domingo, 31 de janeiro de 2021

Ao Domingo Há Música

Há uma música do povo

Há uma música do povo,
Nem sei dizer se é um fado —
Que ouvindo-a há um chiste novo
No ser que tenho guardado...

Ouvindo-a sou quem seria
Se desejar fosse ser...
É uma simples melodia
Das que se aprendem a viver...

E ouço-a embalado e sozinho...
É essa mesma que eu quis...
Perdi a fé e o caminho...
Quem não fui é que é feliz.

Mas é tão consoladora
A vaga e triste canção...
Que a minha alma já não chora
Nem eu tenho coração...

Se uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido...
Canto de qualquer maneira
E acaba com um sentido!
9-11-1928
Fernando Pessoa, Poesias Inéditas (1919-1930). 

A música canta-se em português, neste domingo de confinamento.  Diz o poeta que, apesar de um erro de  sonho ido , canta .  E quem canta , liberta-se . Mariza dá voz a este poema: não para se libertar , mas para nos encantar. E outras vozes se lhe juntam. Talvez assim, o dia possa ser mais harmonioso ao minorar a estridência deste mês de Janeiro que finda.
Mariza, em Há uma música do povo, no Concerto de Lisboa.
 
 Dulce Pontes, em Fado Português,  com Música de Alain Oulman e Letra de José Régio.
 
Cesaria Evora & Marisa Monte, em  É Doce Morrer No Mar.
Gisela João , em  Há palavras que nos beijam, com  Música de Alain Oulman e  letra de Alexandre O' Neil, do Álbum " Nua".
 

sábado, 30 de janeiro de 2021

Sobreviver à Peste ...

As pestes que têm assolado o mundo marcaram a história da Humanidade. Um rasto de desespero, de alucinação , de desaire que culmina sempre numa dura e pesada mortandade. O comportamento humano, perante esta epidemia, tem-se revelado quase sempre muito idêntico, apesar de ocorrer com séculos de diferença. 
Vivemos , neste momento, um dos momentos mais trágicos e difíceis do nosso tempo. Uma epidemia que ataca por dia milhares de vítimas e mata centenas, em Portugal. Após o seu aparecimento , em Março de 2020, o país reagiu em concertado autoconfinamento que se traduziu numa forte redução de vítimas. Entretanto, em poucos meses tudo se alterou. As razões talvez sejam de um crescente laxismo, da inoperância governamental, da ausência de planificação , de critérios  objectivos de conduta ou porque o Homem sempre tende a criar o paraíso,  quando o inferno se insinua. 
A peste alojou-se e desenvolveu-se em novas variantes. Portugal é , em Janeiro de 2021 , um país governado pela Peste. O inferno está aí. E o homem tenta ainda acreditar que o paraíso está na esquina que tão bem conheceu.
Se visitarmos a História da Humanidade ou as grandes obras da Literatura Universal,  poderemos constatar quanto se repetem estas atitudes, face a uma epidemia que surge virulenta e feroz.
Em 1665, Londres  era a capital do maior Império do mundo. E não parava de crescer e enriquecer. Até que a peste negra — que dois séculos antes tinha matado quase metade da população europeia — voltou. Ao longo daquele ano, a grande praga de Londres matou cerca de 200 mil pessoas. O relato dessa epidemia sobreviveu  no extraordinário livro Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe, publicado em 1772.
Ao longo desse relato, verifica-se a similitude do comportamento humano perante a brutalidade da doença
A morte estava diante de seus olhos e todo mundo começou a pensar em seu túmulo, não em festas e diversões.    (...)        Tal é o temperamento precipitado do nosso povo que, diante do primeiro pavor da epidemia, as pessoas evitavam-se umas às outras e fugiam das casas com medo. Espalhando-se a noção que a doença não era mais tão contagiosa como antes e que contraí-la já não era fatal, o povo adquiriu uma coragem tão precipitada e tornou-se tão despreocupado consigo mesmo que não considerava a peste mais que uma febre comum. Ou nem mesmo isso. ( ...) Quando se aproximou o fim, os corações dos homens estavam tão endurecidos e a morte era tão constante diante de seus olhos que já não se preocupavam tanto com a perda de amigos (…). O tempo acostumou-os a tudo aquilo e pouco depois todos se arriscavam em toda parte, sem hesitação.
Poderíamos citar ou extrair alguns excertos da notável obra de Albert Camus, A Peste, publicada em 1947. Não o faremos . Certamente será um exercício de boa leitura para aqueles que não a conhecem ou se a conhecem ter um motivo  para uma curiosa releitura. Em contrapartida e  para completar este tema ,  apresenta-se uma  retrospectiva, através dos artigos que se seguem, retirados do site referenciado:  
 

Como Veneza sobreviveu à Peste Negra, a pior epidemia de todos os tempos
por Luiza Antunes
"Em 1348, a peste negra atingiu a população de Veneza pela primeira vez. Entre 1361 e 1528, a peste retornou por vinte e duas vezes para colectar mais almas. Mas nada os prepararia para os mortíferos anos de 1575 a 1577, quando quase 50 mil pessoas morreram vítimas de um novo surto. O último caso das epidemias foi entre 1629 e 1631. Na época, mais um terço dos habitantes da cidade perderam a vida.
A peste negra, ou peste bubónica varreu a Ásia e a Europa e transformou a realidade desse último continente, causando mudanças sociais, económicas e religiosas. Uma das pandemias mais mortíferas da história da humanidade, espalhada por ratos e pulgas, mas atribuída ao castigo divino. O impacto  na história de Veneza foi tão grande que até hoje o seu fim é lá celebrado .

Veneza e os lazarettos
A peste é conhecida como bubónica ou negra por conta de seus efeitos no corpo. O primeiro sintoma era a febre. Em pouco tempo, os gânglios começavam a inchar a ponto de ficarem grandes como uma maçã. Depois, manchas negras surgiam no corpo, nas pontas dos dedos e nos lábios. Até cinco dias após o surgimento dos sintomas, a maioria dos infectados morria.

Veneza no sec. XV
Como a Sereníssima República de Veneza era uma cidade comercial e um dos principais portos do mundo na época, a peste negra parecia nunca deixá-la a salvo. Por isso, os habitantes locais tiveram que ser criativos para tentar conter o risco da doença.
Foi em Veneza que surgiram os primeiros lazarettos do mundo. Os lazaretos, em português, eram hospitais isolados, ou hospitais-colónia, espaços para onde os doentes eram enviados. O Lazaretto Vecchio foi construído em 1403, numa ilha isolada. Muros altos, grandes quartos e camas que abrigavam três ou quatro doentes de cada vez. Se fosse mandado para lá, tinha 90% de probabilidade  de morrer.

