sexta-feira, 17 de novembro de 2023

As primeiras descobertas

 
As descobertas da adolescência
são aventuras sempre muito intensas.
Pomos nelas grande luxo e ardência
e é como vermos Pisas e Florenças!
 
Destapamos, de olhos muito abertos,
cavernas com escondidas maravilhas:
a luz dos vestidos entreabertos,
os montinhos, no peito, como ilhas!
 
Tudo o que se descobre, depois,
já nunca mais tem o mesmo fulgor:
são luzes, mas sem a fúria de sóis,
 
que souberam aquecer-nos  com ardor.
No começo, o mundo era uma mulher,
fruta, com novo sumo, que se quer!
                             17.11.2023
Eugénio Lisboa 

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Leituras adolescentes que deixaram marca

 
Leituras adolescentes que deixaram marca
por Eugénio Lisboa
“Tenho falado longamente de leituras que, na adolescência, deixaram marca em mim. Não foram só grandes autores, como Voltaire, Stendhal, Balzac, André Gide, Dostoiewsky, Tolstoi, Turguenev, Charlotte Bronte, Garrett, Camões, Régio e outros, de grande gabarito, que profundamente me afectaram. Tive já ocasião de referir livros como FAMÍLIA SEM NOME, de Jules Verne, ou OS DRAMAS DA INTERNACIONAL, de Pierre Zacone, que deixaram marca profunda. São livros que, depois de lidos, durante algum tempo, não nos deixam pensar em mais nada senão neles. É um erro pensar que só as grandes obras têm este poder. O dia em que, adolescente, li FÉRIAS, da Condessa de Ségur, ficou, para sempre, como um dia mágico. Só os snobs e os mentirosos não confessam estas coisas. Estes livros são aqueles que eu costumo classificar como clássicos menores. Mas são, efectivamente, livros clássicos. São pequenas estrelas que, para sempre, ficam a brilhar, no nosso firmamento.
Entre estes clássicos menores, coloco sempre o romance histórico de Arnaldo Gama, O SARGENTO-MOR DE VILAR. Li, dele, nessa altura, quase tudo o que escreveu: UM MOTIM HÁ CEM ANOS, O BAILIO DE LEÇA, A ÚLTIMA DAMA DE S:NICOLAU, O FILHO DO BALDAIA, A CALDEIRA DE PERO BOTELHO, O SEGREDO DO ABADE e até esse longo folhetim, na peugada dos de Eugène Sue, O GÉNIO DO MAL, com a tenebrosa Matilde, cuja maldade tanto me fascinou. Porém, de todos os seus livros, o que mais me impressionou foi, aliás, o primeiro que dele li, O SARGENTO-MOR DE VILAR. Os amores do fidalgo Luis Vasques com Camila, a filha do Sargento-Mor de Vilar, tendo como pano de fundo a invasão francesa de Portugal, a comando de Soult, e a descrição da resistência portuguesa ao invasor, “apanharam-me” completamente e na altura própria. Nunca mais voltei ao livro, com receio de se não renovar a magia. Nem todas estas marcas profundas se renovam, como seguramente se renova a magia de LE ROUGE ET LE NOIR, de RESSURREIÇÃO (Tolstoi), de ASSIA (Turguenev), de OS IRMÃOS KARAMAZOV (Dostoiewsky) ou de UMA GOTA DE SANGUE (José Régio). Estas são marcas que resistem à erosão do tempo. As outras, brilham no horizonte da nossa memória, mas tememos revisitá-las…”
Eugénio Lisboa, 14.11.2023

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O juízo estético antecede o juízo ético

 
O juízo estético antecede o juízo ético
por Eugénio Lisboa
 
A fealdade é uma forma de violência.
               Francine Noel
           
“Sempre me intrigou, quando a minha mãe me queria repreender, por qualquer mau comportamento meu, que fosse sistematicamente invocada uma razão de cariz estético: “O menino não faça isso porque é feio!” “O menino não coma assim porque não é bonito”. Não porque magoa o outro, ou porque suja a toalha da mesa, ou porque torna alguém infeliz. Não: pura e simplesmente, não se faz porque é feio. O estético antes do ético ou do moralista. Era talvez a melhor maneira de persuadir crianças ainda não maduras para outros conceitos de mais difícil absorção. Um argumento de fácil aceitação, porque ninguém quer ser feio. André Gide viria até a produzir um dos seus mais atrevidos aforismos, a este mesmo respeito, quando observou que a ética era uma dependência da estética. As pessoas, de uma maneira geral, mais se conseguem abster de um gesto suposto feio ou grosseiro do que eticamente reprovável. Serem acusadas de falta de sentido estético incomoda-as mais do que de insensibilidade ética. Oscar Wilde levava esta inclinação ao extremo, ao dizer que não há livros morais e livros imorais, há só livros bem escritos ou mal escritos, indo até dizer que ”nenhum artista tem simpatias éticas” e que “uma simpatia ética, num artista, é um imperdoável maneirismo de estilo.” Há, nestas formulações wildeanas um óbvio e deliberado exagero, mas que indubitavelmente visa dar preponderância ao estético sobre o ético. A fealdade na natureza tem muito de repulsivo e tem sido fonte de inúmeras invectivas de grande ferocidade. Shakespeare, por exemplo, não hesitava em rogar, por via de um dos seus personagens: “Ajudai-nos a escorraçar a fealdade do mundo.” E um provérbio inglês sugere que “a beleza é à flor da pele, mas a fealdade vai até aos ossos.” Certos vícios de carácter – e dos mais odiosos – como a inveja, são tidos como particularmente repulsivos, por razões mais estéticas do que éticas: diz-se de alguém que ficou “verde de inveja”, sublinhando-se aqui a “fealdade” de uma pele humana verde; ou “roído de inveja”, uma imagem física de um feiíssimo corpo “roído” pelo verme da inveja. Nisto tudo, o ético ou não entra ou entra em segundo lugar. O recurso à estética da fealdade, para iluminar melhor o que têm de repulsivo certos vícios (a inveja, o ciúme, o ressentimento), mostra-nos como o juízo estético pode ser muito mais eficaz, como arma de luta contra eles, do que o juízo ético. Porque o juízo estético vê-se melhor, impressiona mais, agride com mais força. Dizer que uma pessoa é feia por dentro e por fora ou que é bonita por dentro e por fora diz-nos mais do que o desfiar abstracto, não visível, das maiores virtudes. O gosto pode servir melhor o valor de certas virtudes, do que o exemplo dessas virtudes. Uma virtude bela é mais apetecida do que uma simples virtude.”
Eugénio Lisboa, 13.11.2023

