quarta-feira, 31 de julho de 2019

Hoje

"Só existem dois dias no ano em que nada pode ser feito. Um chama-se ontem e o outro chama-se amanhã, portanto hoje é o dia certo para amar, acreditar, fazer e principalmente viver." Dalai Lama

terça-feira, 30 de julho de 2019

Guernica


"Guernica":história, detalhes e desdobramentos da obra de Picasso
"O painel, em que estão simbolizados os horrores causados pelo bombardeio à vila de Guernica, tornou-se a obra mais importante de Picasso.
O painel retrata as acções militares das forças conduzidas pelo general Franco, em 26 de Abril de 1937, contra a população que habitava o território espanhol, principalmente a vila de Guernica, situada na região norte da Espanha, ocupada por cerca de 6 mil habitantes. Os ataques foram feitos pelos aviões da Luftwaffe (Força Aérea Alemã), vinculados a Franco. Os alemães usaram os ataques a Guernica como experiências para ataques posteriores contra os inimigos na Segunda Guerra Mundial.
Uma das imagens mais fortes produzidas a partir da
Guerra Civil  Espanhola (1936-1939) foi o painel "Guernica",
pintado por Pablo Picasso, em 1937
Alguns historiadores consideram que a escolha do ditador espanhol em bombardear Guernica foi um acto simbólico, pois essa vila estava localizada numa das províncias do País Basco e, em 1936, os bascos haviam assinado um tratado de autonomia com o Governo Republicano Espanhol, a quem Franco tinha declarado guerra.
O que Franco não esperava era uma repercussão internacional tão ampla sobre o facto. Na ocasião do bombardeio, estavam presentes na Espanha um grande número de correspondentes de guerra, jornalistas que cobriram o ataque no mesmo dia em que ele aconteceu.
Imediatamente a notícia se espalhou pelo mundo, e foi através dos jornais que Picasso, radicado na França nessa época, tomou conhecimento do facto. Picasso havia recebido um pedido do Governo Republicano Espanhol para produzir um quadro que comporia o pavilhão espanhol na Exposição Internacional de Paris de 1937 e, diante da tragédia, teve a ideia da elaboração da obra "Guernica".
Os detalhes da Obra:
"Guernica" foi produzido em menos de um mês. No painel, estão simbolizados os horrores causados pelo bombardeio. Na obra que veio a  tornar-se a mais importante de Picasso, o artista buscou fazer propaganda contra a insurreição franquista. O painel tem 3,49m de altura e 7,76 m de comprimento.
Picasso pintou a obra Guernica trinta anos após a sua primeira obra Cubista, Les demoiselles d’Avingnon. "Guernica" é considerada uma pintura cubista, sendo possível notar na obra as características do cubismo ao apresentar as figuras de forma desarmoniosa, subjectivas.
Segundo a historiadora Lilian Maria Martins de Aguiar, o observador vê no painel figuras que expressam aflição, dor, insegurança, sofrimento, como a mulher com a criança ao colo e o cavalo. As cores usadas por Picasso apresentam tons acinzentados. Também são usadas as cores preta e branca de maneira a remeter o pensamento de quem está diante da imagem à morte, ao horror, ao desumano, à guerra e à destruição.
Para a historiadora, os aspectos simbólicos da obra expressados pelas figuras do touro, da flor, da mão que segura uma espécie de lamparina dão a ideia da luta, da violência acontecida na vila de Guernica, representando concomitantemente o recomeço, a esperança de um povo massacrado pela ambição de outros.
No lado direito superior do painel "Guernica", há um homem de braços abertos, voltados para cima, num momento de desespero, como que para deter as bombas que caem do céu. Muitos pesquisadores acreditam que Picasso inspirou-se numa obra do ano de 1808 do também pintor espanhol Francisco Goya, o quadro “Os Fuzilamentos de 3 de Maio”, onde um homem que vai ser fuzilado estende os braços para os atiradores.
"Guernica" permaneceu muito tempo em Paris. Picasso pediu que o painel só fosse enviado  a Espanha quando o país novamente fosse uma democracia. Hoje, "Guernica" encontra-se no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, em Madrid.
Releituras de "Guernica":
"Guernica" tem inspirando releituras por outros artistas como a do brasileiro Alex Frechette, que, em 2014, trouxe Guernica para o Rio de Janeiro dos dias actuais: “ uma mãe é arrastada por uma viatura, as remoções são constantes, o número de desabrigados é alarmante, Amarildo desaparece (...)"
Outras releituras:
Grupo Art &Language - estilo Jackson Pollock (1980)
Thomas Zipp (2011)
Robert Longo (2008)
Gary Hume (1992)
Imagens: Internet Obvious. Colaboração de Rodrigo Corder

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Pôr sentimentos por palavras.