O Lazaretto Vecchio funcionou até 1630, não só para vítimas da peste, mas também como um leprosário. Desde 2004, arqueólogos já desenterraram mais de 1500 esqueletos de pessoas que morreram entre os séculos XV  e XVII. Muitos mais podem ser encontrados, dada a taxa de mortalidade ali, que chegou a 500 mortos por dia no século XVI.

Como surgiu o termo quarentena?
Também foi em Veneza que surgiu o conceito e a prática da quarentena. O termo vem do italiano quaranta giorni, ou, quarenta dias. Na epidemia do século XVI, qualquer navio mercante que parasse em Veneza era inspeccionado na ilha da quarentena. Se uma única pessoa fosse suspeita de estar doente, toda a tripulação ficava ali por 40 dias.
Essa técnica mais tarde começou a ser adoptada em diversas cidades portuárias e foi considerada uma das medidas mais eficientes para conter a peste.


Além de isolar os doentes, havia também os chamados médicos da praga, que usavam as icónicas máscaras com o nariz longo. Esse modelo foi criado por um francês. A ideia era que elas purificassem o ar com ervas aromáticas e tentassem impedir que a infecção se espalhasse – o que claramente não condizia com a realidade da doença, mas sem querer os protegia das pulgas e do contacto com fluídos contagiosos.
Eles também acreditavam incorrectamente que poderiam curar as vítimas lavando-as com água salgada da laguna.

As festas pelo fim da peste em Veneza
Em 1575, o Doge de Veneza prometeu construir uma grande igreja para glorificar Cristo, caso a epidemia passasse. Apesar do sistema de quarentena ter sido a razão do sucesso, era a religião que movia as pessoas. E assim, a pedra de fundação da Igreja do Redentor foi colocada na Ilha Giudecca.

Festa del Redentore

Il Redentore foi desenhada por um dos principais arquitectos italianos da época, Andrea Palladino. O facto da igreja ficar numa ilha tem o poder simbólico de um ritual religioso. É preciso cruzar a água, uma forma de purificação, para chegar até ali.
Essa tornou-se uma das características de uma tradição que já dura mais de 440 anos. No terceiro sábado de Julho, uma ponte de barcos temporária até a ilha é construída e inaugurada. Na noite de domingo, as pessoas da cidade reúnem-se à beira da lagoa, comendo e bebendo, para assistir a 25 mil fogos de artifício que iluminam a cidade – uma comemoração, mesmo que muitos hoje não saibam, de que o tempo de escuridão e morte lhes deixou.

Festa della Madonna della Salute


Alguns anos mais tarde, em 1630, mais uma onda da peste tomou Veneza e, num ano, mais um terço da população morreu. E , de novo, as pessoas acreditavam que era a religião que os salvaria: romarias e procissões se repetiam, mas a doença e as pulgas não paravam de se alastrar. Então, resolveram fazer a mesma promessa que havia dado certo sessenta anos antes: o senado veneziano decretou a construção de uma nova igreja. O templo seria dedicado à Virgem Maria, considerada a protectora da república.
A Igreja para a Madonna della Salute foi construída no distrito de Dorsoduro, na Punta della Dogana, que fica bem entre o Grand Canal e o canal da Giudecca. A igreja Salute também é o centro de uma comemoração pelo fim da peste negra. A Festa della Madonna della Salute ocorre no dia 21 de Novembro, com uma parada da Praça de San Marco até a Salute. Nesse caso, também é construída uma ponte temporária para cruzar o Grand Canal.
   
A história da Peste Negra

As estimativas variam, mas acredita-se que entre 75 a 200 milhões de pessoas morreram na Europa na primeira fase da pandemia que ocorreu durante a Idade Média, de 1347 a 1351. O assustador total de 25 milhões de pessoas já havia sucumbido na China, quinze anos antes da doença chegar aos portos europeus. Índia, Síria e Arménia também foram cobertas de mortos.
Causada pela bactéria Yersinia pestis, que é transmitida por pulgas e vive endemicamente em ratos e outros roedores, a peste negra surgiu primeiro na Ásia, graças a mudanças climáticas que fizeram com que os ratos pretos saíssem das planícies em direcção a áreas populosas. Segundo epidemiologistas, alguns túmulos de 1338, no Quirguistão, com referências à peste, marcam o início da infecção.

As hordas do exército mongol de Gengis Khan, que conquistou boa parte do território da Eurásia, da China à Ucrânia, contribuíram para espalhar a doença. Os mongóis teriam sido infectados na China e depois infectado os ratos nas planícies da região que dominaram. Daí, para chegar à Europa Ocidental há uma lenda.
Dizem que alguns mercadores de Génova estavam numa cidade portuária na região da Crimeia, hoje disputada entre a  Rússia e a Ucrânia, quando a cidade foi cercada pelo exército mongol. Como uma tentativa de furar o cerco, os mongóis fizeram uso de uma arma biológica rudimentar: catapultaram para dentro dos muros da cidade corpos de mortos com a peste bubónica. Os mercadores de Génova conseguiram fugir, mas levaram consigo a doença. Quando desembarcaram em Constantinopla e por várias cidades da Costa Mediterrânica, não sabiam que estavam espalhando terror para o resto do continente.

Mapa de Flappiefh, publicado originalmente em “Natural Earth:
The origin and early spread of the Black Death in Italy:
 first evidence of plague victims from 14th-century
Liguria (northern Italy) maps by O.J. Benedictow” – CC BY-SA 4.0

As caravanas da Rota da Seda, que ligava  Europa, China e Oriente Médio, só contribuíam para que toda essa parte do mundo vivesse ondas de infecções. Mesmo quando cidades recusavam a entrada de navios, os ratos escapavam para a terra pelas cordas. Até hoje, existem roedores infectados vivendo nas planícies que um dia foram dominadas pelos mongóis. E isso também explica por que tantas vezes a peste voltava a causar grandes epidemias: um reservatório da infecção estava ali, na Ucrânia. Assim, a cada nova geração não imune que crescia, havia novamente um espaço de pessoas vulneráveis para propagar a infecção.
As epidemias de peste negra surgiram até ao século XIX, sendo as mais significativas na China e Índia. Até hoje, no entanto, ainda existem casos de infecção em regiões onde há roedores portadores da doença que, actualmente, é tratável com antibióticos.
Esse post foi inspirado no excelente material multimedia produzido pela Google Arts and Culture em parceria com a UNESCO.
Artigos de Luiza Antunes, publicados  no site "360 meridianos" em 04-04-2018 e actualizados em 21-04-2020.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Contra a nossa tristeza e ansiedade

 

Contra a nossa tristeza e ansiedade
por Vamberto de Freitas

Porém, as palavras são o que temos/e só com elas ao nosso dispor/iremos fazer o que podemos:/dar ao nosso mundo alguma cor.

