quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Pensamentos

"La mémoire , la joie , sont des sentiments; et même les propositions géométriques deviennent sentiments, car la raison rend les sentiments naturels et les sentiments naturels s'effacent par la raison."
Pascal, Pensées, section II,  Bordas,  p.58

" Les hommes sont si nécessairement fous, qui ce serait être fou par un autre tour de folie, de n'être pas fou." 
Pascal, Pensées,  section VI, Bordas,  p.128

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Alberto de Lacerda

Retrato de Alberto de Lacerda, 1971, Arpad Szenes
Alberto de Lacerda
“É preciso redescobrir a elegância”
 Por Eugénio Lisboa

Para o  Luis Amorim de Sousa

"Passaram, em 27 de Agosto, dez anos sobre a morte, em Londres, do poeta Alberto de Lacerda, encontrado caído à porta do seu minúsculo apartamento, em Battersea. Assinalando a efeméride, encontra-se, neste momento, na Biblioteca Nacional, uma bela e compreensiva exposição dedicada ao grande poeta de Oferenda.
Exílio é como se intitula um dos mais belos livros de Alberto de Lacerda e um longo exílio foi a sua vida, desde que, em 1951, deixou Lisboa, a caminho de Londres, onde, para sempre, se estabeleceria.
Nascido em 1928, na Ilha de Moçambique – “festa de luz de mar tranquilo” - , estudante pouco convicto do liceu em Lourenço Marques, partiria em 1946 para Lisboa, com os estudos liceais mal concluídos e pior amanhados. Cinco anos de vida mais ou menos boémia na capital portuguesa, sem concluir estudos que o aparelhassem para uma entrada na universidade, Alberto de Lacerda entregou-se, por outro lado, a leituras intensivas e a um convívio literário apaixonado com vultos de proa do meio literário lisboeta. Ao fim de cinco anos, cansado, desiludido, magoado, partiu para Londres, sem trabalho certo garantido, aí vivendo, no meio de grandes dificuldades financeiras, de colaborações e alguma locução na BBC, mas sem vínculo certo.
Guloso de conhecimento e de diversidade, andou, em 1959 e 1960, pelo Brasil, onde atou laços de amizade perene, com figuras como Manuel Bandeira e Cecília Meireles.
Em 1967 foi ensinar para a Universidade de Austin, no Texas, uma experiência de fundo encantamento e de enorme produtividade poética. Terminado o contrato, regressou a Londres, mas, em 1972, foi contratado pela Universidade de Boston e aí ensinou Poética até se reformar. 
Viajante incansável, descobridor de mundos e minúcias que a outros escapavam, Alberto de Lacerda conhecia Londres como ninguém, sendo, da cidade que considerava “o centro da liberdade”, um admirável e apaixonado cicerone.
Amigo e correspondente de alguns grandes da cultura universal, Alberto de Lacerda foi considerado por René Char uma das quinze vozes universais da poesia de hoje. Co-fundador da Távola Redonda, com um número dos Cadernos de Poesia inteiramente dedicado à sua poesia e o seu livro (bilingue) 77 Poems saudado encomiasticamente no Spectator e no Times Literary Supplement, com mais poemas traduzidos fora de Portugal do que qualquer poeta português, genial animador cultural e aliciante conversador, Alberto de Lacerda, uma das mais belas vozes da poesia portuguesa, dono de um discurso poético a um tempo intenso e castigado – consegue, no entanto, o prodígio de ser actualmente um dos poetas mais invisíveis e desdenhados, no universo pícaro da nossa república das letras.
Disse já, algures, que o autor de Palácio “é um poeta que celebra, em cada curva do seu discurso, o esplendor da língua e o fulgor da vida.” O poema que, no livro Exílio, dedicou à língua portuguesa é uma das mais belas homenagens prestadas à língua de Camões e um poema onde todos os excessos são permitidos: “Esta língua que eu amo / Com seu bárbaro lanho / Seu mel / Seu helénico sal / E azeitona / Esta limpidez / Que se nimba / De surda / Quanta vez / Esta maravilha / Assassinadíssima / Por quase todos que a falam / Este requebro / Esta ânfora / Cantante / Esta máscula espada / Graciosíssima / Capaz de brandir os caminhos todos / De todos os ares / De todas as danças / Esta voz / Esta língua / Soberba / Capaz de todas as cores / Todos os riscos / De expressão / (E ganha sempre a partida) / Esta língua portuguesa / Capaz de tudo / Como uma mulher realmente / Apaixonada / Esta língua / É minha Índia constante / Minha núpcia ininterrupta / Meu amor para sempre / Minha libertinagem / Minha eterna / Virgindade”. São de notar, neste extraordinário poema, os excessos afirmativos, os superlativos absolutos simples (fazendo cada um, só por si, um verso: “Assassinadíssima”, “Graciosíssima”), os adjectivos intensos: “soberba”, “máscula”. Observei algures que, “na sua poesia há sempre uma sedutora tensão entre o excesso apaixonado e o mais rigoroso governo dos constrangimentos que a grande arte clássica recomenda.” Dizia Gide que o classicismo – o verdadeiramente vital – é apenas um romantismo domesticado. A poesia de Alberto de Lacerda ilustra, como poucas, esta asserção: vigorosamente romântica e severamente travada por uma mão que segura, com sábia firmeza, o leme. De tudo se alimentava a sua poesia: tanto das “maravilhas” como dos “horrores” da vida. Alimentava-se também, por certo, da sua prodigiosa e vivíssima cultura, municiada por toda uma vida de leituras e frequentação de museus, galerias, teatros, salas de concerto e de uma voracidade de coleccionador tão insaciável quão desprovido de substanciais meios financeiros. Do pouco soube contudo tirar muito, numa obstinação sublime e quase roçando o limiar da loucura.
Disse atrás que o Alberto era um aliciante conversador: nele, a enorme erudição não era árida, pelo contrário, era profundamente vivida, amoravelmente perscrutada e intensamente doada aos seus ouvintes. A sua conversa era um continuado fascínio, a que não faltava o toque de uma acerada e pessoalíssima ironia. Foi mesmo este seu dom que me fez surgir um dia a ideia de propor ao Presidente do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, o Professor Fernando de Mello Moser, a criação de um lugar de super-leitor de literatura e cultura portuguesa, nas universidades estrangeiras onde houvesse estudos portugueses. E que esse lugar fosse desempenhado pelo autor de Oferenda. Passaria períodos de residência de dois ou três meses em cada uma de diversas universidades, que até não teriam de ser só inglesas. O notabilíssimo animador e sedutor cultural que era o Alberto, por certo daria aos leitorados onde periodicamente residisse um fulgor, um colorido, uma vitalidade, uma sedução, uma aura que o vulgar leitor sediado na universidade não estaria em condições de propiciar. Moser foi sensível à minha sugestão e prometeu tudo fazer para a tornar uma realidade. Infelizmente, viria a falecer pouco depois da nossa conversa e não voltei a ter ânimo para retomar, com outro, o mesmo projecto.
Na vida, como na obra, Alberto visou sempre a beleza, a liberdade, a simplicidade recheada de conteúdo, a esbelteza. Num texto publicado no Notícias, de Lourenço Marques, e falando da obra do escultor Giacometti, o poeta escrevia: “Eu esperava coisas ainda mais sublimes, simplicidades ainda mais misteriosas.” Alguns meses antes, no mesmo jornal, escrevera: “É preciso redescobrir a elegância. Mas por dentro.” É realmente preciso. Mas faz também parte da mais elementar elegância não fingirmos que não damos por um grande poeta."
Eugénio Lisboa, Crónica publicada no JL nº1230, de 22 de Novembro a 5 de Dezembro de 2017

