que não fizeram os bárbaros fizeram os Barberini”).
As nossas faculdades de letras estão cheias de dogmas inamovíveis, guardados religiosamente por guardiões determinados e rigorosamente sem cabeça, ansiosos, por sua vez, por cortar as cabeças dos refilões com o abominável hábito de pensarem por si e de declararem singelamente o que encontraram. Aqueles que gostam de encontrar o já encontrado e muito venerado têm uma glória rápida mas de curta duração. O parvo de cabeça teimosamente em cima dos ombros demora a saborear os frutos da glória, mas tem-na melhor assegurada e de muito maior duração.
Ninguém gosta tanto de cortar cabeças como aqueles que já há muito perderam a sua. Os decapitados odeiam ver as cabeças que lhes recordam as que já tiveram e de que abdicaram, a favor de um triunfo efémero. Porém, quando consentimos em que nos cortem a cabeça, é muito improvável que no-la devolvam. Ficarmos sem cabeça é um processo irreversível. Restará só uma glória aparente e um esquecimento garantido. A cabeça era, afinal, uma parte indispensável do equipamento e não o ter percebido a tempo foi um erro irreparável.
Aqui fica o aviso, por causa das coisas.”
Eugénio Lisboa, 26.12.2021 

Ao Domingo Há Música




I see trees of green, red roses too
I see them bloom, for me and you
And I think to myself
What a wonderful world

"Some of you young folks been saying to me
" Hey Pops, what you mean 'What a wonderful world'?
How about all them wars all over the place?
You call them wonderful?

And how about hunger and pollution?
That ain't so wonderful either."

Well how about listening to old Pops for a minute.
Seems to me, it aint the world that's so bad
but what we're doin' to it.

And all I'm saying is see what a wonderful world
It would be if only we'd give it a chance.
Love baby, love. That's the secret, yeah.
If lots more of us loved each other
we'd solve lots more problems.
And then this world would be gasser.

That's wha' ol' Pops keeps saying."

Um mundo magnifico  não existe sem amor. Assim o formula o  inconfundível Louis Armstrong, na introdução falada à lindíssima canção What A Wonderful World, nesta versão original (Original Spoken Intro Version),  ABC Records 1967, 1970  . Louis Amstrong tinha como  alcunhas  Satchmo ou Pops.
"What a Wonderful World" [1970 Spoken Introduction Version],  com a Orquestra de Oliver Nelson é uma canção escrita por Bob Thiele (como George Douglas) e George David Weiss. Foi gravada pela primeira vez por Louis Armstrong e lançada como single em 1967. Thiele e Weiss eram ambos famosos  no mundo da música (Thiele como produtor e Weiss como compositor / intérprete). A gravação de Armstrong foi introduzida no Grammy Hall of Fame, em 1999.
 
Hallelujah, numa magnífica  interpretação do Summertime Choir, com Jade Novah, como convidada especial . A canção foi extraída   do concerto de Natal de 2016, que se realizou no  Kioene Arena de Pádua.  
Video: CircuitoZero;  Mistura de Audio: Lorenzo Faggin; Direcção artística: Walter Ferrulli; Direcção de Orquestra : Fabrizio Castania  e Produção: Chiara Gallana.
   

sábado, 25 de dezembro de 2021

Pie Jesu


Voto de Natal

Acenda-se de novo o Presépio no Mundo!
Acenda-se Jesus nos olhos dos meninos!
Como quem na corrida entrega o testemunho,
passo agora o Natal para as mãos dos meus filhos.

E a corrida que siga, o facho não se apague!
Eu aperto no peito uma rosa de cinza.
Dai-me o brando calor da vossa ingenuidade,
para sentir no peito a rosa reflorida!

Filhos, as vossas mãos! E a solidão estremece,
como a casca do ovo ao latejar-lhe vida…
Mas a noite infinita enfrenta a vida breve:
dentro de mim não sei qual é que se eterniza.