Eugénio Lisboa, poemas em tempo de peste

"Muito tenho escrito sobre a obra prolífica e de grande alcance, quer no ensaísmo, volumes de diários, memórias e poesia. Para mim, tornou-se um mentor, tal como Edmundo Wilson na América, com a sua eloquente prosa, e, sim, o humor que também o mais famoso e respeitado crítico americano dirigia a si próprio e a outros, especialmente nalguma da sua poesia. Há aqui uma diferença grande: enquanto Wilson nunca foi levado a sério neste género de escrita, Eugénio Lisboa já recebeu grande reconhecimento da sua poesia com o livro de há alguns anos A Matéria Intensa. Reconhecido internacionalmente, foi-lhe conferido um doutoramento honoris causa pela Universidade de Aveiro, onde leccionou como Professor Catedrático Convidado durante alguns anos, assim como pela Universidade de Nottingham, da Grã-Bretanha, onde viveu 17 anos como conselheiro cultural na nossa Embaixada em Londres. Não me vou alongar mais com a sua numerosa bibliografia, só dizer que o especialista sobre a obra de escritores como José Régio e Jorge de Sena já tem a apreciação superior da comunidade intelectual de língua portuguesa e estrangeira, e poucos entre nós conhecerão as mais variadas literaturas do mundo, entre as quais a francesa e anglófona predominam e são constantemente citadas nos seus escritos em quase todos os géneros. Em pessoa, muito falei e aprendi com ele em esporádicas conversas na Costa da Caparica, quando ele visitava a sua amiga Teresa Martins Marques, e depois num ou dois almoços na sua casa de São Pedro do Estoril. Falamos à distância sobre um pouco de tudo com alguma frequência. Escreve agora estes poemas satíricos, cómicos, destemidos, com a sua ferve de sempre, que nunca poupa situações caricatas, e mesmo determinadas figuras na literatura e em outros sectores públicos da nossa sorte em todos os tempos, agora coléricos e de “peste” que nos ameaça a todos com doença e morte. Já passou os seus grandes desgostos e dores pessoais, mas nada disso o verga ao que temos por “destino”. Poemas em tempos de peste não é só helariante, é uma gargalhada para se opor à tristeza e ansiedade que todos sentimos no confinamento forçado e sem quase a convivência de amigos e conhecidos.
Nunca se ri dos que já sofrem na pele o maldito vírus: ri-se da pretensiosidade inconsciente de outros, de Christine Lagarde (A Senhora Christine Lagarde/acha que os velhos vivem de mais;/ pra que a economia se resguarde/há que apressar os ritos finais); Gonçalo M. Tavares (o que diz não faz sentido/e põe-me os olhos em bico) por com 50 anos de idade já ter alguns 60 livros que, goza Eugénio, nada dizem, e ainda de Pinto da Costa (mas a pandemia estraga o engenho/e faz-nos uma data de negaças/que fornicam o mais completo empenho), porque o futebol de ontem já não é possível hoje. O resto são as suas boas memórias em África, fazendo chamamentos a antigos amigos na sua Lourenço Marques do passado, alguns dos quais já não estão entre nós, como, por exemplo os inesquecíveis Reinaldo Ferreira e Rui Knofli. De resto, vai ainda à cabeça de Nuno Melo, que Eugénio diz ser do Cê Dê Esse. Por outro lado, dá pancada noutros pequenos partidos, como o Chega, e a jovens conservadores (Não há coisa mais ridícula/que ser jovem de direita/a esse nem a clavícula/sequer se lhe aproveita!). Um escritor da velha guarda não desarma nunca nestes poemas. Ficam-lhe, em termos positivos ou de elogio, Camões, a língua portuguesa e um lamento sobre a sorte e a solidão de Fernando Pessoa em vida e na morte em Lisboa (plantado em pedra aqui no Chiado./Palhaço de turistas me fizeram,/ só, entre papalvos, alarpardado!…). Eugénio Lisboa tem, uma vez mais, uma escrita totalmente única entre nós: ninguém teme na literatura nacional ou de além fronteiras. Num dos seus ensaios, publicado mais tarde noutro volume, confessa: relembra, só como exemplo, que Jorge Amado tinha sido uma das suas referência maiores em jovem, mas anos depois corrigiu essa atitude para nos dizer do seu quase afastamento da obra do autor brasileiro. Em Portugal, nos últimos anos tem levado à parede nomes de grande “prestígio” entre nós, como António Lobo Antunes, e, com mais azedume subtil, como noutro texto que não este, a Eduardo Prado do Coelho, ainda em vida e até mesmo quando este já se encontrava sepultado há um bom tempo. No entanto, nunca poupa elogios ou meiguice ao seu passado e às pessoas da sua vida, com grande destaque saudoso da sua mulher Maria Antonieta, aos seus autores eleitos, e à sua única companheira de agora, a gata Ísis e as suas traquinices nesta mesma poesia carregada de sátira ardente e humor generalizado, em versos fulminantes e sempre numa linguagem livre do habitual jargão ou teorias da literatura em moda. É, uma vez mais, mestre na citação de inúmeros escritores quando quer reforçar um ponto de vista sobre determinados textos críticos os ensaístas. Os leitores, mesmo os que só se ficam pela sua coluna no JL lisboeta, sabem muito bem disto. As crónicas e ensaios de outro livro publicado pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em 1996, para além de tudo mais que menciono aqui, Eugénio Lisboa reforçou indelevelmente a sua credibilidade e capacidade literária. Poemas dos anos da peste indica que andamos todos rodeados dela, mesmo que de outra natureza, desde a sua juventude em Lourenço Marques (nunca o vi escrever “Maputo” nos anos seguintes), já em Portugal. Neste poemas em tempo de peste escreve em formas várias, decassílábicos (mais ou menos, como ele próprio afirma), em redondilhas maiores, heptassílabos, sonetos, e ainda no que ele chama pentassílabos. Vai desde as antigas figuras, como referi, a outros dos nossos dias em acções variadas na nossa sociedade.
Quando o seu grande amigo Rui Knopli, repito aqui, faleceu, Eugénio Lisboa lutou convictamente para que o seu espólio fosse poupado e devidamente arquivado. Eis aqui o seu outro lado de generosidade e respeito absoluto pelos que o mereciam em quaisquer circunstâncias.
“Em tempos de peste e de confinamento – escreve o autor na introdução ‘Poemas para baratinar a peste’ – mais ou menos rigoroso, tendemos todos à melancolia, quando não ao desespero. É nestas alturas que se recorre e deve recorrer ao humor e à faceirice, para desanuviar o ambiente. [Recorda o célebre Decamoron de Giovanni Boccassio, 1313-1375], segundo o qual aqueles protagonistas, para fugirem aos horrores e ao perigo da peste negra, se isolaram num cerco isolado a contarem-se histórias ladinas, picarescas, apimentadas, licenciosas, para afastarem do espírito a mortandade que, lá fora, assolava as populações”.
Eugénio Lisboa não é só um dos nossos grandes críticos e ensaístas literários, como de tudo o resto que lhe causa asco e desgosto. Como já ficou vincado aqui, vai além da literatura, desde políticos aos mais corruptos em altas posições, especialmente em bancos e outros sectores. O ter vontade de rir e da sátira não é novo, especialmente a partir de Eça de Queirós e outros da mesma geração. Eugénio Lisboa enxerga toda a nossa e outras sociedades que conhece de perto ou intimamente. Por entre as suas muitas palavras de acidez, vai sempre ao ponto com o resto. A sua disponibilidade generosa são firmes em defender os mais pobres e indefesos, os mais velhos ou os que caíram na rua sem rede. Rebelde e humanista durante uma longa vida, que felizmente continua a passear-se vivamente ali nos arredores mais apetecíveis de Lisboa, não desarma nunca perante a escuridão que tem sido parte das nossas vidas, e agora ameaça-nos com uma cama no hospital e, nalguns casos, a morte. Nunca se rende a nada e ninguém. Do poema “Versinhos De Um Poeta Com Algumas Dificuldades de Conjugação”, e em que ele brinca com e louva a própria língua portuguesa, com uma das suas muitas notas de rodapé para divertir os seus leitores, pede como que uma desculpa a quem ler este seu livro: “com um muito humilde pedido de desculpas por isto não ser tão bom como, digamos, Os Lusíadas”:

O Trump, fodido, irá-se

embora se a peste vá-se.

Que chatice se ele ficasse

no governo e nos lixasse!

Que bom se ele se fixasse

na sua Torre e se calasse!

Se o Almada ainda falasse,

diria que o Trump, sem classe,

cheira mal da boca – Hélas!

O semanário Expresso resolveu há umas semanas publicar alguns outros destes poemas. Fizeram bem. Imagino que alguns dos seus leitores muito se riram, e por uns momentos esqueceram a nossa presente situação e tragédia. Rir de nós próprios é outro sinal de saúde e alguma esperança que nem tudo vai correr mal.
Vamberto de Freitas, no blog As duas margens, em 20 de Novembro de 2020
                                              .....................  " .........................
Eugénio Lisboa, poemas em tempo de peste, Lisboa, Guerra & Paz, 2020.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Um tambor diferente


Romance "Um tambor diferente", de Melvin Kelley, editado em Portugal ao fim de 60 anos
« Um tambor diferente, do escritor afro-americano William Melvin Kelley, publicado em 1962, chega agora a Portugal, trazendo um novo olhar sobre a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, uma parábola escrita por um negro e narrada por brancos. O romance de estreia de William Melvin Kelley, publicado dois anos depois de "Mataram a cotovia", de Harper Lee, retrata igualmente as questões raciais vividas nos primórdios do movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, e catapultou o seu então jovem autor de 23 anos - um afro-americano membro do Movimento das Artes Negras -, para a galeria dos clássicos americanos. Entretanto o livro caiu no esquecimento, até terem sido feitas algumas reedições em 2018, no ano a seguir à morte do escritor, que restabeleceram o interesse pelo trabalho ficcional de Melvin Kelley, e que levaram a revista The New Yorker a classificá-lo como o "gigante perdido da literatura norte-americana". Quase 60 anos depois da publicação original, a Quetzal edita-o pela primeira vez em Portugal, sendo também a primeira obra da autoria do escritor a chegar ao mercado livreiro nacional. Traduzido e prefaciado por Salvato Teles de Menezes, a história irradia de um acontecimento central: num dia de Junho de 1957, um agricultor negro, Tucker Caliban, descendente de um mítico escravo rebelde, conhecido como "o Africano", salga as suas terras, abate o cavalo e a vaca, incendeia a própria casa e parte para o norte, com a mulher grávida e o filho pequeno. Com este gesto dá origem a um inesperado êxodo de toda a população negra do Estado, um episódio de desobediência não violenta a que assiste um grupo de brancos, estupefactos e impotentes, que se questionam sobre que sentido dar a esta partida espontânea e quais as consequências para a cidade, subitamente desprovida de parte significativa dos habitantes. A história é contada precisamente pelos que restam, os brancos, quase todos pertencentes à família Wilson, um clã de proprietários de escravos no passado, cujo último herdeiro, David Wilson, vendeu uma parcela da antiga plantação ao criado Tucker Caliban, ou seja, as terras em que os pais e avós deste viveram em escravidão. "Aqui reside, desde logo, um dos aspectos fundamentais que distinguem este romance de outros com o mesmo objectivo: embora escrito por um negro, quem tem voz na narração são os brancos, não permitindo, assim, acusações primárias relativamente a qualquer tentativa de conduzir a leitura para a potencial simplificação das complexas e equívocas relações que se manifestam entre negros e brancos no sul dos Estados Unidos", explica Salvato Teles de Menezes. Ou seja, não há "qualquer tipo de visão redutora ou tendenciosa, a não ser que o escritor tivesse imposto aos brancos, coisa que não faz, um discurso ideológico e linguístico que não fosse o deles", especifica o filólogo. Deste modo, permite conhecer a mentalidade branca sul-americana nos primórdios do movimento dos direitos civis: a resistência à mudança, a incompreensão e a raiva. Ao longo do romance, sucedem-se vários pontos de vista, que são dados ao leitor pelos membros da família Wilson, e que são reveladores das relações algo paternalistas que mantêm com os criados negros, sem nunca apresentar explicações subjectivas, apenas através da descrição de factos concretos. Vozes brancas distintas -- femininas ou masculinas, adultas ou infantis, liberais, radicais ou conservadoras -- desenham os acontecimentos, delimitam o mistério, mas nunca o desvendam totalmente. "É fascinante poder ler entrelinhas, poder estabelecer conexões ricas e subtis entre personagens, compreender as suas motivações e renúncias, os seus limites. Há muito para adivinhar, deduzir, frases ou parágrafos às vezes sibilinos e sempre carregados de sentido", afirma o tradutor, no prefácio. Sobre este romance, escreveu o monge trapista Thomas Merton (1915--1968): "é mais do que um brilhante primeiro romance de um jovem escritor negro. Trata-se de uma parábola que estuda algumas das profundas implicações espirituais da luta dos negros por direitos civis completos e por um estatuto humano integral no mundo de hoje". "É, mais do que uma história do protesto negro, um mito carregado de extraordinária força criativa que lança luz sobre o significado providencial da tragédia na qual, saibamos ou não, compreendamos ou não, gostemos ou não, estamos todos envolvidos", considerou Thomas Merton, num ensaio de 1985, intitulado "William Melvin Kelley -- A Different Drummer". Outra peculiaridade deste romance destacada por Teles de Menezes é a opção de situar os acontecimentos num estado imaginário do sul dos Estados Unidos, algures entre o Alabama, o Tennessee, o Golfo do México e o Mississípi, aquilo a que geralmente se chama "Deep South" (sul profundo), recorrendo, assim, ao mesmo tipo de programa ficcional definido por William Faulkner com o seu condado ficcional de Yoknapatawpha, usado em praticamente todos os romances e histórias. "`Um tambor diferente` poderá ser considerado, por muito que isso doa aos que acreditam que nos Estados Unidos a literatura não tem nada que ver com ideologia, um romance declaradamente político, sem que tenha nada de panfletário", considera Teles de Menezes. Uma história que "continua oportuna e urgente", descreveu o jornal The Guardian, que considera "uma dádiva para a literatura" poder redescobri-la sessenta anos depois. "Fábula política", como o considerou a Rolling Stone, com um "tema assustadoramente actual", na óptica da MDR Kultur, "Um tambor diferente" foi classificado como "brilhante" e "uma obra-prima" pela The New Yorker e pela Public Books. 
Nascido em Nova Iorque, em 1937, William Melvin Kelley foi um estudante notável em Harvard, professor universitário, ensaísta ocasional e ficcionista, conhecido pelas suas explorações satíricas das relações rácicas na América. Quando publicou "Um tambor diferente", a crítica celebrou-o, comparando-o a William Faulkner e James Baldwin. A expressão que inspirou o título vem de "Walden ou a Vida nos Bosques", obra de carácter autobiográfico de Henry David Thoreau. Membro do `Black Arts Movement`, entrou oficialmente para o Oxford English Dictionary, em 2014, por ter cunhado o termo político `woke` (em português, algo como "acordado", "desperto"). Romancista e contista, é autor de "Dunfords Travels Everywheres", romance experimental, de "Dancers on the Shore", recolha de contos publicados em revistas literárias, "A drop of patience", romance sobre um músico de jazz cego, e "dem", sátira sobre as relações entre brancos e negros. Depois do assassinato de Martin Luther King, mudou-se para França, tendo vivido ainda em Itália e na Jamaica. Em 2008, recebeu o Prémio Anisfield-Wolf Book Award for Lifetime Achievement. Morreu em Fevereiro de 2017, em Nova Iorque.» Lusa, RTP Notícias, 25 Jan. 2021