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Cantar em português

Gisela João e Luisa Sobral , em  Cupido, no Vodafone Mexefest 2017
Gisela João, em  Meu Amigo Está Longe.
Salvador Sobral e Luísa Sobral em AMAR PELOS DOIS.
Versão acústica da Canção vencedora do Festival da Canção 2017 ao vivo e em directo no programa BFF da RFM, com Joana Cruz e Rodrigo Gomes.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Um coração enorme

        
                        ...Saudade é amar um passado que ainda não passou.
                                   Saudade é a memória do coração.


Um coração enorme
A minha mãe tinha um coração enorme. Comovia-se muito. Creio que, quando eu nasci, nos encantámos uma com a outra. Ela, emocionada, esperava que eu lhe dissesse : vim para ti. 
Quedaram-se alguns segundos e , então, num repente ruidoso, desatei a chorar, como convém a um recém-nascido. Foi esse o modo que descobri para lhe comunicar que sim: estava ali para ela, por ela e com ela.
Conta a história e a verdade que a minha mãe rejubilou. A emoção tomou-a e um profundo e cálido suspiro soltou-se em seus lábios. Tinha uma outra filha.
Ao longo da vida, descobri que ela sempre estivera para mim, antes mesmo de eu ter nascido. Havia nela um amor tão genuíno que era intemporal. O amor era nela uma forma de viver. Nada o  enfraquecia, nada o derrubava. Cresci , rodeada pelo carinho que sempre me ofereceu, numa dádiva sem prazo e sem medida.
Lembro –me do orgulho que tinha em cada um de nós. E éramos muitos: seis filhos. Descobria uma peculiaridade em cada um. Era, então, o ponto de partida para enobrecer o papel que cada um desempenhava no todo que nos compunha. Não existia qualquer privilégio especial a conceder a um ou a outro. Havia, isso sim , aquilo que todos éramos: filhos especiais de uma mãe excepcional. 
Era linda, a minha mãe. 
Nasceu a 27 de Novembro, em Lisboa. Hoje era o dia do seu aniversário.
Há tanto tempo que não o festejamos juntas . 
Que saudade, Mãe!

domingo, 26 de novembro de 2017

Ao Domingo Há Música

«O cantaor  cuando canta, celebra un solemne rito, saca las viejas esencias dormidas y las lanza al viento envueltas en su voz..., la raza se vale de él para dejar escapar su dolor y su historia verídica"
                                                  Frederico Garcia Lorca 

Filho da Andaluzia, Frederico Garcia Lorca , um dos poetas espanhóis mais representativos do século XX , foi  um  estudioso e fervoroso apaixonado do "cante jondo". Considerava  que, através deste cante, era possível penetrar no espírito da Andaluzía, captando a cultura popular primitiva e misteriosa, marcada pela dor.  No cante jondo, cúmplice das penas e das alegrias do seu povo, o cantaor esconjura com «voz de sangre», através das sentidas letras e dos longos e dolorosos melismas, como num ritual, as angústias que lhe assaltam a alma, crendo que quem o escuta comungará, por empatia, da sua dor e que esta será, assim, mitigada.
Um canto  profundo e misterioso que, em requebros , se faz dança. 
A arte do flamenco  traduz-se em cante, toque y baile. Uma arte que se expressa em corpo e alma.
Joaquin Cortés  é uma figura icónica dessa arte, transfigurando-a , por vezes, em  apoteóticos  momentos de  bailado . 
Ei-lo  em Ballet Flamenco, num espectáculo ao vivo. 

sábado, 25 de novembro de 2017

O sentido das palavras

« "Sentido" é uma das palavras das quais  se pode dizer que desempenham "tarefas ocasionais" na nossa linguagem. São estas palavras que provocam a maior parte  dos problemas filosóficos. Imaginem uma instituição cujos membros , na sua maioria , desempenham certas funções habituais que podem facilmente ser descritas , por exemplo, nos estatutos  da instituição. Existem, por outro lado, alguns membros que desempenham  tarefas ocasionais as quais todavia  podem ser extremamente importantes. - O que provoca a maior parte dos problemas em filosofia é o facto de nos sentirmos tentados a descrever o uso de palavras importantes " para tarefas ocasionais", como se elas fossem palavras com funções habituais.»
Ludwig Wittgenstein, in "O Livro Azul", Edições 70, p.83