" Estou deitado na cama, em casa, a tentar pôr sentimentos por palavras. Por um lado ~e essa é a parte ligada ao passado -, o amor parece o vasto e súbito abrandar da apreensão de toda a vida. Mas ao mesmo tempo - e essa é a parte ligada ao presente e ao futuro - parece que os pulmões da minha alma se encheram de oxigénio puro. Só penso nisto quando estou sozinho, é claro. Quando estou com a Susan, não penso em como é amá-la; estou só com ela. E talvez o «estou com ela» seja impossível de dizer por outras palavras."
Julian Barnes, in  A Única História, Quetzal Editores, 2019,  p 103

domingo, 28 de julho de 2019

Ao Domingo Há Música

Nem sempre celebramos  o nosso património cultural. Portugal tem nomes maiores  a evocar. A música portuguesa  apresenta um acervo magnífico e variado.
Celebrar o património musical é sempre um acto de memória e de grande fruição. Destacamos, hoje, três grandes nomes que são expoentes de qualidade . Todos eles ocupam um lugar de destaque na história da Música Portuguesa. 
De forma aleatória, começamos por Luiz Goes, nome maior do Fado de Coimbra. Cantor e compositor está na galeria da intemporalidade.  
Nascido em 1933, em Coimbra, Luís Fernando de Sousa Pires de Goes licenciou-se em Medicina, tendo exercido a profissão de médico estomatologista em paralelo com a carreira artística.
Iniciou-se no fado por influência do tio paterno, Armando Goes, contemporâneo de Edmundo Bettencourt, António Menano, Lucas Junot, Paradela de Oliveira, Almeida d'Eça e Artur Paredes. Morreu  a 18 de Setembro de 2012. Era considerado a melhor voz e o melhor intérprete dos últimos 50 ou 60 anos do Fado de Coimbra.
O Fado de Coimbra na voz maior  de Luiz Goes,  em Homem só, meu irmão ,do  álbum "Canções do Mar e da Vida" (1969).
Homem só, meu irmão

Tu, a quem a vida pouco deu,
que deste o nada que foi teu
em gestos desmedidos...
Tu, a quem ninguém estendeu a mão
e mendigas o pão dos teus sentidos,
homem só, meu irmão!

Tu, que andas em busca da verdade
e só encontras falsidade
em cada sentimento,
inventa, inventa, amigo, uma canção
que dure para além deste momento,
homem só, meu irmão!

Tu, que nesta vida te perdeste
e nunca a mitos te vendeste
– dura solidão –,
faz dessa solidão teu chão sagrado,
agarra bem teu leme ou teu arado,
homem só, meu irmão! 
Letra e música de Luiz Goes.

                          
                         Sou filho da África colonial, de Coimbra e da Beira Baixa
                                                                 José Afonso, 1983

José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos (ZECA AFONSO) nasceu em Aveiro, a 2 de Agosto de 1929,  «na parte da cidade voltada para o realismo e para o mar e durante os seus  57 anos de vida foi perseguido pela nostalgia dessa luz difusa que o envolveu a si e à mãe no momento do parto.» Filho de um magistrado e de uma professora primária, a sua infância  reparte-se entre Aveiro, Angola, Moçambique, Belmonte e Coimbra, devido às sucessivas deslocações profissionais do pai.
 A sua vida de cantor começa enquanto estudante liceal , nos grupos das Serenatas de Coimbra. Em 1952, nos estúdios da Emissora Regional de Coimbra ( Emissora Nacional, hoje RDP), grava  pela primeira vez , então já aluno da Faculdade de Letras de Coimbra, para a etiqueta Molina, juntamente com Luis Goes e Fernando Rolim.»
Em 1960 ,  é editado o single Menino do Bairro  Negro que inclui Os vampiros, canção proibida pela censura e pela PIDE.  
A sua obra foi crescendo  e dele Portugal tem um diverso ,  vasto e precioso património. Produziu obras que se transformaram em Hinos de Esperança,  da utopia que sempre sonhou. Assim é Grândola , Vila Morena, canção do Álbum Cantigas de Maio, gravada em 1971, em Paris. "Este álbum marca um salto musical enorme na obra afonsina, cada vez mais distante das serenatas coimbrãs e só tem paralelo mais tarde, em 1983, com o álbum Como se fora seu filho, a última gravação totalmente cantada por José Afonso.
Em 1985 publica o derradeiro disco, «Galinhas do Mato», onde já só dá voz a dois dos temas. Os restantes têm interpretações de Janita Salomé, Helena Vieira, Luís Represas, Né Ladeiras e José Mário Branco. Morre, no hospital de Setúbal, na madrugada de 23 de Fevereiro de 1987."
José Afonso  em  Fui à beira do Mar , do álbum "Eu Vou Ser Como a Toupeira", 1972. Gravado nos Estúdios Celada, Madrid, de 6 a 13 de Novembro de 1972.
Captação de som – Paco Molina, António Olariaga, Pepe Fernandez, Juan Carlos Ramirez e Juan António Molina
Mistura – Paco Molina

Fui à beira do Mar

Fui à beira do mar
Ver o que lá havia;
Ouvi uma voz cantar
Que ao longe me dizia:

"Ó cantador alegre,
Que é da tua alegria?
Tens tanto para andar
E a noite está tão fria!"

Desde então a lavrar
No meu peito a Alegria;
Ouço alguém a bradar:
"Aproveita que é dia!"