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

E tocará esse piano



E tocará esse piano

Eu não voltarei. E a noite
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.

Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.

Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.

Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.

E tocará esse piano
como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.
Juan Ramón Jimenez, in Antologia Poética, trad. José Bento,  Relógio D'Água, p.31-32

HAVASI  interpreta ao piano Etude No. 9, num espectáculo em  Budapest Arena. 

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

O menino aprendeu a usar as palavras

nenino água peneira

 O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
Manoel de Barros , in “ Poesia Completa”, Editora Leya

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

A Onda da Nazaré

 
Como se forma a onda da Nazaré . O filme  explica o fenómeno da onda da Nazaré numa perspectiva científica, mas com o objectivo de elucidar o público em geral numa linguagem acessível.

domingo, 24 de janeiro de 2021

Ao Domingo Há Música


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
Alexandre O'Neil, No reino da Dinamarca

Vivemos um tempo que desejamos ultrapassar; um tempo que teimamos em  ludibriar para  não  nos permitirmos sucumbir; um tempo que nos sustém em esperança . Dias entre muros que trazem sonhos . Alguns vividos  ,outros por e ainda para viver. E, diz o poeta,  há palavras sem cor que se recusam porque o sonho vem sempre colorido como a poesia e o amor.
E porque é domingo, damos voz ao sonho. Eis alguns que encontrámos nas pregas da memória.
Gary Moore,  em Had A Dream, do Álbum "Close As You Get". Licenciado ao YouTube por UMG (em nome de Eagle Rock); LatinAutor - PeerMusic, BMG Rights Management (US), LLC, CMRRA, Abramus Digital, LatinAutorPerf e 4 sociedades de direitos musicais. 

Manuel Freire, em Pedra Filosofal.
Bruce Springsteen, em Working On a Dream (Official Video).
 
ABBA , em I Have A Dream, HD.
  
Aretha Franklin, em I  dreamed a dream.

Martin Luther King Jr. durante a Marcha sobre Washington por Emprego e Liberdade. Martin Luther King Jr. fez um discurso em Washington, capital dos Estados Unidos, no dia  28 de Agosto de 1963

sábado, 23 de janeiro de 2021

A Capela Sistina


A Capela Sistina como só Michelangelo havia visto em Livro
por Estefania Grijota 
"Os seus criadores passaram cinco anos fazendo mais de 270.000 fotos digitais, em alta resolução, para oferecer todos os frescos da sala do Vaticano em escala real e com um nível inédito de detalhe 
Nas palavras do próprio Michelangelo Buonarroti: “Minha alma não encontra escada para o céu, a menos que seja pela beleza da Terra.” Ele referia-se  ao seu trabalho na abóbada da Capela Sistina, que ocupou quase cinco anos de sua vida (1508 a 1512). “Após quatro anos de torturas e mais de 400 figuras de tamanho real, me senti tão velho e exausto quanto Jeremias. Tinha 37 anos e nem sequer os meus amigos já reconheciam o ancião no qual eu  me havia transformado”, disse o artista depois de concluir o trabalho. Num espaço de mais de 1.000 metros quadrados e a 20 metros de altura, Michelangelo criou uma série de frescos de arquitectura simulada onde incluiu o desenvolvimento das histórias do Genesis com aquelas mais de 400 figuras em tamanho natural. Uma criação monumental, encomendada pelo Papa Júlio II, que extrapolou as características próprias da arte renascentista, mas que ninguém pôde observar com o nível de detalhes criado pelo pintor, a não ser subindo com a sua própria escada até o céu.
A editora Callaway Arts and Entertainment, em colaboração com os Museus Vaticanos e a editora italiana Scripta Maneant, subiu por essa escada num projecto fotográfico que exigiu mais tempo de trabalho que a própria obra de Michelangelo, cinco anos, e que oferece um olhar inédito da Capela Sistina em sua plenitude. Após vender todos os exemplares em italiano, a editora lança agora a versão em inglês.
Graças às mais novas tecnologias da fotografia digital, The Sistine Chapel apresenta em três volumes as imagens com alta resolução, tamanho natural e uma precisão de cor de 99,4% da abóbada de Michelangelo e dos frescos pintados ao lado do altar por Sandro Botticelli, Perugino e Ghirlandaio, entre outros artistas do Renascimento, por ordem do Papa Sisto IV. É uma das peças mais extravagantes do universo editorial, que custa 22.000 dólares , incluindo envio e manuseio.