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

"As Quybyrycas” de Grabato Dias

Grabato Dias e "As Quibíricas”: 45 anos. Cada um faz a homenagem que pode
Por Teresa Carvalho
"Impresso em Moçambique em Novembro de 1972 para assinalar o IV centenário da publicação d’ “Os Lusíadas”, “As Quibíricas” é um extraordinário livro sobre a nossa história, ainda à espera de leitores.
Em 1972, um sopro comemoracionista varreu a “patriazinha iletrada”, como se na fase já agonizante da ditadura salazarista a história portuguesa continuasse ainda a sua marcha ascensional e triunfante. O programa de festas e festarolas, executado com pompas de cerimonial (e não sem alguma contestação), incluía sessões solenes, conferências temáticas, entoações do hino nacional, mostras plásticas, colecções de banalidades, ditas e reditas, afirmações patrioteiras declamadas em sessões de alto encómio, lançamento de reedições naturalmente comemorativas, discos e selos, coreografias, números de ginástica rítmica e tudo e tudo. Nada menos que isto. Afinal, 400 anos eram passados sobre a publicação d’ “Os Lusíadas”, há muito indexados, em regime de exclusividade, a Portugal para efeitos retóricos. A identificação entre a narrativa glorificada da nossa história e a consciência nacional era não só um facto, mas, como escreverá Eduardo Lourenço anos mais tarde, “o facto capital da nossa cultura”.
Para assinalar o centenário quadratíssimo da epopeia camoniana, em Novembro desse ano chegava à velha metrópole, procedendo da capital de Moçambique, Lourenço Marques, um livro de médio porte descrito, no entanto, como “um grosso caderno cosido de estâncias à maneira de Camões, em que há falas de el-rei D. Sebastião”, o Desejado antes de aparecer e o Encoberto depois de desaparecer, nosso chefe salvador, cujo espectro tinha sido encarnado na personalidade e na praxis política de Salazar. E a verdade é que o volume, espécie de golpe de rins contra a derrocada portuguesa e a imagem presunçosa da identidade nacional, parecia vir de outras eras, grudar-se a tempos recuados. O jogo de aproximação de dois tempos com óbvios sinais de fim – Alcácer Quibir e o Portugal de 1972, em guerra na África – estava montado. Bastava agitar os fantasmas da história oficial, exorciza-los, e mover as peças da decadência portuguesa, habitualmente traduzida pelo remastigadíssimo verso de Camões, em que se refere a nossa “austera, apagada e vil tristeza”.
Na capa e na portada, muito semelhantes à da primeira edição d’ “Os Lusíadas”, inscrevia-se o nome de um tal Frei Ioannes Garabatus, pseudónimo literário do pintor António Quadros (1933-1994), já então autor de quatro livros assinados como Grabato Dias, um poeta ainda hoje pouco conhecido do público, para azar de ambos. O “poema ético em oitavas” corria como sendo do próprio Camões, em suspeitíssima atribuição do frade zombeteiro, e encostava-se, com doses generosas de irreverência e ímpeto satírico, a alguns dos momentos fundamentais da epopeia, bem como aos seus episódios e passos mais emblemáticos. Propunha-se o falso Camões cantar o “error do Homem / que os futuros, do error a lição tomem”, e empreender com o poema a viagem “do riso que leva ao siso”. Um pé na barca das glórias pretérita, outro na da perdição próxima de um país já sem grandeza nem poderio marítimo, ali metaforizado nas caravelas carcomidas. Para compor o que só poderia ser uma epopeia às avessas e cumprir desígnios éticos, o autor preferia, no entanto, deixar de parte os deuses e invocar-se a si próprio. Quanto ao resto, a aproximação era clara: estilo vizinho, na tentativa de reproduzir a linguagem épica, à qual os arcaísmos davam um cunho realista, estrutura formal a responder por acréscimo: aos 10 cantos e 1102 estâncias do poema de Camões, Garabatus contrapunha 11 cantos e 1180 estâncias, algumas delas ditas e cantadas nas vozes de José Afonso, Maria do Céu Guerra ou Amélia Muge.
A narrativa da vida de D. Sebastião, do berço ao trágico desaparecimento, faz rebaixar a figura perpétua do imaginário mítico nacional ao patamar de anti-herói. Não passam despercebidas as roupas anódinas que um “moço guarda-roupa” veste ao rei, acabado de cair por terra, bem como o próprio corpo, exposto a céu aberto, sem segredo a proteger, tratado sem pompa nem pudor: “Sobre palhada esteira deitam breve / o patético inchado e cru despojo / e um moço guarda-roupa agora o serve / por derradeira vez. Contendo o nojo / sua mesma camisa a dar astreve / a quem tantas lhe deu. Posto de rojo / bailando-lhe nos olhos lantejoulas // de carregada mágoa, umas ceroulas / que desprezadas andam polo chão / e ninguém quer, por vélhas e rompidas /assube polas côxas que aqui estão /  amostrando as ocultas e nojidas / partes por onde impera a corrupção / Vede-o pobre senhor das escondidas / pudicícias dum espírito incerto / com seu segredo agora tão aberto.“
Saído “uma madrugada nas barbas de alguns alguéns”, um tal livro desquadrava do cenário geral dos festejos e de toda uma série de iniciativas de finalidade ornamental, logo a partir do título: “As Qvbyrycas”, isto em arcaica grafia, O nome, derivado de Quibir (ou Kibir) trazia para primeiro plano, não um dado histórico glorioso como Camões, posto ao serviço de pérfidas doutrinas expansionistas e detestáveis ideologias guerreiras, mas um episódio desastroso da história portuguesa. “As Quibíricas”, que conheceriam uma segunda edição em 1991, com o selo das Edições Afrontamento, seriam assim a continuação de “Os Lusíadas”, e estes apenas o prólogo da decadência nacional iniciada em Alcácer-Quibir e rematada no salazarismo.
 Não se trata de uma mera paródia da epopeia de Camões, antes de uma enormíssima sátira burlesca, para a qual muito contribui o “rial privilégio de Jorge de Sena”, que em 1972 andou por terras de Moçambique e assinou o extenso e eruditíssimo prefácio. É uma primorosa peça de sarcasmo (e auto-ironia) que acertava em cheio nos mandarinatos da erudição. Não esquece Sena de lembrar que no nosso palmaré de grandezas sequer falta essa glória que ninguém pode disputar a Portugal em magnitude: o terramoto de 1755.
A homenagem às avessas de António Quadros, a provar que nem toda a homenagem se fecha numa postura de enaltecimento louvaminhas, reverência de espinha dobrada, olhos postos no retrovisor, fazia estalar por todos os lados o verniz imperial que, saído da pistola manhosa do regime, ainda pulverizava os cenários da celebração enfatuada da lusitanidade em 1972. O poema de João Pedro Grabato Dias, pelo contrário, fecha em clima de melancolia magoada com o poeta olhando a barca onde regressa o rei morto. O Encoberto transformava-se em “ver”.
Ao contrário de certos livros que, ainda mal se anunciam ou acabam de se despenhar, às pilhas, no chão das livrarias, já contam com filas ávidas de leitores - e previsíveis vendas em avalancha, “As Quibíricas”, 45 anos, que agora se perfazem, sobre a sua primeira edição, aguardam ainda os seus. Ficam apresentadas. Agora é só reeditar, a bem da cultura portuguesa."Teresa Carvalho, Jornal I, 7.11.2017 