Extinga-se o rumor, dissipem-se os fantasmas!
O calor destas mãos nos meus dedos tão frios!
Acende-se de novo o Presépio nas almas. 
Acende-se Jesus nos olhos dos meus filhos.
                                                    1960
David Mourão-Ferreira, in «‘Cancioneiro de Natal’- Obra Poética»(1948-1995),
Assírio & Alvim  – Porto Editora, p 318 

  

A comovente e magnífica peça de Andrew Lloyd Webber, "Pie Jesu", numa belíssima interpretação do Bel Canto Choir Vilnius, com as cantoras de ópera Joana Gedmintaitė e Lina Dambrauskaitė , acompanhadas  ao piano por   Artūras Anusauskas. O maestro Arturas Dambrauskas rege o coro de que é Director. 
O registo  foi extraído do espectáculo "The Sky Opens for One Night Only", realizado em St. Catherine Church,  em Vilnius, Lithuania , a 16 de Junho de 2012.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Falai de Deus

 Falai de Deus com a clareza

Falai de Deus com a clareza
da verdade e da certeza:
com um poder

de corpo e alma que não possa
ninguém, à passagem vossa,
não o entender.

Falai de Deus brandamente,
que o mundo se pôs dolente,
tão sem leis.

Falai de Deus com doçura,
que é difícil ser criatura:
bem o sabeis.

Falai de Deus de tal modo
que por Ele o mundo todo
tenha amor

à vida e à morte, e, de vê-Lo,
O escolha como modelo
superior.

Com voz, pensamentos e atos
representai tão exatos
os reinos seus

que todos vão livremente
para esse encontro excelente.
Falai de Deus.

Cecília Meireles (1918-1964), Dispersos, in “Poesia Completa”, Editora Global

Ave

 

Ave Verum Corpus KV618, de Wolfgang Amadeus Mozart pelo Coro e Orchestra del Conservatorio “O. Respighi” di Latina,  sob  a direcção do Maestro  Mauro Bacherini.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Portal da Queixa

Portal da Queixa
Lamentos de um poeta menor
Em dia de grande depressão


1

A todos os meus amigos,
A quem costumo falar,
E mesmo aos inimigos
Que nunca hão-de faltar,

2

Aqui, queixoso, me queixo
Dos limites que me tolhem
E a todos eles deixo
Queixas que não encolhem.

3

As minhas queixas são várias,
Desde nunca perceber
Obras extraordinárias
De tantos génios a haver!

4

Desde a grande Agustina,
Por tantos tão celebrada,
Mas com a qual não atina
Minha mente tão minguada,

5

Eu bem tento, porque quero,
A todo o custo entender
O talento vasto e fero
Que nela andava a ferver!

6

Mergulho na obra dela,
Decidido a sorver
Todo o génio que há nela,
Para dar e pra vender

7

Ela escreve, escreve, escreve,
Escreve sempre sem parar;
Nela nunca nada é breve,
Antes gosta de abundar.

8

Nunca pensa no que faz,
Que o pensar é só prós pobres.
De parar é incapaz,
Sem travões nos seus alfobres.

9

Se o génio é bem diferente
E mais forte que o pensar
E se este não mete o dente
Naquele abundante mar,

10

Que é a obra da Agustina,
Como hei de eu lá chegar,
Se a minha pequenina
Ferramenta de sondar

11

É somente a razão
Que o génio dela despreza,
Porque sonda à pai Adão
Quem a razão muito preza!

12

Mas a Agustina é só uma,
De tantos génios que abundam,
Neste país, onde, em suma,
Tantos génios vagabundam.

13

Há Gonçalos e Lourenços,
Há também Velhos da Costa,
Tudo génios tão imensos,
Fica a gente indisposta!

14

Alguns lançam a Llansol,
Bólido extra-terrestre,
Que, vindo de ao pé do sol,
Procura vida silvestre!