“Acreditamos que se trate de uma compra por impulso, possivelmente a mais cara do mundo editorial”, reconheceu em nota o fundador da Callaway, Nicholas Callaway. Mas justificou: “Podemos dizer, sem exagerar, que este é o livro definitivo sobre a Capela Sistina.” A publicação pode ser reservada no site da Callaway, e parte dos lucros serão destinados aos Museus Vaticanos.
Com design tipográfico de Jerry Kelly, os textos são assinados por Antonio Paolucci, ex-director dos Museus Vaticanos e ex-director geral de Património Cultural de Toscana, que relata a história por trás das cenas de A Criação do Mundo, A Criação de Adão e Eva, O Pecado Original, O Sacrifício de Noé e O Dilúvio. Na opinião de seus criadores, no entanto, o que confere a The Sistine Chapel um valor de conservação são as mais de 270.000 imagens feitas para poder reproduzir as obras.

“A captura digital dos frescos sobreviverá aos próprios livros”, afirma Callaway no comunicado. Em seu formato impresso, “trata-se de uma obra voltada aos historiadores da arte, estudantes, coleccionadores e curadores, que poderão estudar as obras apresentadas com um detalhe sem precedentes.” Eles poderão examinar, por exemplo, o profundo conhecimento da anatomia humana demonstrado pelas figuras de Michelangelo: arquitectónicas, gigantescas, robustas, enérgicas e muito elegantes, que evidenciavam ao mesmo tempo o momento histórico vivido pela Itália na época. “Os leitores”, acrescenta a directora editorial da Callaway, Manuela Roosevelt, “poderão ver os frescos como ninguém pôde fazer desde que foram pintados, já que os visitantes da Capela observam as obras a uma distância de mais de 20 metros, e em paredes nas quais quase não se podem apreciar os detalhes.”

Detalhes das imagens que podem ser vistas no livro 'The Sistine Chapel'.

Detalhes das imagens que podem ser vistas no livro 'The Sistine Chapel'.

Assim, a escala real permite apreciar do jogo de luzes no rosto da Sibila Délfica até o uso do pontilhismo no nariz da Virgem, representada na cena do Juízo Final, passando por cerca de 220 detalhes dos frescos de Michelangelo e dos mestres italianos do século XV.
“Consideramos que os livros podem ser e são objectos de arte em si mesmos”, diz Callaway. E justamente desse modo é tratada esta edição de três volumes de 60 x 17,78 centímetros, somando 822 páginas encadernadas em capas de seda com impressões em lâminas de prata, ouro e platina. Os Museus Vaticanos restringiram a tiragem a 1.999 cópias (1.000 em italiano, 600 em inglês e as demais em russo e polonês). “Se a inserir no âmbito das coisas únicas, ou se a colocar no contexto do mercado de arte, 20.000 euros não é uma obra de arte cara”, afirma Callaway.

Detalhes das imagens que podem ser vistas no livro 'The Sistine Chapel'.

Detalhes das imagens que podem ser vistas no livro 'The Sistine Chapel'.

The Sistine Chapel' é uma edição limitada em três volumes encadernados em seda
– com impressões
em lâminas de prata, ouro e platina –
e vendida por cerca de 20.000 euros.
CALLAWAy
Estefania Grijota ,  jornal "El País", de 23.12.2020

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Da violência de que somos feitos