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Uma vigilância eterna

"É provável que Thomas Jefferson nunca tenha dito que "o preço a pagar pela liberdade é uma vigilância eterna", mas não há dúvidas de que outros americanos da sua época o disseram. Quando hoje em dia pensamos nesta frase, imaginamos a nossa própria vigilância justiceira voltada para o exterior contra uma ideia que fazemos dos outros pautada pela insensatez e pela hostilidade. Vemo-nos como uma cidade edificada numa colina, uma fortaleza da democracia, da qual espreitamos em busca de possíveis ameaças vindas do estrangeiro. Mas o sentido da frase era inteiramente diferente: a natureza humana é de tal ordem que a democracia americana tem de ser protegida dos americanos que seriam capazes de tirar partido das suas liberdades com o intuito de a ver derrubada. Na verdade, foi o abolicionista americano Wendell Phillips que disse que "o preço a pagar pela liberdade é uma vigilância eterna". E acrescentou  que " o maná da liberdade popular deve ser colhido todos os dias, caso contrário acaba por apodrecer".
O historial da democracia moderna europeia veio a confirmar a sabedoria dessas palavras. O século XX testemunhou esforços sérios no sentido de expandir  o direito de voto e de instaurar democracias duradouras. Contudo , as democracias que surgiram  após a Primeira Guerra Mundial ( e a Segunda) acabavam não raras vezes por sucumbir  sempre que um partido único alcançava o poder  através de uma  qualquer combinação variável entre eleições e golpe de Estado. Um partido encorajado  pelos resultados  favoráveis de uma eleição ou motivado por uma ideologia , quiçá ambos, poderá mudar o sistema por dentro. Quando os fascistas, os nazis ou os comunistas  se saíram bem nas eleições das décadas de 1930 e 1940, o que daí resultou foi uma combinação de espectáculo, repressão e estratégia selectiva, em que as facções da oposição foram descartadas  uma por uma.  Na sua maioria , as pessoas andavam desatentas, algumas haviam sido presas e outras simplesmente subjugadas.
O protagonista de um romance de David Lodge diz que não sabemos, quando fazemos amor pela última vez, que estamos de facto a fazer amor pela última vez. Votar é algo semelhante. Alguns dos alemães que votaram no Partido Nazi em 1932 tiveram por certo em mente que essas poderiam ser as últimas eleições livres realmente relevantes durante algum tempo, mas tal não foi o caso da maioria. Alguns dos Checos e eslovacos que votaram no Partido Comunista checoslovaco em 1946 teriam provavelmente a consciência de que estavam  a votar a favor  do fim da  democracia, mas na sua maioria  estes votantes  supuseram  que outra oportunidade lhes seria dada. Não há dúvidas de que aos russos que votaram em 1990 não ocorreu que essa seria a última eleição livre e justa na história do seu país, o que de facto ( até agora)  acabou por se comprovar. Qualquer eleição  pode ser também  a última, ou pelo menos a última no decorrer da vida da pessoa que exerce  o seu direito de voto.  Os nazis  permaneceram  no poder até terem perdido uma guerra mundial em 1945, os comunistas checoslovacos até ao momento em que o seu sistema se desmoronou em 1989. A oligarquia russa  estabelecida depois das eleições de 1990 permanece em funcionamento. "
Timothy Snyder, in "Sobre a Tirania - Vinte lições do século XX", Relógio d'Água Editores, Julho de 2017, pp. 24, 25

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Prémio Literário Eugénio Lisboa

