DE LISBOA AO CORVO
por Raúl Brandão
16 de Junho
"Na luz matutina e fria das quatro horas tenho diante de mim um espectáculo único, quatro ilhas saindo do mar ao mesmo tempo – a Graciosa dum verde muito
tenro acabando dum lado e do outro em penhascos decorativos; a Terceira muito
ao longe quase desvanecida; e a meu lado, por trás do biombo violeta de S.
Jorge, que se estende ao comprido nas águas, o cone do Pico aguçado até ao céu,
transparente como se fosse de cristal. Isto frio, nítido e ao mesmo tempo
irreal, num céu de esmalte onde se destacam a buril as linhas regulares do
Pico, com uma nuvenzinha quase pousada na extremidade. É só num ponto e passa
num instante, porque o navio não pára – é no instante em que o Pico se revela
erguido até ao céu e as manchas violetas das ilhas têm a cor passada da nuvem
que vai desfazer-se – enquanto a Graciosa ali perto se mostra toda verde.
Horizonte largo, mar e panorama à luz da madrugada. A limpidez da atmosfera mantém-se
apenas segundos: ao nascente mexe-se já, dotada duma vida extraordinária, uma
grande nuvem esponjosa e plúmbea, doirada nos bordos. Em aparecendo o Sol, as
névoas começam a sua missão agitada.
É um momento – é só um momento de transparência e serenidade na primeira luz matutina que toca o céu e hesita. Esta luz gelada de sonho dura um segundo:
amontoam-se logo farrapos sobre a Terceira, perdida ao longe...
Com o tempo que passa e a marcha do navio, deslocam-se as ilhas, aproximam-se ou afastam-se as falésias. Digo adeus para sempre à Graciosa – grande plaino
entre dois montes redondos com a povoação branca no meio. Já S. Jorge toma à
minha vista deslumbrada outra posição e relevo. Esta ilha esguia, que parece um
grande bicho à tona de água, mostra-me no focinho penedos aguçados como dentes.
Dá-lhe agora o sol.
Mas eu já sei que a luz que convém ao arquipélago não é esta. O sol é pior que
a sombra. Os cabos metidos pelo mar dentro tornam-se agressivos, quase negros e
mais duros... São dez horas: uma nuvem branca e esguia cortou o Pico pelo meio
e o cone sai da nuvem suspenso no ar por milagre. Já se distinguem os montes do
Faial envoltos em névoa como algodão em rama. Navegamos perto da muralha de S.
Jorge, cortada a pique sobre o mar. Alguns paredões esboroam-se. No alto,
campinhos muito verdes. À medida que nos aproximamos, a temerosa falésia parece
maior e mais escura, e, logo que dobramos o cabo negro e dramático desta ilha,
todo o Pico emerge inteiramente azul do mar esverdeado, tendo à direita o Faial
dum azul quase violeta. E é entre estas manchas desmaiadas que torneamos o cabo
a prumo, rasgado de escórias cinzentas, cortado de chapadas altas e sinistras,
como se a ilha .tivesse bruscamente derrocado.
Mais montes abruptos tombados para o lado; uma elevação negra e vermelha com estrias ferruginosas, onde palpita ainda a convulsão vulcânica e se sente a
acção constante das águas – e deparam-se-me as Velas ao fundo da temerosa ribanceira.
O S. Miguel fundeia, e o negrume das rochas desdobra-se no mar em negrume, onde
a tinta azul quer entranhar-se e não pode: fica negra, reflectindo a falésia
toda negra. É um panorama do princípio do mundo, dum mundo desolado de pedra e
mar. Lá no alto o nevoeiro estendido derrete-se, apegado às rochas, e quando
nas afastamos desvanece-se o verde dos grandes montes da ilha, tornam-se mais
disformes as sombras que viajam sobre a terra, e esta costa áspera e brutal
pouco e pouco empalidece, enquanto no Pico um ou outro risco mais nítido
sobressai no violeta. Distingo agora perfeitamente os moinhos afadigados e os
remendos das culturas: no meio da ilha, o pico, envolto no seu manto cinzento,
assume a majestade do monte onde Deus falou a Moisés. Arrasta-se pela terra uma
nuvem pegajosa que a engrandece e deforma. Ao lado, a sucessão de colinas
azuladas do Faial vai-se tornando mais nítida. Estas grandes rochas que mudam de
sítio e de cor fundem-se no azul, enquanto outras se aproximam e avolumam; o espectáculo
imenso que se desenrola diante de meus olhos atónitos dá-me a impressão de que
as ilhas nascem do mar e se vão formando à nossa vista pela mão do criador. É com
febre que assisto à geração do panorama largo e renovado. De pé, à proa do
barco, vou aportando a novas ilhas que emergem das águas, saídas da madre a
escorrer tinta. Passamos pelos dois penedos avermelhados, entre o Pico e o
Faial, que está a dois passos. Um grande morro verde, colinas dum verde tenro
ao fundo e uma fiada de casinhas olhando todas para mim. Outro morro fecha a
baia em semicírculo. Ponham sobre isto um céu baixo e uma humidade constante.
Chove. Mas não é preciso chover: a nuvem esponjosa desce, envolve, impregna e
dissolve. Até por dentro os seres e as coisas devem criar bolor.
A noite é irreal, a noite azulada dentro do porto, encerrado em chapadas de negrume com farrapos agitados. Dum lado aquela escuridão magnética cujo desconhecido me atrai – manchas sobrepostas de colinas, que se fundem num
borrão imenso, mais escuro à medida que as horas desfalecem. Ao fundo, do outro lado
do canal, destaca-se na atmosfera esbranquiçada o triângulo imenso do Pico, que
cada vez se me afigura mais solitário e maior, como uma gigantesca figura de
guarda ao Atlântico. A larga estrada do luar escorre, movendo-se num jorro de folhetas
prateadas, que se sucedem e agitam até ao costado do navio. De quando em quando
um chuveiro cai, numa profusão de joias. Ao longe ergue-se a vaga – todo o cume
cintila – desfaz-se a vaga ao pé de mim em riachos de luar, que borbulham e se
derretem por todos os lados na grande estrada de luar. Sucede-lhe e sobe logo
outra vaga, sombria e enorme – e já a crista iluminada ascende, cintilando de
pedrarias – para redemoinhar em luz, para se desfazer em luz. Só no horizonte
aquela grande estátua imóvel e trágica enche o céu de negrume e espanto.
Ainda de noite, seguimos a caminho do Corvo, com o mar chocalhado, como se diz nos Açores. Este canal é amargo. Às cinco horas da manhã do dia 17 estamos
à vista de duas manchas azuladas, Flores e Corvo, sob um céu velado e em águas
revoltas.
Uma hora depois distingo perfeitamente o cone de bronze truncado, com
escorrências de verdete no alto. Não se vê uma árvore naquele enorme pedregulho batido pelas vagas. É com apreensão que desembarco no sítio mais pobre e mais isolado do
mundo."
Raul Brandão, in As Ilhas Desconhecidas, Quetzal Editora, pp.9-10
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