domingo, 12 de novembro de 2023

Ao Domingo Há Música

Ferragudo, Algarve
 

Até que o Sol não brilhe, acendamos uma vela na escuridão.
                                    Confucio 
         
A beleza das coisas  existe no espírito de quem as contempla.
                                           David Hume  

O mais perfeito acto do homem é a Paz. E por ser tão completo, tão pleno, é o mais difícil.
                                 Mahatma Gandhi


Sobre o tempo que passa,  não há apenas um sentimento para o definir . Torna-se tão difícil vivê-lo que ocorre apenas  o desejo de que a sua escuridão seja rasgada não pela luz de uma vela, mas por uma nova e redentora  claridade que  abrace o coração de todos nós.
Livres Pensantes tem tentado dar a cada domingo uma tonalidade diferente . Vai fazer uma pausa, pelo que apresenta a última rubrica musical deste mês, feita de registos corais que celebram a vida. Agradecendo a vossa companhia, aceitem-nos com aquele useiro e costumeiro Até Sempre!

VOCES8, em Find Our Way,  de Kelly Lee Owens & Sebastian Plano, com  arranjos de  Jim Clements,  extraído do Álbum ‘Infinity’.

   
 Chorale: Elegia (Audio) , extraído do Album Symphonic Adiemus, de Karl Jenkins( 2017).

Baba Yetu,  composição de  Christopher Tin, Lord's Prayer in Swahili, com arranjos de  Derek Machan, interpretado por Alex Boyé, Dan Hall, BYU Men’s Chorus (2015-2016),  sob a direcção da Maestrina Rosalind Halle   e  a BYU Philharmonic Orchestra, sob a direcção do Maestro Kory Katseanes.

sábado, 11 de novembro de 2023

Retrato de Mariana

Retrato de Mariana
Amor de Perdição
 
Seu amor era feito de recato,
de dedicação, pequenos serviços,
total entrega e suave acato,
de sentimentos fundos mas omissos.
 
Omnipresença que se apagava,
fogo que ardia e não se via,
chama que, secreta, se atiçava,
silêncio que, tão alto, se ouvia.
 
Vida feita de gestos recolhidos,
sempre próxima, mas tão sossegada,
contendo sempre a fome dos sentidos.
 
Porém, quando a morte se fez chegada,
lançou-se à água, em aberto ostento
de amor que fora seu oculto sustento.
                       11.11.2023
Eugénio Lisboa 

Sobre um ditado popular

 
Roma

Quem tem boca vai a Roma ou vaia Roma?
por Marco Neves
“Vamos lá ver qual é a versão mais antiga.
Desde criança que me lembro de ouvir e ler a expressão «Quem tem boca vai a Roma». Ora, de vez em quando, encontro quem tente corrigi-la. A versão certa seria «Quem tem boca vaia Roma».
Vamos testar a ideia.
Imaginemos que «Quem tem boca vaia Roma» é, de facto, a versão mais antiga e «vai a Roma» é uma deturpação. Se for o caso, ao consultarmos os registos escritos da língua, vamos encontrar a versão «vaia Roma» nos registos mais antigos e a versão «vai a Roma» nos registos mais recentes. Mais: tendo em conta que esta expressão existe em vários idiomas, e sabendo que a deturpação só funciona na nossa língua («vaia» e «vai a» são semelhantes apenas em português), encontraremos certamente a versão «vaia Roma» nas outras línguas.
Pois bem, acontece precisamente o contrário: os registos escritos mais antigos são da versão «vai a Roma». Se formos ao conhecido Corpus do português (uma recolha dos registos escritos na nossa língua que encontra aqui), na sua secção de corpus histórico, encontramos várias ocorrências de «Quem tem boca vai a Roma» — em Machado de Assis, só para dar um exemplo. E a outra versão? Não aparece uma única vez. Só conseguimos dar com ela se pesquisarmos um corpus de textos mais recentes, retirados da Internet ou de jornais das últimas décadas.
Se olharmos para as outras línguas, encontramos a mesma expressão, pelo menos, em castelhano («Preguntando se llega a Roma») e em francês («Qui langue a, à Rome va»), todas semelhantes a «Quem tem boca vai a Roma». Também encontramos expressões com a mesma estrutura noutras línguas mais distantes: «Quem tem língua vai a Kiev», por exemplo, parece ser uma expressão do russo e do ucraniano.
Podemos, depois, acrescentar dados: a versão «Quem tem boca vai a Roma» é muito mais frequente, mesmo nos dias de hoje. O significado com que é usada faz sentido (já a versão «vaia Roma» só faz sentido noutros contextos). Os dicionários (e outras obras) registam «Quem tem boca vai a Roma».
Tudo somado, não há um único indício de que a versão «vaia Roma» seja a mais antiga. E, no entanto, ela passou a existir nos últimos anos. Os falantes gostam de inventar — e é assim que a língua se faz. No fundo, são duas expressões parecidas. «Quem tem boca vai a Roma» é a mais antiga e, de longe, a mais usada, com o significado «quem pergunta consegue chegar aonde quer». «Quem tem boca vaia Roma» é muito mais recente, muito mais rara e tem como significado «todos devemos reclamar perante o poder». Confesso: tendo em conta que a nova expressão é muito usada apenas como correção da mais antiga e não como expressão genuína, não tenho grande simpatia por ela...
Agora, o que é mesmo erro — objetivamente erro — é corrigir quem usa a versão «vai a Roma». Estes corretores estão a tentar impor uma expressão que não é mais antiga, não é mais correta e, ainda por cima, tem outro significado.
Por favor, deixem o velho ditado sossegado: «Quem tem boca vai a Roma»!”
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas na página Certas Palavras e fala sobre livros na Pilha de Livros. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita
Artigo publicado em Sapo24, 22 Out. 2023