"Gente Grave", de Pedro Pereira Lopes, venceu Prémio Literário Eugénio Lisboa
"O moçambicano Pedro Pereira Lopes venceu a primeira edição do Prémio Literário Imprensa Nacional - Casa da Moeda (INCM)/Eugénio Lisboa, que inclui a publicação da obra e o valor pecuniário de cinco mil euros. (A divulgação foi feita, ontem, 21 de Novembro.)
A obra inédita distinguida, por unanimidade, intitula-se "Gente Grave" e, segundo o júri, deveu-se "ao facto de o autor explorar um género pouco trabalhado em Moçambique e de combinar o policial e o fantástico", segundo comunicado divulgado pelo Instituto Camões.
"A correcção, coerência e coesão linguística" da obra de Pereira Lopes, foi também sublinhada pelo júri, que decidiu ainda atribuir uma menção honrosa a "Bebi do Zambeze", de António Manna, realçando a "riqueza do imaginário explorado pelo autor".
O júri foi constituído pelo escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, que presidiu, e ainda por Teresa Manjate, doutorada em Literatura oral e tradicional africana, pela Universidade Nova de Lisboa, e por Alexandra Pinho, artista plástica.
Pedro Pereira Lopes nasceu na Zambézia, em Moçambique, em 1987, é contador de histórias e poeta, e fundou a revista digital de literatura Lidilisha e o "Projecto Ler para Ser".
Mestre em Políticas Públicas pela Escola de Governação da Universidade de Pequim, é docente e investigador no Instituto Superior de Relações Internacionais, em Maputo.
Pereira Lopes é autor de vários livros como "Viagem pelo mundo em um grão de pólen" e "O mundo que iremos gaguejar de cor".
Anteriormente, recebera o Prémio Lusofonia/Município de Trofa e, no ano passado, o Prémio Maria Odete de Jesus, da Universidade Politécnica de Maputo, com a obra infanto-juvenil "O comboio que andava de chinelos", actualmente no prelo.
Ao Prémio INCM/Eugénio Lisboa apresentaram-se 36 candidatos, dos quais 22 entregues em instalações do Instituto Camões, em Maputo, 11, em Nampula, dois na cidade da Beira e um em Lisboa." Lusa , publicado no DN,21.11.2017
Nota da INCM sobre o Prémio Literário Eugénio Lisboa
"A INCM, dando corpo à sua missão de promoção e preservação da língua portuguesa e tendo em consideração a relevância de Eugénio Lisboa, enquanto cidadão e homem de cultura nascido em Moçambique mas também como seu autor, entendeu criar este prémio literário, destinado a seleccionar trabalhos inéditos de grande qualidade no domínio da prosa literária, incentivando desta forma a criação literária moçambicana."INCM

O Homem e o Livro

O HOMEM E O LIVRO - II
Por Eugénio Lisboa
"A mais violenta forma de censura ao livro é a sua destruição física: o livro não é, nesse caso, apenas proibido, ou seja, retirado da circulação – é aniquilado, queimado, de preferência, na praça pública, para exemplo e proveito.
Como já dissemos, os nazis não foram os primeiros a queimar livros, mas souberam fazê-lo com pompa e circunstância. Deram início às suas acções purificadoras, em 1933, quando uma parada de milhares de estudantes, munidos de tochas, deitaram fogo a uma pilha de 20 000 livros, na Universidade de Berlim, perante o Ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, que, simultânea e elegiacamente, proclamava: “A alma do povo alemão pode exprimir-se. Estas chamas… iluminam… o fim de uma era e acendem uma nova.”
Felizmente, nem todos os seres humanos são igualmente inclinados à queima de livros. No outro extremo, poderíamos até citar o filósofo Montaigne, autor dos famosos Ensaios, que, perguntado sobre o que faria, se lhe dessem a escolher entre queimar os seus filhos e queimar os seus livros, respondeu candidamente, que preferiria queimar os filhos. Il y en a de toutes les couleurs.
Seja como for, queimadores de livros houve-os em todos os tempos e de todos os formatos. Mas o pior deles todos talvez tenha sido o primeiro imperador da China, Shi Huang Ti (250 – 210 a. C.), que mandou enterrar vivos 460 académicos e queimar todos os livros existentes no reino, excepto um exemplar de cada um, que mandou depositar na biblioteca real. Mas, mesmo estes, planeou destrui-los antes de morrer, raciocinando que, se todos os registos desaparecessem, a história começaria com ele. De tal modo se tornou odioso com este seu procedimento, que várias gerações, após a sua morte, se vingaram conspurcando-lhe o túmulo.
Houve vários mártires célebres entre os autores de livros: desde Sócrates, que aliás não deixou um único livro, limitando-se a exprimir os seus pensamentos na praça pública, sendo por isso obrigado a morrer, tomando cicuta; passando por Lucano, poeta romano, a quem Nero, ciumento da sua poesia, ordenou que se suicidasse; ou pelo poeta persa Amra Taraja, enterrado vivo por ter escrito um poema em que criticava o rei, a lista dos mártires é interminável. Alessandro Cagliostro apodreceu e morreu numa prisão romana por ter escrito obras consideradas heréticas; o poeta francês André Chénier foi guilhotinado por ter escrito contra o Terror; consta também que o romancista russo Maxim Gorky que, no entanto, teve funeral nacional, foi envenenado por ordem de Staline; John Milton, o autor de Paradise Lost, escapou por pouco de subir ao cadafalso, por ter escrito contra o direito divino dos reis (valeu-lhe alguns amigos terem intercedido a seu favor); Boris Pasternak viu-se obrigado a não ir a Estocolmo receber o Pémio Nobel, sob risco de o não deixarem regressar à Rússia; e Alexander Solzenitsyn viu-se forçado ao exílio na boa esteira de Eurípedes, Aristóteles, Ovídio, Dante, Villon, Voltaire e Victor Hugo.
O fogo purificador está sempre vigilante, por todo o lado: porque, se Hemingway, por exemplo, viu os seus livros queimados pelos nazis, As Vinhas da Ira, de Steinbeck, não precisaram de sair dos Estados Unidos para sofrerem igual tratamento: em 1939, o livro foi queimado pela Biblioteca Pública, de St. Louis, no Missouri. Dizia Milton que quem destrói um livro, destrói a própria Razão e mata a imagem de Deus. Assassinos destes não terão faltado, na história do homem na Terra.
(P. S. – Para maior aprofundamento e mais extensa e variada informação sobre estas picardias do ser humano, aconselharia o livro The Literary Life & Other Curiosities, de Robert Hendrikson, na Penguin Books.)"
Eugénio Lisboa, em Ensaio publicado na Revista Ler nº 147, Outono 2017

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Canção de Outono

Oh, je voudais tant que tu te souviennes
Des jours heureux où nous étions amis
En ce temps-là la vie était plus belle
Et le soleil plus brûlant qu'aujourd'hui.

Les feuilles mortes se ramassent à la pelle
Tu vois, je n'ai pas oublié
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle
Les souvenirs et les regrets aussi.

Et le vent du Nord les emporte,
Dans la nuit froide de l'oubli.
Tu vois je n'ai pas oublié,
La chanson que tu me chantais...

Les feuilles mortes se ramassent à la pelle
Les souvenirs et les regrets aussi,
Mais mon amour silencieux et fidèle
Sourit toujours et remercie la vie.