Sentei-me a descansar
Enquanto amanhecia;
Entre o céu e o mar
Uma proa rompia.

Desde então a bater
No meu peito, em segredo,
Sinto uma voz dizer:
"Teima, teima sem medo!"

Desde então a lavrar
No meu peito a Alegria;
Ouço alguém a bradar:
"Aproveita que é dia!"
Letra e música: José Afonso
Amália da Piedade Rebordão Rodrigues nasceu em Lisboa, no dia 23 de Julho de 1920, e morreu em 6 de Outubro de 1999, estando sepultada no Panteão Nacional desde 8 de Julho de 2001.
Nos Arquivos da RTP lê-se o seguinte:  “Amália chora a cantar. Assim definiu José Galhardo no “Fado Amália”, com poema de sua autoria e música de Frederico Valério, aquela que tanta vez foi aclamada como a Voz de Portugal. Tudo ou quase tudo já foi provavelmente dito e escrito sobre a música de Amália Rodrigues, e o seu imenso repertório não é apenas um marco no património cultural português, é também e sobretudo uma parte integrante do nosso imaginário colectivo. Com uma carreira de mais de 50 anos celebrada em Portugal e em todo o mundo, iniciada em 1940 no palco do Teatro Maria Vitória, naturalmente Amália por muitas e diversas vezes marcaria presença na RTP, desde que em 1958 se estreou cantando, tímida, o fado corrido “Lá Porque tens Cinco Pedras”. Foi o momento inicial dum percurso comum que ontem como hoje, mesmo depois do seu desaparecimento em Outubro de 1999, continua e continuará a dar a conhecer melhor Amália, a mulher e a artista. "
Em 1957, foi lançado o LP "Amália no Olympia", o primeiro álbum de Amália Rodrigues editado em Portugal (o seu primeiro LP fora uma compilação editada em França, dois anos antes, pela Pathé-Marconi). Composto por gravações realizadas na famosa sala de concertos parisiense, "Amália no Olympia" contém 14 temas, entre os quais se contam alguns dos maiores clássicos da artista: "Uma Casa Portuguesa" (Reinaldo Ferreira / V. Matos Sequeira e Artur Fonseca), "Nem às Paredes Confesso" (Artur Ribeiro / Max - Ferrer Trindade), "Ai Mouraria" (Amadeu do Vale / Frederico Valério), "Perseguição" (Avelino de Sousa / Carlos da Maia), "Tudo Isto é Fado" (Aníbal Nazaré / Fernando Carvalho), "Fado Corrido" (Linhares Barbosa / Santos Moreira), "Barco Negro" (do filme 'Os Amantes do Tejo') (David Mourão Ferreira / Caco Velho - Piratini), "Coimbra" (José Galhardo / Raul Ferrão), "Sabe-se Lá" (Silva Tavares / Frederico Valério), "Tendinha" (José Galhardo / Raul Ferrão), "Lá Vai Lisboa" (Norberto de Araújo / Raul Ferrão), "Que Deus Me Perdoe" (Silva Tavares / Frederico Valério), "Lisboa Antiga" (José Galhardo - Amadeu do Vale / Raul Portela) e "Amália" (José Galhardo / Frederico Valério). Os acompanhadores foram Domingos Camarinha (guitarra portuguesa) e Santos Moreira (viola). 
Trata-se de um registo verdadeiramente histórico e que representou igualmente um marco importante na fulgurante carreira da nossa maior cantora. 
Amália Rodrigues, em "Barco Negro", uma versão inédita

Barco Negro
De manhã, que medo, que me achasses feia!
Acordei, tremendo, deitada n'areia
Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.

Vi depois, numa rocha, uma cruz,
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia, que não voltas:

São loucas! São loucas!

Eu sei, meu amor,
Que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor,
Me diz qu'estás sempre comigo

No vento que lança areia nos vidros;
Na água que canta, no fogo mortiço;
No calor do leito, nos bancos vazios;
Dentro do meu peito, estás sempre comigo
David Mourão-Ferreira

sábado, 27 de julho de 2019

Jorge de Sena – o “urso mal lambido”

