Dois escritores no quarto andar
por Rubem Braga
"A última crônica de meu livro
Um pé de milho é sobre a rue Hamelin, de Paris, “onde morreu Proust”, faço
notar doutamente, e onde vivi eu. Ao escrever aquela crônica eu ouvira cantar o
galo, mas não sabia onde. Digo ali que “onde Proust morreu vive hoje um
sindicato”. Era o que eu pensava na ocasião.
Eu vivia no quarto andar do número
44 e no segundo habitava meu amigo, o escritor gaúcho dom Carlos de Reverbel.
Juntos fomos procurar o tal número onde morreu Proust e demos com o tal
sindicato. Mas acontece que procurávamos um número errado. O verdadeiro —
descobrimos depois — era o nosso 44 mesmo…
Não quero fazer pouco de dom
Carlos de Reverbel, mas eu sou um proustiano mais íntimo do que ele. É verdade
que meus inimigos assoalham que eu jamais li, no duro mesmo, todos aqueles
volumes, embora, em conversas de salão eu seja capaz de discretear sobre Swann,
descrever Combray ou Balbec, falar de Albertina ou da senhora duquesa de
Guermantes. “O Braga tem as lantejoulas, mas não sabe as coisas” — murmuram os
invejosos.
Pois que se mordam de inveja:
Proust morreu exatamente no apartamento do quarto andar, de número 44, onde eu
vivi. Dom Carlos morava, eu já disse, no segundo; pode alegar a seu favor que
várias vezes foi ao quarto me visitar, o que o classifica, sem dúvida alguma,
como o segundo proustiano do Brasil.
Léon Pierre-Quint conta que Marcel
Proust alugou todo o quarto andar do edifício, que então devia ser novo; ali
morreu em 1922, ano em que pela primeira vez eu vinha ao Rio de Janeiro,
vestido de marinheiro do Encouraçado S. Paulo, trazido pela minha irmã para ver
a Exposição do Centenário. Eu tinha nove anos de idade, nunca ouvira falar de
Proust e estava longe de supor que 25 anos depois iria dormir na cama em que
ele morria aquele ano. Mais pobre do que Marcel, aluguei apenas o grande quarto
de frente com uma entradinha e um banheiro, o que me custava 6 mil francos em
1947; não era caro, levando-se em conta que nesse tempo eu era casado.
Conta Leon Pierre-Quint que Proust
escolheu um quarto muito frio (não diz qual) temendo que a calefação central
fizesse mal à sua asma. Não posso afirmar, mas devia ser o meu quarto; era
friíssimo. Imagino quantas vezes ele não se quedou, como eu, a olhar a rua lá
em baixo, pela vidraça encardida, a esfregar as mãos de frio. Ah, bem que me
parecia suspeita aquela velha cama, bem que notei certos estremecimentos nas
cortinas e pressenti, no tapete desbotado, o rasto de antigos pés que o pisaram
em noites de insônia, e vagas nódoas de remédio. Posso informar com a maior
segurança que, pelo menos nos últimos anos de sua vida, Proust não tomava banho
de chuveiro. Não havia chuveiro na casa. Encontrei uma banheira com manchas de
sujos imemoriáveis; mandei lavá-la, esfregá-la, flambá-la com álcool, mas nem
assim me animei a tomar um banho nela; preferi comprar um chuveirinho de
borracha que adaptamos à pia. Eu não podia adivinhar que era a banheira de
Proust…
Às vezes, pela madrugada — conta o
biógrafo — Proust despachava Odilon em um táxi para procurar algum amigo que
viesse conversar com ele. Imagino-o perfeitamente à espera, escutando o ruído
agônico do pequeno elevador que, no quarto andar, para perigosamente entre dois
degraus da escada, uma velha escada sempre às escuras em que os passos reboam
absurdamente alto. O amigo o encontrava na cama, com um lenço no pescoço, todo
vestido sob os cobertores, com luvas de algodão, vários pares de meias e o
plastron branco sobre a camisa amarrotada, no quarto fechado cheirando a
remédios, a fumigações, a Proust. Eu positivamente ainda recolhi ali um pouco
desse cheiro, dentro do qual foi escrito o último volume de Sodoma e Gomorra;
homem bárbaro de um país semibárbaro, me lembro de que muitas vezes combati
esse cheiro abrindo de par em par as portas que dão para a sacada e a que dá
para o corredor, formando corrente de ar para grande pânico da arrumadeira. Ah,
se eu soubesse aproveitar bem aquele cheiro, que coisas sutis não haveria
escrito no lugar das croniquinhas triviais que eu mandava para O Globo!
Proust cochilava três dias à custa
de veronal, depois ficava três dias desperto à custa de cafeína, falando de
literatura, de pintura (esses jovens: Giraudoux, Picasso…), recitando Anatole
ou Beaudelaire, discutindo finanças e mundanismo, falando em mandar vir seus
livros, seus móveis, suas coisas, o que nunca chegou a fazer.
Também tive minhas noites de
insônia na rue Hamelin; não terá ficado dentro de mim um pouco da angústia
proustiana? Seria distintíssimo, mas receio que não; três copos de Beaujolais
me punham facilmente em boa forma.
De qualquer modo, os jovens
intelectuais que quiserem escrever sobre Proust devem me consultar para “fazer
ambiente”. Posso, por exemplo, descrever o cubículo em que a concierge lá em baixo
(uma velha, positivamente a mesma da era proustiana) está sempre fazendo
contas, passando roupa a ferro ou espichando o nariz para ver quem entra,
quando não atende ao telefone com sua voz chorosa:
– Passy, soixante-et-un deux fois…
Tomem nota, rapazes: Passy 61-61; é o antigo telefone
do Proust e do Braga."
Rubem Braga, in Ai de ti, Copacabana , Global Editora, São Paulo ,BrasilRubem Braga |
AUTOR E OBRA
"Rubem Braga (1913-1990) foi um escritor e jornalista que viajou e viveu em diferentes lugares do
Brasil e do mundo. Além disso, entre 1961 e 1963, foi embaixador do Brasil em Marrocos. Como
escritor, lançou seu primeiro livro de crônicas, O Conde e o Passarinho, em 1936, seguido por
diversos outros, e escreveu inúmeras crônicas que foram publicadas em diferentes jornais e
revistas.
Sobre a relevância como cronista, Miguel Sanches Neto, escritor e professor de literatura,
explica: "As crônicas de Machado e de boa parte dos escritores do século XIX tinham um tom seco,
quase jornalístico e eram cheias de referências históricas, próximas do gênero que hoje
conhecemos como jornalismo literário. Rubem Braga conferiu à crônica o lirismo, a poesia e a
leveza que antes não existiam". Assim, além de ser uma referência, pode ser considerado um
precursor do desenvolvimento da crônica no Brasil, estabelecendo parâmetros que, até hoje,
exercem influência no modo como esse gênero é pensado e feito.
Ai de Ti, Copacabana! é uma seleção, feita pelo próprio autor, de crônicas escritas de abril de 1955
a fevereiro de 1960. São textos que trazem características como fluidez, brevidade e oralidade, e
abordam uma variedade de temas como amores, tempo, morte, viagens, encontros e desencontros,
sendo interessante notar que a leveza da linguagem utilizada pelo autor muitas vezes contrasta
com a forte carga emocional, poética e subjetiva que essas crônicas carregam, fazendo o leitor se
emocionar e ser tocado diante de situações corriqueiras como um encontro com velhos amigos ou a
observação do sol que entra pela janela."
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