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Now And Then

 
The Beatles , em  Now And Then (Official Music Video) 

 ‘Now And Then’, composta e interpretada por John Lennon no final dos anos 70, vários anos após o fim da banda e que foi desenvolvida e trabalhada por Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr na primeira metade dos anos 90 para os álbuns “Anthology” (de onde sairiam dois inéditos, ‘Free as Bird’ e ‘Real Love’). Em 2021, a mesma técnica de isolamento de instrumentos e vozes usada pela equipa de Peter Jackson no mega documentário “The Beatles: Get Back” foi aplicada à gravação caseira de ‘Now and Then’. Em 2022, Paul e Ringo completaram a canção, acrescentando um solo de guitarra ‘slide’ inspirado por George (falecido em 2021) e coros a uma versão, de 1995, que já incluía guitarras elétrica e acústica de George, bateria de Ringo, e guitarra, baixo e piano de Paul. Junte-se um arranjo de cordas feito por Giles Martin, McCartney e Ben Foster e, por fim, um “último toque subtil”: “vozes de apoio das gravações originais de ‘Here, There and Everywhere’, ‘Eleanor Rigby’, e ‘Because’”.( Expresso)

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Being good friends with animals

Why not have as a partner a cockroach?
I may well discuss Plato with a mouse.
All the many animals I approach
are dear to me: dog, cat, sparrow, grouse!
 
Each one of them has a peculiar beauty:
the nightingale sings, the cockroach shines,
the cow is patient and the mouse is cutie.
They live everywhere: plains, mountains and mines.
 
Animal is very good company,
even a tiger may become your brother
and a lioness something like your mother.
 
With animals you are in the money:
they are of enormous emotional value
and they are probably nicer than you!
                              09.11.2023
Eugénio Lisboa

O Mar Negro


O  Bósforo de Istambul 

Estrabão escreveu que no Corno de Ouro —o braço do Bósforo que bordeja as muralhas de Istambul —
se conseguia apanhar bonito à mão diretamente da água. 

O Mar Negro, de Neal Ascherson
Introdução
por Neal Ascherson 

Ler, admito‑o, é algo que me faz absolutamente feliz […] e igualmente feliz o deixar escorrer a areia por entre os dedos e deixar re‑ pousar todo o meu ser, enquanto o vento me afaga o rosto com as suas mãos frescas e húmidas. Parece agradar‑lhe não haver outra alma na praia, até ao horizonte onde as arribas azuladas parecem ursos lambendo a água do mar. Durante todo o dia, a dura erva murmura nas falésias. Infinita‑ mente antigo, este som mavioso, ouvido nesta praia séculos atrás de séculos, fala‑nos do amor à sabedoria e à simplicidade.
                                       Konstantin Paustovsky, Anos de Esperança
 
Nesses tempos [homéricos], o mar não era navegável e era cha‑mado “Axenos” [inóspito] por causa das tempestades de inverno e da ferocidade das tribos que viviam ao seu redor, principalmente os citas, que sacrificavam os de fora […] mas depois, quando os jónios começaram a fundar cidades no litoral, passou a ser chamado “Eu‑ xeinos” [hospitaleiro para com os estrangeiros].
                                        Estrabão, Geografia
 