15

Escrevem por hieróglifos,
Que têm por deslumbrantes,
Tanto como os geóglifos,
Os Eduardos flamejantes!

16

O Gonçalo, tão fecundo,
Enche longas prateleiras,
Com seu génio, tão profundo,
De palavras varejeiras.

17

A Maria Velho da Costa
Gosta muito da linguagem,
Se esta só se encosta
Ao som que não tem mensagem.

18

São tantos, após Camões,
Nesta pátria bem amada,
Que se esgotam emoções
Nesta terra bem lavrada.

19
Junto deles, fico humilde,
Diminuído, pequeno:
Rimo humilde com Clotilde
E pequeno com cosseno!

22.12.2021 

Eugénio Lisboa, que ficou um pouco mais aliviado,

depois deste desabafo, mas não completamente!

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Viagem ao Destino Natural

O que se move está parado 
no centro do infinito, movendo-se.
Sai-me do corpo o esquecimento
e também a fascinação de tudo isto.
Manuel António Pina, Todas as Palavras, Poesia reunida

 
Terras de Trás-os-MontesO Destino Natural : 
Nove Passos nas Terras de Trás-os-Montes | Documentário

Um grande português


Um grande português
por Fernando Pessoa

"Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.

Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa.

Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Sr. Vigário, tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar. O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.». «Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.» O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.

Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos, negociantes de gado como ele, a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis. No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem.

Houve então a troca de outro olhar.

O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais para elas. O Vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho.

Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão. Ditava ele o recibo, disse, pois queria as cousas todas certas. E ditou o recibo — um recibo de bêbado, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano, e «estando nós a jantar» (e por ali fora com toda a prolixidade frouxa do bêbado...), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto de réis em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e daí a um tempo foi-se embora.

Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a primeira nota, o que ia a recebê-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez à segunda e à terceira... E os irmãos, olhando então verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar.

Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora inocente, estivesse perdido.

Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. «E se eu tivesse pago em notas de cem», rematou o Vigário, «nem eu estava tão bêbado que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens honrados, mas receberiam.» E, como era de justiça, foi mandado em paz.

O caso, porém, não pôde ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a história do «conto de réis do Manuel Vigário» passou, abreviada, para a imortalidade quotidiana, esquecida já da sua origem.

Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do estratagema exemplar. Por isso é com ternura que relembro o feito deste grande português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para os hábeis, como constou que o havia para os bons, ali lhe não deve ter faltado o acolhimento dos próprios grandes mestres da Realidade — nem um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso momentâneo de George Savile, Marquês de Halifax."

                                                             1926

Fernando Pessoa, in Ficção e Teatro.  (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986 

1ª publicação,  in Sol, nº1. Lisboa: 30-10-1926; 2ª publicação , in Notícias Ilustrado , 2ª série. Lisboa: 18-8-29, com o título “A Origem do Conto do Vigário” 

domingo, 19 de dezembro de 2021

Ao Domingo Há Música



Se a música tem tanta força na representação das lágrimas, é porque torna o silêncio sensível... Não nos levantamos em lágrimas porque é errado dizer que caímos em lágrimas: só podemos derreter em lágrimas...
Jean-Loup Charvet