Jorge de Sena
Jorge de Sena – o “urso mal lambido
Por Eugénio Lisboa
"No dia 5 de Junho de 1978, encontrava-me eu na embaixada de Portugal em Londres, onde acabara de chegar, para tomar posse, poucos dias antes, quando me deram a notícia do falecimento de Jorge de Sena, na véspera, em Santa Barbara, na Califórnia. Tive um choque e uma sensação aguda de uma grande injustiça acabada de cometer-se. Não tinha sabido que o escritor estava doente, mais, não imaginava facilmente Jorge de Sena doente. Com, naquela altura, apenas 58 anos, conhecera-o, pessoalmente, seis anos antes, em Lourenço Marques (Moçambique), onde ele fora para, a convite da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, proferir algumas conferências. Ficara profundamente impressionado com a vitalidade ágil do escritor, com a sua conversa aliciante, vigorosa e mesmo sedutora, com a fluência fácil com que debitava a sua nunca árida erudição. Jorge de Sena era uma verdadeira força da natureza e as forças da natureza não se extinguem assim.
Por essa altura, uma certa aura de glória começara já a bafejar o escritor. O autor de Fidelidade era dono, ainda relativamente novo, de uma obra imensa e profunda. Dissemos já algures que “uma obra grande e profunda é sempre o resultado de uma longa e nunca saciada obsessão.” E citámos, a propósito, um grande poeta francês – Valéry – que observara ser “a glória […] uma espécie de doença que nós contraímos por irmos para a cama com o nosso pensamento.”
Poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta, crítico, historiador e epistológrafo compulsivo, Sena entregara-se, sem se poupar, à construção de uma obra imponente. Nem sempre fora reconhecido na justa medida do seu valor e do seu empenho. Em Portugal, nunca recebera um prémio literário e, depois do 25 de Abril, nenhuma universidade portuguesa se dignara oferecer-lhe um lugar nem nenhuma instituição cultural lhe abrira as portas. Humilhado, ofendido, mas não resignado, claramente despeitado - e com razão - – a sua correspondência com os amigos eloquentemente registava a ferida que o roía. Urso mal lambido, como lhe chamou, certeiramente, Eduardo Lourenço, vingava-se da mesquinhez, produzindo uma obra vasta e de grande qualidade. Nisto, lembrava o romancista inglês D. H. Lawrence, que desabafava, nestes termos: “Eu gosto de escrever, quando me sinto despeitado; é como dar um bom espirro.” Fosse como fosse, mesmo sem prémios nem lugares institucionais, relutantemente, avaramente, a glória fora-se-lhe chegando: torna-se impossível negar a força da evidência. E a sua obra aí estava a impor-se como uma grande e incontornável evidência. E fora, precisamente nesse momento, quando o renitente reconhecimento da sua grandeza se começava a impor, que a morte viera, traiçoeiramente, procurá-lo. Não era justo e era profundamente doloroso para os seus próximos e amigos.
Jorge de Sena saíra de Portugal, em 1959, rumo ao Brasil, para o começo de um exílio que não ia ter fim. Não que ele assim o desejasse. Sonhou sempre regressar, se não a Portugal, ao menos, à Europa. Mas foi, com o tempo, aprendendo que não há nunca regresso possível. Num poema comovente do livro Peregrinatio ad loca infecta, de 1967  - já com oito anos de exílio distribuído pelo Brasil e Estados Unidos – pondera: “É que os lugares acabam. Ou ainda antes / de serem destruídos, as pessoas somem, / e não mais voltam onde parecia / que elas ou outras voltariam sempre / por toda a eternidade. Mas não voltam, / desviadas por razões ou por razão nenhuma.” Sabia, pois, que, mesmo que regressasse, um dia, já não regressaria àquilo que existira antes do exílio. Mas o belo poema de 1961, “Glosa de Guido Cavalcanti”, preconiza claramente a certeza de um nunca regressar: “Porque não espero de jamais voltar / à terra em que nasci (…) / […] / porque não espero e morrerei / no exílio sempre, mas fiel ao mundo./
Dezanove anos durará esse exílio, que só terminará com a sua morte, em 1978. Anos de dura e lúcida aprendizagem, como ele testemunhou numa admirável entrevista dada à revista O Tempo e o Modo, em 1968: “No meu caso pessoal, não creio que nove anos de vida no estrangeiro, iniciados quando eu ia fazer quarenta anos de idade, tivessem alterado fundamentalmente os meus interesses ou a minha «educação sociocultural». Nunca fui de entre Melgaço e Vila Real de Santo António, eu, um estrangeirado notório, exactamente como vários antecessores meus, dos grandes, na história literária portuguesa. Mas sem dúvida que a experiência de viver no Brasil (…), e a de viver nos Estados Unidos, lá entre brasileiros, aqui entre americanos (…), me abriu os olhos para algumas duras realidades do mundo contemporâneo, cuja visão raro encontro mesmo nas entrelinhas das publicações portuguesas. Aprendi, por exemplo, que a crueldade e a injustiça são terrivelmente universais, e que todas as formas de governo  são extremamente imperfeitas, e que a mesma mesquinhez e a mesma estupidez subsistem em toda a parte. Isto não me tornou, de modo algum, céptico e conformista, em relação às minhas ideias de sempre, mas deu-me uma sabedoria e uma amarga prudência nas generalizações e nas particularizações.”
Jorge de Sena, de quem se assinala este ano o centenário do nascimento, viveu sempre um exílio desassossegado, tirando o maior partido cultural possível dos países onde foi forçado a viver, mas sem afastar nunca o espírito de um Portugal que o obcecava, o irritava, mas com que profundamente se comprometia. Sempre sedento de um reconhecimento que entendia só avaramente lhe ser concedido e que, por isso, quase indiscretamente, reivindicava. Na já referida entrevista a O Tempo e o Modo, notava, com vigor e algum acinte: “Não sou [um dos meus mais seguros admiradores]. A única razão pela qual parece que eu proclamo a cada instante o meu talento é porque, até muito recentemente, se eu o não fizesse, ninguém o faria. E se eu sou agudamente sensível a todas as formas de injustiça, haveria de deixar que ela se exercesse impunemente comigo? Poucos escritores portugueses de relativo mérito deverão tão pouco à crítica como eu. De todos os sectores, o silêncio ou o amesquinhamento foram de regra durante quase trinta anos. Onde está a bibliografia a meu respeito durante trinta anos?”
Depois da sua morte, os inéditos e dispersos, que abundantemente deixara, incluindo a sua vasta correspondência, foram piedosamente recolhidos e publicados em livro pela sua viúva, Mécia de Sena, que a essa tarefa votou uma colossal energia e um amoroso cuidado. Além de lhe reeditar os livros que entretanto se tinham esgotado.
Jorge de Sena chamou um dia ao seu falecido amigo Adolfo Casais Monteiro “um cidadão do mundo em língua portuguesa”. Se alguém o foi – e pela medida grande – foi-o, indubitavelmente, Jorge de Sena. Não sei, até que ponto, a sua obra é hoje ainda lida e meditada com a atenção que merece. Numa entrevista dada à Vida Mundial, de 25.08.1972, Jorge de Sena dizia: “Não sei e acho que ninguém sabe exactamente «quem» lê as coisas em Portugal.” Eu não sei quem lê hoje o autor de O Físico Prodigioso e de Sinais de Fogo. Fala-se agora muito – tornou-se moda – no Panteão Nacional e, a propósito de cada morto mais ou menos notório, acena-se-lhe com o Panteão. Jorge de Sena não fugiu a esse aceno. Mas eu acho que o único Panteão adequado a um grande e vital escritor é a permanência dele no coração dos seus múltiplos leitores. É esse o Panteão que sinceramente desejo para o autor de Metamorfoses: que continue vivo e activo porque continua a ser lido e reeditado. Se possível, amado. "
Eugénio Lisboa, em  ensaio publicado no JL, nº 1272, de 3 a 16 de Julho de 2019                  