" Um dia, nos inícios do ano de 1680, um jovem italiano de nome Luigi Ferdinando Marsigli, de pé num barco ancorado em pleno Bósforo, ao largo de Istambul, lançou pela borda uma sonda de prumo. Todos os marinheiros sabiam, e desde sempre o souberam, que o mar Negro formava uma torrente que atravessava o Bósforo para oeste, percorrendo o mar de Mármara e o estreito dos Dardanelos até chegar ao Mediterrâneo. No século III a. C., Apolónio de Rodes contara a história de Jasão e os Argonautas, que à força de remo rumaram para leste contra a corrente, navegando através do Bósforo até ao mar Negro ao longo do “apertado estreito da passagem sinuosa, cingidos de ambos os lados por rudes penhascos ao mesmo tempo que, vinda de baixo, uma corrente inversa se fazia sentir de encontro à nau que avançava”.
Essa mesma corrente puxava agora a embarcação de Marsigli em direção ao longínquo Mediterrâneo, retesando o cabo de ancoragem.  Marsigli tinha amarrado à corda, a espaços regulares, sinalizadores de cortiça pintados de branco. A princípio, à medida que a sonda foi descendo, viu que os marcos se deslocavam da proa para a ré, lentamente levados para oeste pela corrente vinda do mar Negro. Mas depois, perscrutando as águas por sobre a amurada, viu o que esperara ver. Os sinalizadores mais fundos, a cintilar lá em baixo, começaram a mover‑se na direção contrária. Muito aos poucos, foram‑se deslocando até ficarem sob a proa, com a sonda de prumo a fazer um arco que fluía para oeste logo abaixo da superfície, mas depois, à medida que aumentava a profundidade, se curvava num bojo apontando ao Leste. Agora era certo. Havia no canal do Bósforo, não uma, mas duas correntes. Havia uma corrente superior, mas havia também uma contracorrente mais profunda, fluindo, abaixo daquela, do Mediterrâneo para o mar Negro. Marsigli, então com apenas vinte e um anos, iria ter uma vida longa, aventureira e frutuosa. Foi por um curto período feito prisioneiro pelos tártaros, próximo de Viena, tornou‑se oficial dos exércitos dos Habsburgos no Danúbio, e mais tarde criou em Cassis, no sul de França, o primeiro centro de investigação oceanográfica da Europa. Contudo, nada de quanto realizou depois seria mais importante do que a descoberta da corrente submarina do Bósforo, que constituiu, tanto no método como nas implicações, um marco na nova ciência do mar. Além disso, tratou‑se do primeiro passo para o estudo do mar Negro enquanto tal: não um anel de costa habitado por gente desconhecida, mas uma massa de água. Quase todas as descobertas têm uma componente de demonstração bem‑sucedida. A corrente submarina (ou Corrente Inferior de Marsigli) já era conhecida dos que faziam das águas do Bósforo o seu ganha‑pão, como o próprio Marsigli reconheceu com a devida vénia. No primeiro relato do seu feito, escreveu: eu começara a especular levado não só por ideias formuladas nas minhas cogitações pessoais, mas também por relatos de muitos pescadores turcos e, principalmente, a instâncias do Signor Cavaleiro Finch [Sir John Finch], Embaixador de Sua Majestade o Rei de Inglaterra junto da Sublime Porta e um grande sábio no estudo da natureza: a quem a noção foi por primeira vez revelada por um dos capitães de seus navios, o qual não conseguira chegar a qualquer conclusão clara pela via da experimentação, porventura por falta de tempo […] A verdadeira glória de Marsigli reside na forma como prosseguiu e consolidou a experiência inicial. Após lançar a sonda, recolheu amostras de água a várias profundidades, provando que a água da corrente submarina possuía maior densidade e salinidade do que a da corrente superior, provinda do mar Negro. De seguida, construiu um dispositivo de demonstração: um tanque dividido verticalmente, cheio, de um lado, com água do mar tingida e com um teor de sal superior, e do outro com água de menor salinidade. Através de uma abertura na divisória do tanque, deixou as duas águas misturar‑se até uma camada de água colorida assentar visivelmente no fundo. E assim, mesmo sem entender totalmente o que acabara de fazer, Marsigli tinha descoberto também um facto basilar da oceanografia: as correntes não são geradas pela gravidade, como sucede com o fluxo dos rios, mas sim por outras forças, em que se incluem os princípios da mecânica dos fluidos — neste caso, um gradiente de pressão. O fluxo da água do Mediterrâneo, mais pesada, em direção ao mar Negro impelia a água mais leve na direção contrária. Na esteira de Marsigli, outros cientistas, na sua maioria russos, passaram a explorar a bizarra e voluntariosa natureza do mar Negro. Marsigli demonstrara que a água deste era menos salgada e densa do que a do Mediterrâneo, e havia explicado um mistério: por que motivo o nível não baixava, não obstante a saída da água para o Bósforo. Mas seriam outros, muito depois, a descobrir o facto fundamental sobre o mar Negro, característica que o diferencia de todos os outros mares, que é a circunstância de quase todo ele estar morto. No mapa, o mar Negro parece‑se com uma lagoa em forma de rim, ligada aos oceanos exteriores pelo afilado canal do Bósforo e pelos Dardanelos. E, no entanto, não é um lago de água doce, mas um mar: uma massa de água salgada com cerca de mil cento e cinquenta quilómetros de comprimento, de leste a oeste, e quinhentos e trinta quilómetros de norte a sul — exceto na “cintura”, onde a projeção da península da Crimeia reduz para apenas cerca de duzentos e trinta quilómetros a distância que, de norte a sul, vai da costa da Crimeia à Turquia. É grande a profundidade do mar Negro, atingindo mais de dois mil e duzentos metros em alguns locais. Mas há uma extensa plataforma continental pouco profunda no canto noroeste, ao longo do trecho de costa que se estende em curva de oeste para norte desde o delta do Danúbio, na Roménia, até à Crimeia. Com menos de cem metros de profundidade, esta plataforma tem funcionado como área de reprodução de muitas das espécies de peixe destas águas. Percorrendo o perímetro do mar no sentido dos ponteiros do relógio a partir do Bósforo, vê‑se que as regiões litorais da Bulgária, da Roménia e de grande parte da Ucrânia são baixas. A seguir surgem‑nos as imponentes falésias das montanhas da Crimeia. O litoral leste e sul (Abcásia, Geórgia e Turquia) é predominantemente montanhoso, ora marginado por uma orla costeira plana e estreita, ora formado — como sucede no nordeste turco — por cristas e desfiladeiros recobertos de floresta que se precipitam em