Je t'aimais tant, tu étais si jolie,
Comment veux-tu que je t'oublie?
En ce temps-là la vie était plus belle
Et le soleil plus brûlant qu'aujourd'hui.

C'est une chanson qui nous ressemble,
Toi tu m'aimais, et je t'aimais
Et nous vivions tous deux ensemble,
Toi qui m'aimais, moi qui t'aimais.

Mais la vie sépare ceux qui s'aiment,
Tout doucement, sans faire de bruit
Et la mer efface sur le sable
Les pas des amants désunis.

C'est une chanson qui nous ressemble,
Toi tu m'aimais et je t'aimais
Et nous vivions tous deux ensemble,
Toi qui m'aimais, moi qui t'aimais.

Mais la vie sépare ceux qui s'aiment,
Tout doucement, sans faire de bruit
Et la mer efface sur le sable
Les pas des amants désunis.
Jacques Prévert


Frank Sinatra, em Autumn Leaves

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

A verdade da escrita.

«Passar da leitura à crítica é mudar de desejo, é deixar de desejar a obra para desejar a própria linguagem. Mas, pelo mesmo acto, é também remeter a obra para o desejo da escrita, que a gerou. Assim gira a fala em torno do livro: ler, escrever, de um desejo para outro caminha toda a leitura. Quantos escritores não escreveram por terem lido? Quantos críticos não leram para escrever? Aproximaram os dois bordos do livro, as duas faces do signo, para que daí saísse uma só fala. A crítica é apenas um momento dessa história em que entramos e que nos conduz à unidade – a verdade da escrita.» Roland Barthes, in “ Crítica e Verdade”, Edições 70, 2007

domingo, 19 de novembro de 2017

Ao Domingo Há Música

Quando romper a manhã,
saibamos  erguer a fonte
ao sol puro.
Em silêncio olhar de frente,
na curva do horizonte,
o novo sol-nascente.
Saibamos recolher-nos 
e, por um longo momento,
pesar,
respirar,
captar as múltiplas vivências
da tranquila alegria
que irá brotar ininterrupta,

quando romper a manhã.
Rui Knopfli,  "Festa", em "nada tem já encanto" 


Acaba de romper a manhã, um novo dia de sol radioso espera para captar o nosso olhar. A música, com os seus acordes, ajudará a brotar a tranquila alegria que se  exige a um dia de domingo.
Daisy's Secret, composição de Havasi, que nos oferece uma excelente interpretação ao piano. Acompanha-o a  Budapest Art Orchestra. A voz é  de Edina "Mókus" Szirtes e  a produção do registo pertence a  Csaba Marjai. 

sábado, 18 de novembro de 2017

A solidão total num nada completo

O Senhor Barata 
Por António Lobo Antunes
"As pessoas têm a ideia que a morte é a solidão total num nada completo. E provavelmente é. Julgo que é. Mais: tenho a certeza que é, mas não somos capazes de conceber isso. Não aceitamos conceber isso. De forma alguma nos resignamos a isso. E assim nasceram as religiões. Que todas elas nos prometem, nos garantem, nos juram a existência do dia seguinte e o tornam mais ou menos aceitável.
George Steiner perguntou-me:
– Sabe porque é que os judeus não se matam?
esperou um bocadinho e como não disse nada respondeu ele por mim:
– Não podem suportar a ideia de não ler o jornal no dia seguinte
e fiquei a olhar para a sua cara lá em baixo
(ele é mais pequeno)
com um sorriso nos olhinhos agudos. Isto não é só verdade para os judeus, claro. Quem
(mesmo aqueles que, como eu, não lêem jornais)
suporta a ideia de não ler o jornal do dia seguinte? Não saber o que vai passar-se? Ficar sozinho num vazio absoluto? As pessoas têm a ideia que a morte é a solidão total num nada completo. E provavelmente é. Julgo que é. Mais: tenho a certeza que é, mas não somos capazes de conceber isso. Não aceitamos conceber isso. De forma alguma nos resignamos a isso. E assim nasceram as religiões. Que todas elas nos prometem, nos garantem, nos juram a existência do dia seguinte e o tornam mais ou menos aceitável. Se até há quem suba ao céu de corpo inteiro. Se até há, como Jesus garantiu ao ladrão, quem hoje mesmo estará connosco no Paraíso. No meu caso quando lá chegar encontro logo o senhor Barata, que faleceu há dias, é que nem ginjas. O senhor Barata a quem daqui a uns tempos vou dar um abraço
– Dê cá mais cinco, senhor Barata
e que costumava comer no mesmo restaurantezinho que eu. Era gordo, pequeno, com um eterno boné na cabeça, colocado numa exactidão de cápsula, de calções, com um saco de cabedal a cair-lhe do ombro esquerdo. Passava o almoço sem companhia, ou antes na companhia do telemóvel e do jornal, que lia todo até os anúncios
(com fotografia)
das vendedoras de carícias a preços em conta e nádegas atlânticas, oferecendo beijos na boca e
(passo a citar)
bum-buns gulosos, cujas dimensões me provocavam um certo receio de ser completamente devorado e ficar na companhia dos colegas da véspera. O senhor Barata tinha sido tipógrafo, mostrou-me logo à primeira o seu cartão de membro do Partido Comunista que, sei lá a razão, imaginava mais castos e afinal malandrecos, e um retrato dele em Maputo, fardado de soldado e com um cão da Polícia Militar pela trela, garantindo-me que, como eu, também havia passado por África a defender o Império, e decidiu tratar-me logo por tu. Respondi-lhe
– Você se quer falar comigo diz Sua Alteza
mas a sua solidão comoveu-me. Morava sozinho não percebi bem onde, cheirava a infelicidade que tresandava, adoecera tempos antes e a quimioterapia enfraquecia-o muito:
– Um cancro do pulmão, sabe?
como por acaso não sabia comovi-me mais. Apontou o boné
– Já me atingiu a cabeça
mostrou-me a papelada médica e eu lá tentava animá-lo o melhor que podia sobre os nossos pratos de peixe espada. Que eu percebesse não tinha mulher nem filhos, nunca lhe vi nenhum compincha e lá íamos falando nisto e naquilo sobre as nádegas do jornal onde às vezes me parecia que um Lenine a espreitar, embora não se sentisse com ânimo para frequentar o Partido nem as meninas. Comia no restaurantezinho, fazia os tratamentos e depois seguia para casa, tão solitário como um cacto no Pólo Norte. Não se queixava, ia aguentando com dignidade a sua cruz, caminhava na direcção de uma noite secreta, sem queixas, sem azedume, sem tragédia, falando-me dos seus tempos de tipógrafo e do seu respeito pelos livros, até já lera um dos meus
(percebia-se logo que mentia)
ou um bocado de um dos meus, mas era tudo tão difícil agora. Disse-lhe que era tudo difícil desde o princípio e ele, em resposta, encheu-me dos seus tempos de África, onde ainda convertera dois ou três cabos ao marxismo-leninismo que continuava a apoiar sem reservas, embora crítico e lúcido. Gostou que eu também houvesse andado por esses lados, mas a possibilidade da morte levara-o a abandonar o ateísmo, com os rabos do jornal na ideia, que sempre ajudam, Alteza, pensa-se que não mas ajudam. Depois de uns dias sem aparecer no restaurantezinho perguntei por ele ao dono que me segredou
– O senhor Barata morreu
ou seja encontraram-no no chão, em casa, ainda vivo, e foi acabar ao hospital. Custa-me dar com outro freguês na sua mesa agora. Eu gostava do senhor Barata. Não pensem que não: gostava mesmo e tenho pena que não possa ver, no periódico, os rabos dos amanhãs que cantam. Escrevi isto num tom propositadamente ligeiro a fim de me impedir de secar a ramela de uma lágrima. Se eu tivesse um boné como o dele enfiava-o na cabeça numa exactidão de cápsula."
António Lobo Antunes, em Crónica publicada na VISÃO 1288 de 9 de Novembro de 2017
Ilustração: Susa Monteiro