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Legenda imperfeita para uma tela

Se fosse a tua onda , meu barquinho encantado
levava-te comigo
para lá das vagas deste mar irado.
Partiria amigo
na crista da espuma , marinhando a teu  lado..

Se fosse  a tua vela, meu barquinho alado
à bolina iríamos
sem rota, sem tempo, sem horário concertado.
Ao vento pediríamos
o possante sopro de um fôlego enfunado.

Se fosses o meu Ulisses, meu barquinho  amado
navegaría com ardor
de porto em porto, pelo  largo oceano  serenado,
rogando com fervor
Thalassa!Thalassa, a ventura do mistério sonhado.
Maria José Vieira de Sousa, in "poemas imperfeitos"  

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Mentem e calam

A Implosão da Mentira

Fragmento 1
Mentiram-me.Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem.Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.

Fragmento 2

              
Evidente/mente a crer
               nos que me mentem
               uma flor nasceu em Hiroshima
               e em Auschwitz havia um circo
               permanente.

               Mentem. Mentem caricatural-
               mente.
               Mentem como a careca
               mente ao pente,
               mentem como a dentadura
               mente ao dente,
               mentem como a carroça
               à besta em frente,
               mentem como a doença
               ao doente,
               mentem clara/mente
               como o espelho transparente.
               Mentem deslavadamente,
               como nenhuma lavadeira mente
               ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
               com a cara limpa e nas mãos
               o sangue quente. Mentem
               ardente/mente como um doente
               em seus instantes de febre.Mentem
               fabulosa/mente como o caçador que quer passar
               gato por lebre.E nessa trilha de mentiras
               a caça é que caça o caçador
               com a armadilha.
               E assim cada qual
               mente industrial?mente,
               mente partidária?mente,
               mente incivil?mente,
               mente tropical?mente,
               mente incontinente?mente,
               mente hereditária?mente,
               mente, mente, mente.
               E de tanto mentir tão brava/mente
               constroem um país
               de mentira
                                       —diária/mente.

Fragmento 3

Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem mente.
mas o tribunal que o julga
herege/mente.
Mentem como se Colombo partindo
do Ocidente para o Oriente
udesse descobrir de mentira
um continente.

Mentem desde Cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso, iludindo a corrente
em curso, transformando a história do país
num acidente de percurso.

Fragmento 4

               Tanta mentira assim industriada
               me faz partir para o deserto
               penitente/mente, ou me exilar
               com Mozart musical/mente em harpas
               e oboés, como um solista vegetal
               que absorve a vida indiferente.

               Penso nos animais que nunca mentem.
               mesmo se têm um caçador à sua frente.
               Penso nos pássaros
               cuja verdade do canto nos toca
               matinalmente.
               Penso nas flores
               cuja verdade das cores escorre no mel
               silvestremente.

               Penso no sol que morre diariamente
               jorrando luz, embora
               tenha a noite pela frente.