acentuado declive até ao mar. Mas são os rios o que verdadeiramente domina o mar Negro. Apesar de o Mediterrâneo ser bem maior, desaguam nele apenas três grandes rios — o Ródano, o Nilo e o Pó. No mar Negro desaguam cinco: o Kuban, o Don, o Dnipro, o Dniestre e, principalmente, o Danúbio, cuja bacia hidrográfica atravessa toda a Europa Oriental e Central até quase às fronteiras da França. Só o Danúbio despeja anualmente no mar Negro duzentos e três quilómetros cúbicos de água doce, o que é mais do que o total de águas fluviais que desaguam no mar do Norte. Estes rios, fonte de tanta vida, são os responsáveis pela extinção da vida, ao longo de dezenas de milhares de anos, nas profundezas do mar Negro. A irrupção de matéria orgânica dos rios excedeu a capacidade das bactérias da água do mar que, por norma, a deveriam decompor. Estas alimentam‑se oxidando os nutrientes, utilizando, para isso, o oxigénio dissolvido normalmente presente na água do mar. Mas quando a matéria orgânica entrada é de tal grandeza que faz esgotar o oxigénio dissolvido, as bactérias recorrem a outro processo bioquímico: vão buscar o oxigénio aos iões de sulfato que estão na composição da água do mar, gerando, nesse processo, um gás residual: sulfureto de hidrogénio (H2S). Trata‑se de uma das substâncias mais letais do mundo natural, geralmente suficiente, se respirado, para matar um ser humano. Os trabalhadores das explorações de petróleo sabem‑no, e por isso o temem; estão sempre alerta para o seu fétido cheiro a ovos podres, pondo‑se em fuga mal o sentem. E com razão. O sulfureto de hidrogénio destrói quase de imediato o olfato, de tal modo que, após o primeiro sinal, é impossível a pessoa perceber se continua a inalá‑lo. O mar Negro é o maior recetáculo de sulfureto de hidrogénio do mundo. Não existe vida abaixo de uma profundidade que varia entre os cento e cinquenta e os duzentos metros. A água, anóxica e desprovida de oxigénio dissolvido, está cheia de H2S; uma grande parte do mar Negro tem uma profundidade elevada, o que significa que cerca de 90% do seu volume é estéril. Não é o único local oceânico em que existe acumulação de H2S. Existem zonas anóxicas no fundo do mar Báltico e sob alguns fiordes da Noruega, onde a água circula pouco. Ao largo da costa do Peru, o sulfureto de hidrogénio sobe por vezes do fundo à superfície durante as catástrofes periódicas conhecidas por “El Niño”. Nessas ocasiões ele aniquila todo o ecossistema, destruindo a pesca costeira e pintando com uma tinta preta o fundo dos barcos (o chamado efeito “Pintor de Callao”). No entanto, as profundas águas do mar Negro continuam a ser a maior massa de água sem vida do mundo. Até à última centena de anos, no entanto, os humanos olharam para o mar Negro como sendo o espaço de uma quase monstruosa abundância. O veneno das trevas jazia bem lá no fundo, desconhecido de todos. Acima das cem braças — a “haloclina” ou “oxiclina”, que delimita a anoxia na sua parte superior —, o Mar fervilhava de vida. Os grandes rios estavam pejados de salmão e de esturjões de grande porte — a beluga chega a atingir o comprimento e peso de uma baleia pequena — que ali vinham desovar (na Bizâncio do século XIV,  o caviar era tão abundante que era o alimento dos pobres).* Ao longo do litoral e na plataforma menos profunda situada a noroeste, havia a palma, a espadilha, o caboz, a raia, a tainha e o badejo, a maioria deles alimentando‑‑se das pradarias de crina marinha. Do outro lado da península da Crimeia, no extremo nordeste, fica o mar de Azov, que, com o seu delgado canal — o estreito de Kerch — de ligação ao mar Negro, faz lembrar uma versão deste em miniatura. Pouco profundo, encravado, e pequeno no tamanho, este mar já acolheu mais de cem variedades de peixes nos cerca de duzentos quilómetros que separam o estreito de Kerch do pantanoso delta do Don. As cheias do delta do Don alagavam quilómetros e quilómetros de canaviais e lamas salobras, proporcionando zonas de desova para gordo peixe de rio que se deixava apanhar às carradas. Milhões de peixes marinhos em migração para os locais de reprodução cruzavam o Bósforo, em Istambul, ou o estreito de Kerch, em direção ao mar de Azov. Apanhar esse peixe exigia pouco mais esforço do que ficar a uma janela à beira‑mar e estender uma rede de mão, e Estrabão escreveu que no Corno de Ouro — o braço do Bósforo que bordeja as muralhas de Istambul — se conseguia apanhar bonito à mão diretamente da água. Ao largo, entre os bandos de golfinhos e toninhas, havia duas espécies que efetuavam uma migração lenta e giratória pelo mar Negro, com a pontualidade de uma carreira marítima. Uma era o bonito (palamud), da família da cavala, de tal importância para a alimentação e o comércio que a sua imagem surge em algumas moedas bizantinas. A outra era o hamsi, ou anchova do mar Negro. Até aos nossos dias, o que resta das hordas de anchovas vem desovar ao largo da baía de Odessa no mês de julho e grande parte de agosto, iniciando o circuito inverso pelo mar entre a última semana de agosto e os primeiros dias de setembro. Viajando a uma média de quase vinte quilómetros por dia, em grupos cuja biomassa, ainda hoje, pode ir até às vinte mil toneladas, passam pelo delta do Danúbio, contornam o litoral da Roménia e da Bulgária, virando então para leste, ao longo da costa da Anatólia. Nos princípios de novembro os cardumes encontram‑se a meio caminho entre Istambul e Sinop, algumas centenas de quilómetros para leste. O peixe, que entretanto engordou e se desloca mais devagar e em grupos mais compactos, entra então nas principais zonas de pesca de Trabzon (Trebizonda). Finalmente, no Ano Novo, as anchovas chegam ao canto sudeste do mar Negro, algures ao largo de Batumi, após o que se dividem, com umas a rumar a norte ao longo das costas da Geórgia e da Abcásia, numa curva que as devolve ao ponto de partida, outras voltando para trás na direção de Sinop e subindo, então, o trecho central do mar Negro até à baía de Odessa. Uma estimativa da biomassa de hamsi realizada antes de o genocídio causado pela sobrepesca ter exterminado esta espécie, na década de 1980, apontava para que fosse próximo de um milhão de toneladas a quantidade de anchovas que anualmente nadavam nesta peregrinação circular. Foi graças ao peixe que o mar Negro entrou para a história. Houve, evidentemente, outros fatores, outros mananciais de alimento e riqueza."
Neal Ascherson, in  O Mar Negro- De Péricles a Putin, Relógio D’Água Editora.