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Anton Pavlovitch Tchékhov

Notre ami Tchékhov
Par Jean Louis Kuffer 
"Il y a 112 ans, le 2 juillet 1904, Anton Pavlovitch Tchékhov s’éteignait dans une station thermale de Forêt-Noire, à l’âge de 44 ans, vingt ans après le premier crachement de sang que la tuberculose lui arracha.
Durant la nuit du 1er juillet, Tchékhov se réveilla et pria son épouse Olga Knipper, grande comédienne de l’époque, d’appeler un médecin. Lorsque celui-ci arriva à deux heures du matin, le malade lui dit simplement «Ich sterbe», but une flûte de champagne, s’étendit sur le flanc et expira. La suite des événements, Tchékhov aurait pu la décrire avec la causticité de ses premiers écrits. De fait, c’est dans un convoi destiné au transport d’huîtres que sa dépouille fut rapatriée à Moscou, où l’accueillit une fanfare militaire qui jouait une marche funèbre. Or celle-ci n’était pas destinée à Tchekhov mais à un certain général Keller, mort en Mandchourie. Une foule immense n’en attendait pas moins, au cimetière, le cercueil de l’écrivain porté par deux étudiants…
En janvier de la même année, la dernière pièce de Tchékhov, La cerisaie, avait connu un succès phénoménal. L’interprétation de la pièce, à laquelle le metteur en scène Stanislavski avait donné des accents tragiques, déplut cependant à Tchékhov qui s’exclama: « Mais ce n’est pas un drame que j’ai écrit, c’est une comédie et même, par endroits, une véritable farce ! ».
Or, le malentendu allait perdurer. L’image d’un poète des illusions perdues, se complaisant dans une peinture douce-amère de la province russe, survit ainsi à travers le cliché d’un « doux rêveur», alors que la véritable figure de ce fils de petits commerçants né en 1860 est celle d’un observateur implacable de la réalité.
Marqué en son enfance par un père aussi religieux que violent, dont la faillite a fait de lui un soutien de famille précoce, Anton Pavlovicth fut, en tant que médecin (dès 1884) aux premières loges de la misère russe, trop lucide cependant pour croire à la révolution. Jamais dupe des idéologies, il n’en a pas moins une conscience sociale aiguë. Dès son établissement de médecin, il arrondit ses fins de mois avec des récits souvent mordants qui lui valent un vif succès. En 1890, en dépit de sa maladie, il entreprend un séjour d’un an au bagne de Sakhaline afin de porter témoignage sur le sort des déportés. Toute sa vie, d’ailleurs, Tchékhov multipliera les actions de bienfaisance, de constructions d’écoles en soins gratuits. Ses nouvelles d’abord, son théâtre ensuite, le feront reconnaitre de son vivant comme une des gloires nationales russes, à l’égal d’un Dostoïevski ou d’un Tolstoï.
Or ce qui frappe, aujourd’hui, c’est que ce peintre souvent noir de la société russe et des comportements individuels reste actuel et pertinent, notamment dans son théâtre (lire encadré). Contre toute emphase et tout héroïsme factice, Tchékhov présente la réalité comme elle, est, sans jamais l’enjoliver. « Il n’y a que le sérieux qui soit beau », écrivait-il, mais en souriant. Et le rire était sa défense contre le désespoir.
Un autre Tchékhov
Au demeurant il n’y a pas que le rire et le désespoir, chez Anton Pavlovitch, mais aussi cette joie profonde qui traverse les siècles, retrouvée dans celui de ses récits qu’il disait préférer entre tous: L’étudiant, mystique plongée en 5 pages dans la profondeur du Temps.
Au soir du Vendredi saint, revenant de chasse où il vient de tuer une bécasse, le jeune Ivan Vélikopolski s’arrête auprès de deux veuves dans leur jardin, auxquelles il raconte soudain la nuit durant laquelle Pierre trahit le Christ à trois reprises, comme annoncé. Et voici que les veuves sont bouleversées par son récit, comme si elles s’y trouvaient personnellement impliquées, et voilà que le jeune fils de diacre, étudiant à l’académie religieuse, se trouve rempli d’une joie mystérieuse alors même qu’il constate l’actualité de la nuit terrible:
« Alors la joie se mit à bouillonner dans son esprit, si fort qu’il dut s’arrêter un instant pour reprendre son souffle. Le passé, pensait-il, était lié au présent par une chaîne ininterrompue d’événements qui découlaient les uns des autres. Il lui semblait qu’il voyait les deux extrémités de cette chaîne: il en touche une et voici que l’autre frissonne
« Comme il prenait le bac pour passer la rivière, et plus tard comme il montait sur la colline en regardant son village natal et le couchant où brillait le ruban étroit d’un crépuscule froid et pourpre, il pensait que la vérité et la beauté qui dirigeaient la vie de l’homme là-bas, dans le jardin et dans la cour du grand-prêtre, s’étaient perpétuées sans s’arrêter jusqu’à ce jour, et qu’elles avaient sans doute toujours été le plus profond, le plus important dans la vie de l’homme, et sur toute la terre en général; et un sentiment de jeunesse, de santé et de force – il n’avait que vingt-deux ans – et une attente indiciblement douce du bonheur, d’un bonheur inconnu, mystérieux, s’emparaient peu à peu de lui, et la vie lui paraissait éblouissante, miraculeuse et toute emplie du sens le plus haut ».Jean Louis Kuffer, publicado em "Arrêt sur Info", 12 .08. 2016 
(Anton Tchékhov, L’étudiant, traduit du russe par André Markowicz dans le recueil indispensable réunissant dix-neuf nouvelles et intitulé Le Violon de Rotschild, paru chez Alinea en 1986 avec une préface lumineuse de Gérard Conio).