Fragmento 5

Página branca onde escrevo. Único espaço
de verdade que me resta. Onde transcrevo
o arroubo, a esperança, e onde tarde
ou cedo deposito meu espanto e medo.
Para tanta mentira só mesmo um poema
explosivo-conotativo
onde o advérbio e o adjetivo não mentem
o substantivo
e a rima rebenta a frase
uma explosão da verdade.

E a mentira repulsiva
se não explode pra fora
 pra dentro explode
implosiva.

Affonso Romano de Sant’Anna,in 
 "Poesia Reunida" - L&PM,1999, vol.2 

"Affonso Romano de Sant'Anna é poeta e cronista mineiro, radicado há mais de 50 anos no Rio de Janeiro. Nas décadas de 1950 e 1960 participou de movimentos de vanguarda poética. Em 1961 diplomou-se em Letras Neolatinas, na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UMG, actual Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.
Leccionou na Califórnia (Universidade de Los Angeles - UCLA), e em 1968 participou do Programa Internacional de Escritores da Universidade de IOWA, que agrupou 40 escritores de todo o mundo.
Doutorou-se pela Universidade Federal de Minas Gerais e, um ano depois, montou um curso de pós-graduação em literatura brasileira na PUC do Rio de Janeiro. Foi Director do Departamento de Letras e Artes da PUC-RJ, de 1973 a 1976, realizando então a "Expoesia", série de encontros nacionais de literatura.
Ministrou cursos na Alemanha (Universidade de Colónia), Estados Unidos (Universidade do Texas, UCLA), Dinamarca (Universidade de Aarhus), Portugal (Universidade Nova) e França (Universidade de Aix-en-Provence).
Na tese de doutoramento, abordou uma análise da poética de Carlos Drummond de Andrade, com o título Drummond, um gauche no tempo, em que faz uma análise do conceito de gauche ao longo de sua obra literária.Durante os anos de 1990-1996 foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional, onde desenvolveu grandes acções de incentivo à leitura, como o Sistema Nacional de Bibliotecas.
Foi cronista no Jornal do Brasil (1984-1988) e do jornal O Globo até 2005. Actualmente escreve para os jornais Estado de Minas e Correio Braziliense.
É autor de diversos livros como Que país é este? e outros poemas, O Canibalismo amoroso, Politica e Paixão, Mistérios Gozosos, Como se faz literatura, O lado esquerdo do meu peito, A mulher madura, Catedral de Colônia, Poesia reunida e muitos outros."

quarta-feira, 24 de julho de 2019

De Piazolla


De PiazzollaGuitarra, Bandoneón y Orquesta de Cuerdas. Alondra de la Parra dirige a Orchestre de París,  com  Richard Galliano, no Bandoneón e Yamandu Costa, na Guitarra . A direcção musical é de  Paavo Järvi e o video de Jean-Pierre Loisil.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Os Muros que crescem