Nesta época , escreve-se muito . O Natal permeia  e incentiva a escrita. Aparecem  lindos  textos  apelando ao que pode haver de melhor no coração dos homens. Desde poemas simples , frases soltas,  elaboradas reflexões a longas epístolas de bem-aventurança. Todos eles trazem mensagens que acabam por nos tocar. Estamos abertos à celebração, embora nem sempre seja o nascimento de uma criança que esteja a ser  festejado. Nascida há dois mil anos é ela o motor desta celebração. O Natal é assim a festa de toda a criança que se fez e fará Homem. Repetir, em cada ano, esse acontecimento é  a necessidade que todos nós encontrámos para dar forma à solidariedade que se perde ou negligencia durante o ano. Tomamos a família e fazemos dela o encontro  que foi, por vezes, adiado. Que Natal pode ser todos os dias é uma frase que se perde nas pregas das intenções. Basta olhar  as imagens que, dia a dia,  enchem  os écrans televisivos para encontrar a legenda exacta para esta verdade. Ferem e agridem, mas não deixam de se repetir.  E são tantas as imagens de crianças  de todas as idades . Perdidas em campos de refugiados ou em marcha por esse mundo fora. Sujas , desgrenhadas, famintas, perdidas, abandonadas  rasgam o coração , sem que a piedade do Natal as alcance. 
Não. Não pretendo aumentar a resma das lindas mensagens. Quero  apenas dar fôlego ao sonho:  Que este nosso mundo , que se muralha entre pandémicos vírus,  acorde e   renasça jubiloso  em  verdadeiro Natal.  Que não seja só a Música a derreter-nos em lágrimas.

A peça que se vai apresentar é um lindo apelo à paz e a um coração aberto.
Benedictus, do compositor galês Karl Jenkins, pela World Orchestra for Peace, com o violoncelista Valentino Worlitzsch e o World Choir for Peace, regidos pelo próprio Karl Jenkins. 
Benedictus  é o 12º movimento da  obra "O Homem Armado",  com o subtítulo "A Mass for Peace". "The Armed Man" é essencialmente uma peça anti-guerra,  escrita por Karl Jenkins,  em 1999 e originalmente dedicada às vítimas da crise do Kosovo.
A peça foi gravada  ao vivo  no Mercedes Benz Arena, Berlim, em 2 de Novembro de 2018. Produção de   Rondo Media.  The C Major BluRay/DVD available via.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Mar , ó Mar

Mar
Mar, circunferência sem par, 
Monumento da morte e da vida inextinguível , 
Macho e fêmea, sol e lua,
Templo do que é podre e infinitamente puro,
Êxtase horizontal!

Mar,
Nas manhãs muito calmas 
Passa por ti o fantasma
De todas as infâncias!
                    21.6.58
Alberto de Lacerda, in Oferenda, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Julho de 1984,  p 167

O MAR ENALTECEU O ROSA

Enalteceu--o na espuma. 
Na rebentação das ondas
a trupar na massa escura
dos rochedos , que dão conta 
do crepúsculo. Da funda 
consumação gloriosa
da tarde onde assenta a escuta.

Depois, o rosa da tarde 
foi decaindo, difuso. 
Começou a pratear-se
quando as luzes do crepúsculo
iam naufragando quase .
E sucumbiu ao surto 
de silêncio. Que nos abre
maior silêncio de estado.
Fernando Echevarría, in Lugar de Estudo, Edições Afrontamento, 2009, p 243

Aquário

Silente e impassível
o mar
navega sua beleza
em preguiçosas caudas
e barbatanas velozes,
ilumina-se em translúcidas medusas
e na cromática simetria das escamas.

Refrata a luz e a vida
no remanso submerso das águas,
em seus relicários de pérolas
e no balé itinerante dos cardumes.

Mar, ó mar...
escondeste teus íntimos mistérios
na pressão insuportável dos abismos
nessas paisagens indevassáveis da vida
onde transitam feições primordiais jamais iluminadas.

Abres, contudo, as pálpebras da aurora
e o sol emerge do teu ventre qual fornalha ardente
e na superfície das águas
ilumina tua face absoluta
nesta horizontal extensão do azul
nesta planície sulcada de quilhas e naufrágios
onde se agitam as caudas gigantescas das jubartes
e as asas serenas do albatroz.

Teus brancos litorais abraçam a Terra
desde sempre marejados pelo teu íntimo palpitar.
Tuas marés redesenham os cinturões de areia
e delimitam teu espaço inconquistável.
Os manguezais invadidos retratam teus domínios.
Contra teu furor levantam-se falésias
fiordes verticais e punhais de granito.
Edificas tua linha de recifes,
teus castelos de corais,
cultivas teus jardins de algas e sargaços
onde mandíbulas poderosas,
venenos e descargas fulminantes,
ditam teu código submerso.