Cormac McCarthy. “Da violência de que somos feitos"
por Ricardo Gomes
"Meridiano de Sangue” é o velho oeste americano sem heróis infalíveis, vilões mortos num duelo ao fim da tarde ou banda sonora de Morricone. O magnum opus de Cormac McCarthy é um western que faria John Wayne ou Clint Eastwood tremer das pernas.
Os aventureiros, os degenerados, os foragidos, os peregrinos, os esperançosos ou os sem futuro. Para todos estes o ponteiro da bússola aponta outro norte - o deserto. Nele se podem apagar, existir fora da lei dos Homens e de Deus. Como pode a lei ser cobertor suficiente nas “vastas extensões clangorosas, que uma ordem arrancara ao seio da noite absoluta, qual reino demoníaco evocado do nada”?
Foge de casa o rapaz, é somente este o seu nome, para onde há-de ir saberão a cada passo os pés. Tropeça do Tennessee para o deserto do sudoeste americano e sabe Deus quem lhe gizou o caminho, porque nem ambição ou fé deram ordem aos pés. Aconteceu somente. Como lhe aconteceu unir-se ao bando de John Glanton, porque no deserto ninguém sobrevive a sós e sempre dá direito a ração, montada e desígnio.
Do périplo deste bando de caçadores de escalpes pelo território bravio do sudoeste se escreve Meridiano de Sangue, o primeiro western do americano Cormac McCarthy. Nascido em 1933 em Rhode Island, mas criado no Tennessee, começa a sua carreira literária em 1965, inserido na tradição literária sulista de William Faulkner ou Flannery O’Connor. Meridiano de Sangue, publicado em 1985, é vagamente baseado no relato de Samuel Chamberlain, veterano da guerra entre o México e os Estados Unidos.  Este descreve em “My Confession: The Recollections of a Rogue”, escrito em meados do século XIX, os tempos que passou com Glanton e o seu bando, incluindo o juiz Holden, na raia entre o Texas e o México.
A este deserto confluem os vários tempos e variedades da sua existência. Sobre as ruínas das velhas civilizações desaparecidas enfrentam-se as que ainda subsistem. Nas terras dos desaparecidos anasazi cavalgam os últimos dos nativos, expulsos dos seus ancestrais domínios pelo engordar da civilização americana, os vizinhos mexicanos e os destroços de uma guerra que se travou por uma fronteira de pó e relâmpago.  Vagueiam nestas terras “cavaleiros espectrais, pálidos de poeira, anónimos no calor crenulado (...) guiados pelo acaso, primitivos, provisórios, despidos de ordem.  Quais seres concitados  do seio da rocha absoluta e, sem nome nem nada que os distinguisse das suas próprias miragens, postos a vaguear, vorazes e mudos como gorgónas a percorrer em passo trôpego ermos brutais da Gondwana, num tempo em que não havia nomenclatura e em que cada um era todos.”
Digladiam-se os vivos por sobre ossos feitos pó, lutando por uma medida da existência - resistir mais um dia. Glanton e os seus camaradas matam para que lhes paguem pelos escalpes de índio que consigam reunir. Sossegam os corpos no fim de uma refrega “a poeira estancava o sangue nas cabeças molhadas e nuas dos escalpados, que, com a orla do cabelo abaixo das feridas e tonsurados até ao osso, jaziam agora como monges mutilados e nus no pó ensopado de sangue, e por toda a parte os moribundos gemiam e balbuciavam e os cavalos caídos soltavam urros.” 
As forças que aqui se enfrentam não são entidades abstractas, não é batalha no céu em que chocam as armas do bem e do mal. É homem a homem, cá em baixo, na terra. Nas noites calmas, em que o bando não persegue nem é perseguido, faz-se roda em torno do fogo e discutem-se as coisas de Deus e dos Homens. Mais do que uma pregação, o juiz Holden lidera um diálogo platónico. Esta “criatura enorme e glabra”, “capaz de dançar com mais elegância que o próprio diabo”, tocador de rabeca e poliglota é a figura central do romance. 
Holden não é um desses “homens que acreditam que os segredos do mundo estão para sempre ocultos”. A esses “a superstição impede-os de levantar voo.” É, pelo contrário, “o homem que chama a si a tarefa de destrinçar o fio de ordem na vasta tapeçaria”, capaz de “tomar o mundo a seu cargo”. O Homem que não possua “esse rasgo de ousadia nunca conseguirá achar o trilho para ditar os termos do seu próprio destino”. O juiz é o Übermensch de Nietzsche, o super-homem, capaz de reconhecer a existência desses grilhões a que a humanidade se agarrou, essas morais ultrapassadas que agacham o homem a uma condição infra-humana. Deles liberto, vê mais além. O seu método, na esteira dos velhos gnósticos, é procurar Deus na sua própria experiência - “Tudo o que existe na criação sem o meu conhecimento, existe sem o meu consentimento”. O psicólogo Julian Jaynes escreve, a propósito da consciência, que esta é “a história que o cérebro conta a si mesmo”. Não é Deus que mente. São os humanos que são febris e sonham. Somos nós mesmos que inventámos a impostura em que nos enredamos. O juiz é um arqueólogo a esventrar o chão do sonho em busca de um substracto, dessa prova de existência que estará por baixo. 
 A sua conclusão última - “A guerra é Deus”. De Deus procede o mundo e o motor dos eventos de que o tempo é feito. Só a guerra desfaz o nó górdio da existência, escolhendo, entre os que se enfrentam em duelo, o que há-de ficar estendido e o que há-de seguir adiante. Eis o grande diferendo, o único a que importa dar resposta, quem há-de morrer e quem há-de viver. A guerra nada tem a ver com moralidade, não se pesam valores. A guerra é supra-humana, é investimento absoluto, “subalterniza todas as escolhas menores, morais, espirituais ou naturais.” 
Entre os que o ouvem estão homens que são como os animais de Georges Bataille, seres pertencentes a um espaço de continuidade em que “não há transcendência do animal com o animal comido”, incapazes de se distinguirem uns dos outros como “o açor que come a galinha não a distingue claramente de si próprio”. Comportam-se como “o animal que aceitava a imanência em que estava mergulhado sem aparente protesto”. O rapaz vive num estado intermédio, capaz de sentir “uma espécie de horror impotente” perante o espectáculo da existência, rejeitando ao mesmo tempo mundividência do juiz Holden, da qual pressente o mesmo horror.
Desfaz-se este bando, morrem uns, desaparecem outros. O rapaz prossegue solitário. Guia-se pela sua própria vontade, mas nunca conseguirá escapar à ubiquidade da violência. Entre um “bando de penitentes que jazia massacrado a cutiladas entre as pedras (...) caídos em volta da cruz tombada”, o rapaz encontra uma velha. No meio da desolação e morte, oferece-lhe ao ouvido conforto e auxílio, para finalmente descobrir que “não passava de um invólucro ressequido e estava morta naquele lugar há já muitos anos”. O horror continua. 
Rapaz e juiz vão voltar a cruzar-se. Como outrora Jesus, tentado noutro deserto por outro diabo, renega-lhe as ideias, foge-lhe das tentações. Para que se salvasse, faltou ao rapaz o Pai que Jesus tinha.
Que palavras são capazes de coser uma ideia de violência? É na escolha destas que se revela a prosa superlativa deste escritor, de implacável veemência e valor imagético. É impossível que não nos desça ao osso o temor de ver cavalgar na nossa direcção “uma legião de seres horríveis, centenas deles, seminus ou ataviados com trajos áticos ou bíblicos ou enroupados com adereços saindo de um sonho febril (...), i, de cartola e outros de guarda-sol e outro de meias brancas e um véu de noiva maculado de sangue (...) e um outro de sobrecasaca com os botões voltados para as costas e aparte disso nu e outro com a armadura de um conquistador espanhol (...)”. E que  dizer sobre a paisagem, nunca aqui transformada em verbo de encher, muito menos música de fundo apenas, porque do deserto não se pode dizer que caiba dentro de uma caixa de elevador. Descreve McCarthy o espaço com tal vivacidade e bojo que espanta que possam estar contidas entre as folhas de um livro essas “tempestades na lonjura, tão distantes que se conseguiam ouvir, os relâmpagos silenciosos a rebrilhar como lençóis ao vento e o espinhaço acerado e negro da cadeia montanhosa a bruxulear e logo sugado novamente para o âmago das trevas.”
Mais do que pelas palavras com que lavra os seus livros, Cormac McCarthy distingue-se por uma força subterrânea, a agudez do arado com que destapa os lugares onde se escondem os homens e todos os seus aspectos, dos mais benévolos aos mais atrozes. Este deserto em que caminhamos “exige-nos um coração magnânimo, mas é também (...) um lugar vazio. É duro, é árido. Possui a própria natureza da pedra”. Salvam-se estes arados capazes de lavrar na rocha. "Ricardo Gomes, Jornal i, 11.11.2020

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

O medo que me prende

" Estranha, esta angústia do presente , do futuro.
Estranha, a imobilidade em que me perco, como se tivesse milhões de horas para esbanjar.
Estranho , o medo que me prende.
Estranha, a inconsciência  com que governo o dia a dia  ( a vida , essa, é ingovernável...).
Não sou o primeiro que deseja o repouso  do não-ser, gasto pelos amanhãs  que não vêm - ou temendo-os - pernas e mãos bloqueadas, cérebro vazio, nauseado, sem saber.
Amanhã!
E amanhã será como hoje, como ontem, como sempre, insatisfeito, triste, longe, mas enraizado naquela terra donde vim." 
J. Rentes  de Carvalho, in  o rebate,  Círculo de Leitores, p157

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Uma viagem com música

 
HAVASI , em  A Journey to Tihany (Part 1) . Uma viagem para explorar a beleza do Parque Nacional da Hungria, no  Lago Balaton visto do ar , ao som da música composta e interpretada por Havasi. O filme foi realizado por Csaba Marjai. 
O Lago Balaton é o maior lago da Europa Central e uma das maiores extensões de água doce da Europa. Muitos o consideram o “mar interior” da Hungria.
Tihany é uma vila localizada na península de mesmo nome, nas  margens do Lago Balaton, na Hungria, que tem as melhores vistas sobre o Lago. (Foi fundada pelo rei André I da Hungria, que  mandou construir um mosteiro beneditino no local, em 1055, para aí ser sepultado [ está sepultado na cripta]. A carta de fundação do mosteiro é o documento mais antigo em língua húngara  que se conhece . Wikipedia)
 
E a viagem continua com  HAVASI, em A Journey to Tihany (Part 2), no Parque Nacional da Hungria.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Amar e envelhecer


Amar
Enquanto somos amados somos compreendidos sem palavras.