Aumento do número de barreiras em todo o mundo analisado em livro
"O muro fronteiriço entre os Estados Unidos e o México é um dos exemplos que o jornalista Tim Marshall aborda no livro 'A Era dos Muros', que faz uma síntese sobre estas divisões territoriais que têm aumentado neste século.
Por oposição à "queda" do Muro de Berlim, em 1989, o autor destaca que o mundo vive "uma mentalidade de fortaleza" devido a vários factores como a migração provocada por guerras, alterações climáticas ou degradação económica, religião, perseguições étnicas ou controlos efectivo dos regimes totalitários.
Para o jornalista, há uma tendência para se "ouvir bastante" acerca do muro de Israel, do muro fronteiriço entre os Estados Unidos e o México e em alguns pontos da Europa como na Hungria mas "aquilo que as pessoas não se apercebem é que estão a ser construídos muros fronteiriços um pouco por toda a parte".
De acordo com o levantamento publicado no livro, pelo menos 65 países, mais de um terço dos Estados-nação do mundo, construíram barreiras ao longo das fronteiras sendo que metade das que foram erguidas desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) surgiram entre o ano 2000 e a actualidade.
No caso da República Popular da China, o autor destaca não apenas o controlo fronteiriço entre as províncias internas, as regiões administrativas especiais e os limites terrestres com os países vizinhos, mas também a grande barreira imposta pelo Estado ao uso da internet.
"Xi Jinping é o primeiro líder chinês a chegar ao poder completamente ciente do potencial da internet. Desde que assumiu o cargo em 2013, supervisionou pessoalmente todas as estratégias cibernéticas da China, internas e externas", refere o autor destacando também o papel de Lu Wei, que "subiu a pulso" dentro da agência de notícias Xinhua (Nova China).
"Foi Lu Wei que disse que o seu país tinha cibergovernança com características chinesas, fazendo ecoar a frase de Deng Xiao Ping: 'socialismo com características chinesas", escreve referindo-se ao actual vice-director do Departamento de Publicidade do Partido Comunista Chinês.
Na Europa, Tim Marshall analisa a questão das migrações e as novas divisões que surgiram na Hungria, país liderado pelo nacionalista conservador Viktor Orbán, destacando igualmente a questão relacionada com a fronteira de Suawalki, no enclave russo de Kaliningrado: uma faixa de terra com 102 quilómetros de largura em território polaco, que liga o enclave à Bielorrússia, Estado aliado de Moscovo.
Os militares russos têm permissão para transitar pela Lituânia, na parte que fica ao lado do corredor, a fim de abastecerem as bases e na eventualidade de hostilidades, Moscovo pode fechar facilmente o fosso, cortando assim completamente a ligação entre os Estados bálticos e o resto dos aliados da NATO.
"A situação é complicada pelo facto de a área de Suawalki pertencer à Lituânia e persistirem tensões entre a Polónia e a Lituânia. No entanto, é a ameaça vista na Rússia que explica o porquê de se estar a tornar uma das áreas fronteiriças mais perigosas e fortificadas da Europa", considera o autor do livro.
Por outro lado, refere a crise migratória é o principal motivo para a Europa ter actualmente quase a mesma extensão de barreiras físicas ao longo de fronteiras nacionais que tinha durante a Guerra Fria.
O longo capítulo sobre o Reino Unido analisa a questão do "Brexit" e da possibilidade paradoxal de uma nova fronteira terrestre entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, abolida no tratado de paz.
Segundo o autor, aqueles que votaram no referendo de Junho de 2016 a favor da saída do Reino Unido da União Europeia são de todos os ramos profissionais, mas muitos, escreve Tim Marshall, provinham das regiões mais pobres de Inglaterra e do País de Gales, "antigas zonas da classe trabalhadora, reflectindo a divisão clássica entre os ricos e os pobres.
"O nosso pior pesadelo será um futuro em que nos refugiamos nos nossos vários enclaves", acrescenta Tim Marshall sobre o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte.
O livro analisa a questão fronteiriça entre o México e os Estados Unidos recordando os aspectos históricos da fronteira realçando que, até à independência mexicana em 1821 , o Texas era território espanhol onde se calcula viviam na altura apenas cinco mil cidadãos norte-americanos.
No Médio Oriente são estudadas as divisões entre Israel e a Palestina além das fronteiras entre o Iraque e o Irão, a Arábia Saudita e o Irão; os limites fortificados no subcontinente indiano, referindo os aspectos que levaram à construção da sofisticada cerca que divide o Bangladesh e a Birmânia depois da crise do povo rhoyngia.
O Livro 'A Era dos Muros' de Tim Marshall (Edições Saída de Emergência, 287), inclui mapas e fotografias e foi editado este mês em Portugal." Lusa, em 22/07/19 11:51 
Sobre Tim Marshall 
Considerado uma autoridade em Relações Internacionais tem  mais de vinte e cinco anos de experiência jornalística. Foi editor de Diplomacia na Sky News, tendo trabalhado anteriormente na BBC.
Como jornalista, esteve presente em mais de quarenta países e cobriu os conflitos na Croácia, Bósnia, Macedónia, Kosovo, Afeganistão, Iraque, Líbano, Síria e Israel. Escreveu para o The Times, The Guardian, The Independent, Daily Telegraph e The Sunday Times, e o seu blogue Foreign Matters esteve na lista dos escolhidos para o Orwell Prize de 2010. É o fundador e editor de Assuntos Internos do sítio web TheWhatandtheWhy.com. 