* Segundo o professor Peter Schreiner, de Colónia, especialista em alimentação bizantina, um trabalhador agrícola com salário médio ganhava em apenas quinze dias de trabalho o equivalente ao custo de um barril de caviar de quarenta e cinco quilos, enquanto um trabalhador agrícola alemão precisaria, hoje, de trabalhar dezoito meses para comprar o mesmo barril.
 

Sobre o Livro
"Para Ascherson, é nesta região que se está a gerar a nova relação entre a Rússia e o Ocidente.
Percorrendo um itinerário que rodeia esse estranho mar interior, O Mar Negro vai da época de Heródoto à atualidade.
Ascherson revela ao leitor os numerosos segredos de uma região que é hoje um dos palcos da guerra entre a Federação Russa e a Ucrânia, mas em que os conflitos parecem quase eternos, pois o mar Negro é partilhado também por países como a Turquia, a Roménia e a Grécia.
O autor reconstrói a região a partir de apontamentos antropológicos e investigações arqueológicas e também de histórias individuais, como a de um obscuro orador do século II ou a de um fascinante espião polaco do século XIX.
Esta edição integra um prefácio de 2015 em que o autor comenta os acontecimentos ocorridos nos últimos anos, a revolução na Ucrânia e na Geórgia, a anexação da Crimeia por parte da Rússia de Putin, os conflitos entre países vizinhos e a situação ambiental das águas do mar Negro.
Para Ascherson, é nesta região que se está a gerar a nova relação entre a Rússia e o Ocidente."
Vencedor do Los Angeles Times Book Prize for History
“Uma análise minuciosa das terras que circundam o mar Negro e que foram cenário de algumas das mais antigas experiências multiculturais da história humana. . . rico tanto em dados históricos como em interpretação. . . com algo para aprender em cada página.” [The New York Times]
“Em suma, este é um livro excelente, muitíssimo bem escrito, evocativo, erudito e profundamente subtil.” [The Times Literary Supplement]
Neal Ascherson, in  O Mar Negro — De Péricles a Putin , Relógio D’Água
Data de Publicação: 08/2023
Nº de Páginas: 344
Preço: 
22.00 € - 19.80 €
Editor :  Relógio D’Água

SOBRE O AUTOR:
Neal Ascherson nasceu em Edimburgo, na Escócia, em 1932. Estudou História na Universidade de Cambridge, dedicou-se à Arqueologia e foi correspondente na Ásia, em África e na Europa de Leste do diário The Observer. É autor de vários estudos de carácter histórico.
O Mar Negro obteve o Saltire Award em 1995 e o LA Times Book Prize for History em 1996.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

A actualidade em cartoon

Henricartoon ,Nov.2023

 
Luís Afonso, JN, Nov. 2023

Luís Afonso, JN, Nov. 2023

Chris Riddel , The Guardian
The elephants in the room with Rishi Sunak

Chris Riddel , The Guardian
Is Joe Biden's plan for peace too little , too late?


Le vignette di ItaliaOggi

Chapatte Globe Cartoon, Nov.2023
The state of the debate

Chappatte Globe Cartoon, Nov. 2023
The support of the West

Cartoon Movement, Elena Ospina, Nov. 2023
Religions

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Mais Pensamentos sobre a Guerra

A Face da Guerra, Salvador Dali ( 1940-1941)

Toda a gente, quando a guerra anda no ar, aprende a viver com um novo elemento: a mentira.
 Jean Giraudox
 
Temos o poder de fazer, desta, a melhor geração da humanidade, na história do mundo – ou fazer, dela, a última. 
John F. Kennedy
 
Mas, na guerra moderna… morrerás como um cão, por razão nenhuma.
Ernest Hemingway
 
A guerra existirá até ao momento em que o objector de consciência gozar da mesma reputação de que goza hoje o guerreiro.
John F. Kennedy
 
Eu lancei a frase – “A guerra para pôr fim a todas as guerras” – e esse não foi o menor dos meus crimes.
H. G. Wells
 
Desejamos lei mundial, na idade da autodeterminação – rejeitamos guerra mundial, na idade da maciça exterminação.
John F. Kennedy
 
A maneira de ganhar uma guerra atómica é fazer com que ela nunca comece. 
General Omar Bradley
 
A paz é não só melhor do que a guerra, mas infinitamente mais árdua. 
George Bernard Shaw
 
O que há de pior, logo a seguir a uma batalha, é uma batalha ganha.
Duque de Wellington (vencedor de Napoleão em Waterloo)

Seleccionados e traduzidos por
Eugénio Lisboa, 07.11.2023

Poemas do Silêncio

 Poema do Silêncio

Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
- Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.
José Régio, in  As Encruzilhadas de Deus, Edição Inquérito, 1946

I- PLENILÚNIO
FICÇÕES DO INTERLÚDIO
I
PLENILÚNIO


As horas pela alameda
Arrastam vestes de seda,

Vestes de seda sonhada
Pela alameda alongada

Sob o azular do luar...
E ouve-se no ar a expirar —

A expirar mas nunca expira
Uma flauta que delira,

Que é mais a ideia de ouvi-la
Que ouvi-la quase tranquila

Pelo ar a ondear e a ir...