Mar, ó mar
transparente beleza de flores e de frutos
território enigmático de vidas e silêncio
abismo onde flutuam os sobreviventes
sudário de todos os náufragos.

Mar azul
chamo-te água absoluta
porque absoluta é a tua sedução
a tua irresistível espuma
a mobilidade do teu ritmo
tua incessante sinfonia
teu eloqüente silêncio.

E contudo...
diante do etérico oceano...
diante dessas deslumbrantes ilhas estelares...
tu és apenas um úmido ponto no infinito
um aquoso respingo
minúsculo aquário
um minuto ondulante na eternidade
há bilhões de anos se espraiando
nessa gota salgada suspensa no universo.


Curitiba, março de 2004

Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora , 2007, São Paulo, Brasil,  pp. 30-32

Sobre a palavra Mar


Qual a origem da palavra Mar
por Marco Neves
Quem cresce à beira-mar nem sempre nota quão espantoso é o mar. Mas pensemos numa pessoa que cresce no interior sem nunca vir ao litoral. Está habituada a terra firme, a colinas ou montanhas, a rios serenos entre vales e florestas. Se, de repente, chegar à nossa terra, encontra uma paisagem inundada de água! Como se a torneira tivesse ficado aberta durante milhões de anos… Um dilúvio que nunca acabou. Vales, florestas, vulcões, animais — tudo debaixo de água.
Disse que o mar é espantoso. É espantoso à portuguesa — e à espanhola. À portuguesa, porque nos deixa de boca aberta. À espanhola, porque é terrível. Quem vive do mar sabe como se pode transformar numa horrorosa armadilha. Quem navegou ao longo dos séculos também sabia que podia morrer a qualquer momento. É assim o mar — mas, enfim, é assim a vida.
De vez em quando, tenho por hábito mergulhar na origem das palavras. Pois, esta semana, vou à procura da origem de «mar».
A nossa palavra vem, sem grandes surpresas, do latim «mare». A palavra latina deu vários frutos, mas com uma particularidade. «Mar» é palavra masculina em português, tem os dois géneros em castelhano e em catalão, é feminina em francês, é masculina em italiano e volta a ser feminina em romeno. Porquê esta oscilação? É simples: em latim, a palavra era do género neutro — com o desaparecimento deste, as várias línguas latinas tiveram de arrumar a palavra num dos géneros que restaram. Os espanhóis não chegaram a decidir-se…
A palavra latina tem primas! Em alemão, temos «Meer», uma das palavras para «mar», em paralelo a «See», que já tem uma origem diferente, paralela ao «sea» inglês. E, sim, o inglês tem «sea» para mar, mas também existe «mere», com a mesma origem que o «Meer» alemão e o «mar» português. «Mere», no entanto, significa ‘lago’ e é uma palavra bastante rara.
Há mais palavras irmãs — ou primas — do nosso mar. No irlandês, podemos chamar «muir» ao mar. No russo, temos «móre». No sânscrito, a palavra original deu origem a «maryādā», que significa ‘costa’ ou ‘limite’, num pequeno salto semântico.
Mas, afinal, de onde vieram as palavras «mar», «Meer», «móre»? Vieram todas da antiga palavra indo-europeia «*móri», que já significava ‘mar’. Quando olho para essa palavra — as coisas em que uma pessoa pensa… — só me lembro de «ó ‘môri, dá-me um beijinho!», dito à beira-mar.
Certamente que «*móri» terá vindo de palavras mais antigas, perdidas no tempo. Afinal — e agora deixo uma teoria que não é fácil de verificar, mas em que todos acreditaremos sem dificuldade — não haverá língua humana sem uma palavra para mar."
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Ideias que nem sequer estão erradas


Ideias que nem sequer estão erradas
por Eugénio Lisboa

A principal qualidade do estilo é a clareza.
Aristóteles

A clareza é a boa fé dos filósofos.