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Só eu e as ondas

Aquele Domingo
por Dulce Maria Cardoso
"Quatro vezes na minha vida, escapei por um triz a esse acerto. A primeira vez foi nesse domingo e o tropa que me salvou recebeu uma medalha pelo feito. Eu tinha, então, oito anos. Na vez seguinte tinha onze, depois quinze e depois vinte e três. A partir daí, a morte pareceu desinteressar-se de mim, como se o seu único propósito fosse levar o meu corpo jovem
Parece impossível que ninguém tenha fixado a data. Seria um domingo. Nunca íamos à praia nos outros dias da semana. Eu já usava biquíni, apesar da barriga arredondada de criança e de nada haver ainda no meu peito para tapar. Aquelas duas peças com flores encarnadas e azuis eram a prova inequívoca de que eu já era crescida. Tinha mais orgulho nelas do que em qualquer outra coisa.
Naquele domingo tudo se terá passado como sempre. Terá havido a mesma agitação logo de manhã, a minha mãe, na cozinha, a preparar as sandes, a cortar fatias de bolo de ananás que embrulhava em guardanapos de pano com um nó, o meu pai, no quintal, a partir o gelo comprado na bomba de gasolina do Sr. Inácio, para encher a geleira azul e refrescar a Mission maçã da minha mãe, as cervejas Cucas que ele iria beber e as Crush de morango com que a minha irmã e eu pintávamos os lábios de carmim. Acabados os preparativos, a minha mãe terá estendido as toalhas de praia nos bancos do Mazda para que a napa preta, a escaldar, não nos queimasse. A minha irmã reclamava sempre de qualquer coisa e mantinha-se afastada de mim, entregue à zanga constante que a nossa diferença de idade exigia. Já na praia, o creme Nivea transformava-me num palhacito de nariz branco, o sol escaldava-me os ombros e tornava bamba a linha do horizonte, a lonjura de areia pouco me atrasava a corrida para o mar e a minha mãe dizia, Parece que esta miúda nasceu com guelras, só está bem dentro da água.
Quando alguém que amamos nos morre, não esquecemos essa data. As outras datas, aquelas em que eles sobrevivem, aquelas em que nós próprios sobrevivemos, perdem-se facilmente. Mesmo que a morte chegue tão perto como naquele domingo. É natural que assim seja: sobrevivemos em cada dia; em cada dia escapamos à morte, sem darmos conta disso; ser mortal pode querer dizer várias coisas, mas uma delas é a certeza de, sem darmos conta disso, cruzarmo-nos a cada instante com a possibilidade de morrermos. Até que o tempo, ou outra coisa qualquer, nos estraga irremediavelmente o corpo ou um acidente fatal se acerta no espaço e no tempo connosco. Quatro vezes na minha vida, escapei por um triz a esse acerto. A primeira vez foi nesse domingo e o tropa que me salvou recebeu uma medalha pelo feito. Eu tinha, então, oito anos. Na vez seguinte tinha onze, depois quinze e depois vinte e três. A partir daí, a morte pareceu desinteressar-se de mim, como se o seu único propósito fosse levar o meu corpo jovem.
Os meus pais acabavam de almoçar com os meus tios, no restaurante da praia. Os meus primos e a minha irmã jogavam às cartas no enorme areal, mais abaixo, protegidos pelos chapéus de sol. Este desdobramento familiar permitiu-me desrespeitar a proibição de entrar na água durante as duas horas da sagrada digestão. Disse aos meus pais que estava com a minha irmã, à minha irmã que estava com os meus pais, e avancei confiante para o mar. Sendo a mais nova da família, não tinha com quem me entreter e tornava-se um suplício estar mais do que cinco minutos fora de água. Ainda que não soubesse nadar.
Não havia ninguém por perto. Só eu e as ondas. Eu e o susto bom dos tombos que dava, batia no fundo, enrolada por uma onda, e logo o meu corpo se guindava à superfície, para ser levado pela onda seguinte para terra, corria de volta ao mar, atirava-me à espuma que me salgava a boca e fazia arder os olhos, o meu corpo leve, tão leve, dentro do biquíni de flores encarnadas e azuis, um corpo-bóia que vinha sempre à tona. Até que um remoinho me puxou para baixo e me levou para longe. Perdido o pé, nunca mais o ganhei. Esbracejei, esperneei, mas os movimentos empurravam-me, agora, para o fundo, repentinamente transformada numa âncora estranha presa a nada. Ou a quase nada. Precisamos de tempo para nos prendermos às coisas e à própria vida e naquele domingo eu ainda tinha vivido tão pouco. Não sabia bem o que era morrer, mas percebi que ia morrer. Morrer era o maior castigo que nos podiam dar e aquela minha aflição significava que, ao desobedecer aos meus pais, incorrera nele. Morrer era também uma coisa perigosa, talvez a mais perigosa que existia. Era, pelo menos, não voltar. Meses antes, a Isabelinha, minha colega de turma, não voltara das férias de Natal. Morreu num acidente de carro ao regressar de Nova Lisboa, disse-nos a professora. A carteira da Isabelinha, solenemente vazia para sempre, explicara-me melhor a morte do que as advertências dos meus pais, as conversas dos miúdos mais velhos, o velório da avó dos meus primos, melhor mesmo do que os ensinamentos da catequese acerca do paraíso, do inferno e do purgatório. Naquele domingo eu não ia voltar, não tinha como voltar. Ninguém ainda tinha dado sequer pela minha falta. Aprendi, assim, o outro lado da morte, o que é morrer para quem morre. Apesar de estar cada vez mais longe, conseguia distinguir com inexplicável nitidez a minha irmã e os meus primos debaixo dos chapéus de sol e, ainda mais além, os meus pais e os meus tios, no restaurante da praia. Assistia à minha vida sem mim. Às vezes, as reviravoltas que continuava a dar apontavam-me o lado oposto, uma tranquila extensão azul brilhante, a perder de vista, para onde o sol se começava a encaminhar.
Ao entrar-me pela boca e pelo nariz, a água escangalhava-me a respiração, mas não tardei a sentir-me pertença dela, como dois líquidos que se misturam. Tive pena de nunca mais estar com os meus pais e irmã, de nunca mais subir às árvores, jogar Monopólio, comer garibaldis na pastelaria Riviera, mas com tão poucos anos vividos de que ter saudades e tão poucos outros, imaginados, à minha espera, eu era quase só o presente, não custava deixar-me ir.
Antes de ter caído no breu de que ressuscitei na areia a vomitar golfadas de água salgada, tive medo do tropa que me salvou. Assustei-me ao perceber que qualquer coisa nadava veloz na minha direcção. Talvez o meu corpo esteja menos preparado para o desconhecido do que para a morte. Talvez a morte não seja estranha ao meu corpo."
Dulce Maria Cardoso , em Crónica publicada na VISÃO 1370 de 6 de Junho.