Silêncio a tremeluzir...
Fernando Pessoa, in Ficções do Interlúdio. Poesias. . (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).


 O Silêncio

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.
Eugénio de Andrade, in Obscuro Domínio, Editorial Inova Limitada

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta. Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa,.
Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakoviski – seu criador. Fotografei a nuvem de calça e o poeta. Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
Mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.
Manoel de Barros , in  Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.
Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.
Miguel Torga , in Câmara Ardente, 1962,Coimbra Editora Ltda,

PEQUENO ESCLARECIMENTO
Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio - um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio... Este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês.
Mario Quintana, in  A Vaca e o Hipogrifo, Editora Alfaguara

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Os livros de Novembro


“O romance vencedor do Pulitzer deste ano, um manifesto de James Baldwin contra a discriminação, a autobiografia de Angela Davis, poesia inédita de Júlio Pomar e um álbum documental dos Beatles, por Paul McCartney, são algumas novidades de novembro.
Entre os livros que chegam às livrarias no próximo mês conta-se “Demon Copperhead”, de Barbara Kingsolver, vencedor do Prémio Pulitzer de ficção e do Women's Prize for Fiction, que recria o “David Copperfield”, de Charles Dickens, através de um rapaz que cresce nas montanhas pobres dos Apalaches, na Virgínia, numa edição da Suma de Letras.
Igualmente do grupo Penguin Random House Portugal, mas na chancela Alfaguara, vai sair “Da próxima vez, o fogo”, de James Baldwin, nas vésperas do seu centenário, uma carta ao mundo, que é um manifesto contra todo o tipo de discriminação.
Pela mesma chancela, chega mais um livro de Charles Bukowski, “As matemáticas da escrita”, sobre a difícil arte da escrita e a ainda mais difícil arte de viver da escrita, e na Companhia das Letras será publicado um novo romance de João Tordo, “O nome que a cidade esqueceu", o seu 20.º livro em 20 anos, que marca o regresso do autor a Nova Iorque, cidade onde tudo começou.
Novembro marca também a chegada do segundo volume da “Septologia” do norueguês Jon Fosse, recentíssimo Prémio Nobel da Literatura, intitulado “O eu é um outro”, editado pela Cavalo de Ferro, chancela que vai também publicar uma novela gráfica que adapta a obra “Tamanhas eram as alegrias”, de George Orwell, em que o autor descreve os seus anos de formação, narra as injustiças e iniquidades que sofreu, enquanto tece uma implacável crítica ao sistema de ensino da altura.
A Iguana vai publicar “A espera”, de Keum Suk Gendry-Kim, uma novela gráfica coreana, que aborda as consequências da guerra da Coreia de 1950, que separou famílias inteiras, trazendo testemunhos do trauma de toda uma geração de coreanos que continuam à espera de um reencontro.
Outras novidades literárias da Penguin para o próximo mês são a publicação de “Nunca Jamais”, romance da autora líder de vendas Colleen Hoover, na Topseller, e “Meditações”, de Marco Aurélio, um dos clássicos mais lidos de sempre, agora na coleção Penguin Clássicos.
O grupo Almedina destaca, nas Edições 70, a publicação de “100 dos Melhores Planos do Cinema - 100 Autores, 100 Planos”, de Nelson Araújo, uma viagem pela história e a linguagem do cinema através de uma centena de planos icónicos, e a obra de filosofia política de Pierre-Joseph Proudhon “Que é a Propriedade? - ou investigações sobre o princípio do Direito e do Governo”, considerada a “Bíblia” do anarquismo.
Na área da ficção, a chancela Minotauro publicará “A Velha Senhora Webster”, de Caroline Blackwood, romance nomeado para o Prémio Booker, “A Mansão Minúscula de Myra Malone”, de Audrey Burges, e “Vingativo”, de V. E. Schwab, sequela de “Vicioso”.
Entre os destaques da Editorial Presença para o mês de novembro, inclui-se a publicação de um novo romance da autora francesa Valérie Perrin, “Os esquecidos de domingo”, bem como do esperado “Ao Paraíso”, de Hanya Yanagihara (autora de “Uma pequena vida”), que aqui atravessa três séculos, mostrando três versões da identidade norte-americana.
A Dom Quixote vai lançar “Tasmânia”, de Paolo Giordano, considerado o melhor livro publicado em Itália em 2022, um romance que aborda o tema do apocalipse em todas as suas nuances: as alterações climáticas, o terrorismo religioso, a cultura do cancelamento, a fragilidade da amizade, os casamentos desfeitos e a paternidade falhada.
A editora destaca também a publicação de “Antes Que Me Esqueça”, livro de crónicas de Francisco Seixas da Costa, que atravessam os seus 38 anos de atividade diplomática, testemunho de várias experiências internacionais, pelas quais passaram figuras como Oscar Niemeyer, Jean-Marie Le Pen, Charles Aznavour, Lech Walesa, Mikhail Gorbachev, Yasser Arafat, Sergey Lavrov, Jacques Chirac, Pelé, Salman Rushdie, Sérgio Vieira de Melo, Ariel Sharon, Joseph Stiglitz ou Leonardo Padura.
“Censura, o Lápis Azul do Silêncio” é uma das propostas da Guerra e Paz, obra organizada por Ana Aranha, com 20 entrevistas a quem sofreu nos textos os riscos azuis do lápis censório da ditadura, como é o caso de Adelino Gomes e Sérgio Godinho.
A editora lança também “Histórias de Jazz”, de Leonel R. Santos, com ilustração de Nuno Saraiva na capa, um livro que conta 13 histórias “inverosímeis” envolvendo sempre “um grande músico ou um inesquecível tema”.
A terminar o ano, a Porto Editora lança “1964: Olhos da Tempestade”, uma obra com 275 fotografias inéditas, resgatadas do acervo privado de Paul McCartney, que documentam, pelo próprio olhar do músico, a digressão dos Beatles por seis cidades europeias e norte-americanas.
A Assírio & Alvim edita “Prima Contradição”, livro inédito de Júlio Pomar, a partir de um espólio de milhares de poemas, alguns concebidos como letras de fados, deixado pelo artista plástico, numa edição organizada por José Alberto Oliveira e José António Oliveira.
Na mesma chancela será publicada toda a obra poética de Pedro Homem de Mello, em dois volumes, com o título “Poemas 1934-1961”, bem como uma antologia inédita de textos, desde o século XII até ao século XX, ‘re-imaginados’ pelo génio surrealista de Mário Cesariny, intitulada “Poetas do Amor, da Revolta e da Náusea + Poesia de Mário Cesariny: antologia”.
Preparado logo após o 25 de Abril de 1974, este projeto de Cesariny começou por ser um espetáculo de teatro, mais tarde reformulado como uma série de filmes para televisão, desejo nunca concretizado, que engloba prosa, poemas e peças de teatro, convocando nomes como Camões, Mariana Alcoforado, Bocage e Natália Correia, entre outros autores.
Junta-se a “Poesia de Mário Cesariny: antologia”, no ano do centenário do autor, que revisita toda a obra do grande poeta surrealista, pensada por Fernando Cabral Martins.
A Antígona tem previsto publicar “Autodefesa. Uma filosofia da violência”, de Elsa Dorlin, um ensaio político da autodefesa e a sua genealogia, seguido de “Carta aos Reis Magos”, de Fernando Arrabal, fundador do Grupo Pânico e mestre patafísico, autor de epístolas satíricas como “Carta ao General Franco” e “Carta a Fidel Castro”.
Outros destaques da editora são “Uma autobiografia” de Angela Davis, ativista e professora da Universidade da Califórnia, com prefácio da autora à edição norte-americana mais recente, publicada em 2022, e uma coletânea de poemas de Lawrence Ferlinghetti, intitulada “Uma manta rota da mente”, uma “obra maior da Geração Beat”.
Entre as novidades da Bertrand, incluem-se os romances “A Porta dos Traidores”, de Jeffrey Archer, “O Confronto”, de John Grisham, “Holly”, de Stephen King, e “Alguém Falou sobre Nós”, de Irene Vallejo.
Na Quetzal vão ser publicados a “Poesia Completa”, de Roberto Bolaño, e “A Mesa de Deus”, de Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, um livro que propõe uma releitura da Bíblia anotando todas as referências sobre os alimentos, a cozinha, a refeição, o prazer e a dádiva da comida, estudando os hábitos alimentares no Antigo e no Novo Testamento.
Outro destaque da Quetzal é a publicação de “Horácio. Poesia Completa”, a versão definitiva em português, traduzida e comentada por Frederico Lourenço, numa edição bilingue. Esta é a primeira edição completa de Horácio a ser publicada em Portugal desde o século XVII.”
Lusa, 31.10.2023 