Vauvenargues

Falar obscuramente, qualquer um 

consegue; com clareza, raríssimos.

Galileu Galilei 

 

"O grande físico Wolfgang Pauli (1900 – 1958), que ganhou o Prémio Nobel da Física, em 1945, apadrinhado nada menos que por Einstein, era conhecido pela sua destemida frontalidade e ferina ironia. Ficou também conhecido por ter cunhado uma expressão que se tornou célebre: quando aspirantes a cientistas lhe propunham, para avaliação, teses estapafúrdias, sem pés nem cabeça, Pauli despachava-as, furiosamente, classificando-as de “not even wrong” (nem sequer erradas). Isto é, não tinham sequer dignidade para poderem ser consideradas erradas: não estavam certas nem erradas, porque não eram coisa nenhuma. É, provavelmente, a pior classificação que se pode dar a um trabalho qualquer: not even wrong.
Confesso que, com uma frequência inquietante, leio textos de escritores muito festejados, premiados, traduzidos, apaparicados, aos quais me apetece pôr o carimbo com o diagnóstico mortífero de Pauli; not even wrong. São textos que fazem parte de uma cultura que venera o obscuro, o opaco impenetrável, como valores insignes a promover. Como se o opaco e o obscuro fossem garantias de maturidade e profundidade. Como se por detrás daquelas ejaculações nevoentas, se escondessem tesouros apetecidos. O culto do arrevesado, do complicado, do “profundote” é, muito pelo contrário, um sintoma de aflitiva insegurança e imaturidade. É querer esconder uma total ausência de pensamento por detrás de um arrazoado pretensioso. Os verdadeiros pensadores não temem, antes procuram, a formulação mais simples, que desvele, sem mais embaraços, aquilo que descobriram. É a “boa fé dos filósofos”, de que falava o amável Vauvenargues, que Voltaire tanto admirava e estimava. Quem se aninha confortavelmente no obscuro, encontra-se inesperadamente parceiro do arbitrário e do atrabiliário. Passa-se o mesmo com os que, em vez do belo, nos servem o “bonito”. Já tenho respondido a quem me propõe um pensamento arrebicado e cheio de nevoeiro: “O que disse deve estar certo.” E, perante a perplexidade do meu interlocutor, esclareço: “Não percebi nada do que o Sr. disse e, na dúvida, é-se a favor do réu.”
Tudo isto me leva a uma velha convicção, na qual estou longe de me encontrar desacompanhado, de que seria, mais do que aconselhável, fundamental, que todos os cursos de letras incorporassem uma disciplina obrigatória, particularmente bem pensada e estruturada, de história da ciência. Sublinho: obrigatória e urgente. Talvez isto acabasse por incutir a muitos homens de letras algum respeito pelo asseado das ideias e da formulação delas. E também de respeito pelas palavras.
Até para a elaboração de metáforas se exige algum asseio, para se não cair no arbitrário quimicamente puro. Com uma desejada e suave passagem pela ciência, talvez se evitassem pérolas como estas, que desoladamente colho, hoje mesmo, num periódico lisboeta: 1) “Pões um animal no meio de um nevoeiro – que metade tapa, metade mostra – e o animal fica metade anjo, na metade que não se vê”; 2) “uma máquina de fumos na imaginação, lá dentro da cabeça, e a metáfora e a invenção surgem”; 3) “A máquina de fumos e de nevoeiro, como máquina de inventar, máquina de produzir metáforas por minuto quadrado”. Fico-me por aqui: Esta das “metáforas por minuto quadrado” é suficientemente ilustrativa do meu ponto de vista: uma pequena passagem pelo mundo da ciência não faz mal a ninguém."
Eugénio Lisboa, 15.12.2021