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Perplexidades


Existe um deus no início, ou pelo menos no fim, de qualquer alegria.
E. M. Cioran, Do inconveniente de ter nascido, Letra Livre, p.7


Women's Choir , no Michelberger Music , Berlim 2016

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Hoje

  
A vida é uma criança que é preciso embalar até que adormeça.
Deus concedeu-nos o dom de viver; compete-nos  a nós viver bem.
                                                                      Voltaire

O Miguel faz 11 anos. É um menino doce e inteligente. Como o irmão, o Ricardo, nasceu em Novembro, um mês de muitos nascimentos. 
O Francisco, um homem inteligente e bom, morreu, ontem, à noite. Tinha 62 anos. A morte apanhou-o de surpresa.
Festeja -se um nascimento e chora-se uma morte. Somos a ligação entre dois pontos. Nasce-se e morre-se. Pelo meio vive-se. Estamos ou  somos a passagem. 
Parabéns ao Miguel. Que sejas muito feliz. 
Adeus , Francisco. A  saudade permanecerá. 

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Neste Algarve


Assertivo e imponente, o Sol nasceu. Mas as nuvens, relutantes na supremacia do astro-rei, invadiram o palco. A montanha, lá para o Norte, encheu-se de salpicos brancos e acinzentados. O mar, ainda azul e liso, vê-se , agora, encimado pela ameaça nebulosa que lhe tolda o horizonte. Os dias de miragem estival estão a findar. O inverno promete aparecer neste Algarve de rendida amenidade.

domingo, 12 de novembro de 2017

Ao Domingo Há Música

Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa e nua do que é frugal. Quero comer devagar e gravemente como aquele que sabe o contorno carnudo e o peso grave das coisas.
Não quero possuir a terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem dominar porque quero ser: esta é a necessidade.
Com veemência e fúria defendo a fidelidade ao estar terrestre. O mundo do ter perturba e paralisa e desvia em seus circuitos o estar, o viver, o ser. Dai-me a claridade daquilo que é exactamente o necessário. Dai-me a limpeza de que não haja lucro. Que a vida seja limpa de todo o luxo e de todo o lixo. Chegou o tempo da nova aliança com a vida.
Sophia de Mello Breyner Andresen, "inédito"


A beleza e a  intensidade de duas vozes que se conjugam em harmoniosa aliança , criando um  grande momento musical. 
Andrea Bocelli & Elisa, em  La Voce Del Silenzio.

sábado, 11 de novembro de 2017

Glosa à chegada do Outono


O corpo não espera.Não.Por nós
ou pelo amor.Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede,uma memória,tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera;este pousar
que não conhece,nada vê,nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo!E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.

Jorge de Senade Fidelidade(1958), in Poemas escolhidos de Jorge de Sena, Círculo de Leitores,p.84, 

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Um ar de miragem

A PRESSÃO DOS MORTOS
"Fechas a mala do carro cheia de bagagem. E de súbito apercebes-te de que não é novo o gesto. Muitas vezes o viste já repetir. A muitas horas do dia, mas nunca como num fim de tarde. Qualquer que fosse a paisagem, a mesma paisagem: a terra calcinada, o canto das cigarras, o ar espesso do vapor a provocar a rarefacção das coisas vistas e a dar-lhes um ar de miragem. Fecha-se o tampo do caixão sobre a cara conhecida para todo o sempre. Nem se levanta o problema da eternidade. Esta terra é que tu amaste com todas a contrariedades e os problemas quotidianos. Amaste homens que por vezes talvez te tenham dado na cara e eram deliciosamente imperfeitos como tu. E tiveste de te despedir deles. Já não eram daqui. Já tinham problemas de mortos. Já se falava deles no imperfeito e não no presente. Mudou um simples tempo de verbo e tudo mudou. Um último olhar a essa caixa de mau gosto. Gostarias de atirar um torrão, como em criança, para esconjurar os maus sonhos. Mas falta-te a inocência. Decisivamente, tens de fechar com força a mala do carro. E pedes que te ponham os pneus à pressão 22. A pressão dos mortos."

CÓLOFON OU EPITÁFIO

Trinta dias tem o mês
e muitas horas o dia
todo o tempo se lhe ia
em polir o seu poema
a melhor coisa que fez
ele próprio coisa feita
ruy belo portugalês
Não seria mau rapaz
quem tão ao comprido jaz
ruy belo era uma vez
Ruy Belo, in Todos os Poemas, vol. 1, Assírio & Alvim, 2.ª edição, 2004