A guerra anula o sentido da vida

 

A memória é o único paraíso do qual o homem não pode ser expulso.
Elieser Gelwerger ( 16 anos) , Mogilev, 1944
Yad Vashem

Render homenagem em memória daqueles que foram vítimas de atrocidades infames é contribuir para que as guerras acabem, sejam elas de um lado ou de outro. Guerra é sempre um horror. Preservar a vida de qualquer ser humano deve ser o maior e primeiro objectivo. A guerra anula o sentido da vida.
A peça musical, que se apresenta,  recai numa dessas situações que é um  dos possíveis  exemplos de como  a música é uma linguagem universal.
Uma já renomada  jovem compositora, violinista   e pianista (18 anos) publicou o seguinte:

Em Memória das vítimas de 7 de Outubro de 2023
"Compus este movimento a partir do meu concerto para piano, em memória da minha avó em Israel. É  também à memória das crianças, das mulheres e dos homens, jovens e idosos, que foram assassinados no sul de Israel, em 7 de Outubro de 2023."
Alma Deutscher

Alma Deutscher: piano concerto in E-flat major. ii: Adagio (in memoriam of the victims of October 7, 2023) com  a Orchestra of St. Luke's , regida pelo Maestro Jane Glover e Alma Deutscher, ao piano.


  

domingo, 5 de novembro de 2023

O aconchego das certezas

As certezas confortam corações
inseguros e cheios de temor.
Buscam tudo, mitos, religiões,
regimes de dogma e de terror.
 
Tudo, excepto o desassossego,
que não temem os que sondam mistérios.
Eles preferem o doce aconchego
das certezas dos que têm impérios!
 
Acreditar, em vez de descobrir
é bem mais suave e sossegado.
Para quê passar noites sem dormir,
 
desvendando o segredo blindado,
em vez de se acomodar, tranquilo,
em silente postura de pupilo?
                       05.11.2023
Eugénio Lisboa