Amar é... 
sorrir por nada e ficar triste sem motivos,
é sentir-se só no meio da multidão,
é o ciúme sem sentido,
o desejo de um carinho; 
é abraçar com certeza e beijar com vontade,
é passear com a felicidade, 
é ser feliz de verdade!

Envelhecer
"Envelhecer é o único meio de viver muito tempo. A idade madura é aquela na qual ainda se é jovem, porém com muito mais esforço. O que mais me atormenta em relação às tolices de minha juventude não é havê-las cometido... e sim não poder voltar a cometê-las. Envelhecer é passar da paixão para a compaixão. Muitas pessoas não chegam aos oitenta porque perdem muito tempo tentando ficar nos quarenta. Aos vinte anos reina o desejo, aos trinta reina a razão, aos quarenta o juízo. O que não é belo aos vinte, forte aos trinta, rico aos quarenta, nem sábio aos cinquenta, nunca será nem belo, nem forte, nem rico, nem sábio... Quando se passa dos sessenta, são poucas as coisas que nos parecem absurdas. Os jovens pensam que os velhos são bobos; os velhos sabem que os jovens o são. A maturidade do homem é voltar a encontrar a serenidade como aquela que se usufruía quando se era menino. Nada passa mais depressa que os anos. Quando era jovem dizia: “Verás quando tiver cinquenta anos”. Tenho cinquenta anos e não estou vendo nada. Nos olhos dos jovens arde a chama, nos olhos dos velhos brilha a luz. A iniciativa da juventude vale tanto a experiência dos velhos. Sempre há um menino em todos os homens. A cada idade lhe cai bem uma conduta diferente. Os jovens andam em grupo, os adultos em pares e os velhos andam sós. Feliz é quem foi jovem  na juventude e feliz é quem foi sábio na velhice. Todos desejamos chegar à velhice e todos negamos que tenhamos chegado. Não entendo isso dos anos: que, todavia, é bom vivê-los, mas não tê-los."

Nota: Não são mencionados  o autor ou autores destes textos por  não ser certa a sua atribuição. Assim, apresentamos as nossas desculpas pelo lapso que consideramos merecer aprovação pela beleza desta escrita.

domingo, 17 de janeiro de 2021

Ao Domingo Há Música

torga  de  Trás-os -Montes

Lisboa , 17 de Janeiro de 1985

Ímpeto

No cais deserto onde embarquei outrora,
Sonho agora
Outra aventura igual.
Fui Portugal
Na minha meninice.
Quem diz que já não posso
Rezar um padre-nosso 
E partir em seu nome na velhice?
Miguel Torga, Diário XIV,   p1422

Neste domingo , 17 de Janeiro de 2021, evocamos um grande poeta português, Miguel Torga , falecido a 17 de Janeiro de 1995. Este  poema escreveu-o dez anos antes da sua morte, sendo a entrada do seu Diário desse dia.
A sua escrita marcou-me profundamente,   de tal modo que, enquanto estudante universitária, tinha como objectivo acabar o curso com uma tese sobre Miguel Torga. Nesse tempo , Miguel Torga era, além de poeta e de notável  prosador,  um médico otorrinolaringologista,  radicado em Coimbra. Dele conhecia toda o obra publicada e a mulher, Andrée Crabbé Rocha, professora na minha Faculdade de Letras,  em Lisboa.  Nunca o conheci pessoalmente. Fiquei, sim, fascinada pela sua escrita que revisito  com encanto redobrado até hoje. As minhas estantes exibem  ostensiva e provocatoriamente a sua obra completa.
Ao tentar organizar esta habitual rubrica  musical, foi-me  impossível não assinalar a data  em que se perdeu mais um homem que procurou incessantemente  o redentor  caminho da Luz,  semeando sempre iluminados poemas, telúricos contos e um gigantesco Diário.  Num belo artigo sobre Miguel Torga , Eugénio Lisboa  afirma o seguinte:  "Como todos os grandes escritores, Miguel Torga acolheu e acarinhou, dentro de si, um mundo de contradições. Lega-nos uma vasta obra feita de palavras apetecidamente trabalhadas, ao mesmo tempo que nota, poucos anos antes de morrer, que “sempre a experiência [lhe] ensinou que os momentos mais significativos da nossa condição, por embargo ou pudor, são mudos”. Dito de outro modo, o cultivo continuado e apaixonado do verbo levou-o à descoberta do valor insigne do silêncio. Por outro lado, tendo passado toda uma vida a comunicar com o leitor, em prosa e em verso, conclui, numa anotação do seu último volume do Diário (com data de 10.9.1991), que: “Ninguém sabe nada de ninguém. Morremos inéditos. Tanto que tenho dito de mim, por palavras e obras, e pasmo diariamente diante da incompreensão dos mais íntimos. Foi inútil e inglório todo o meu esforço para ser transparente aos olhos do mundo. (...) Fiquei a ser, não o poeta que realmente sou, mas o monstro que me inventaram.” Ou ainda, e de forma mais sucinta e acutilante: “Vamos para a sepultura secretos como viemos. E sempre a fazer, laica ou religiosamente, sinceras confissões.” Inutilidade de toda a escrita? Futilidade de toda a intervenção? Conclusão final – pessimista – de um escritor que arriscou a liberdade na luta pelo ideal de uma pátria a viver em democracia? É verdade que, no mesmo Diário, e em data muito próxima, Torga regista isto: “Afirmei recentemente que o meu verdadeiro rosto, presente ou futuro, está nos livros que escrevi.” Mas que “verdadeiro rosto” se é, como ele próprio insinua, mais do que provável que o irão desfigurar? Esta obsessão relativa ao indecifrado segredo que todos nós – e em especial, ele, Torga – levamos para o túmulo irriga-lhe, de resto, as páginas do último volume do Diário. Noutro ponto, volta à carga, com ênfase reveladora: “E cada novo livro que publico”, sublinha ele, “é apenas mais um S.O.S. que, por descargo de consciência, lanço engarrafado ao mar das montras. Se o embrulho for encontrado em qualquer praia por alguém, e a mensagem lida e entendida, óptimo. Se não for, paciência. Nunca as nossas inquietações e angústias podem ser inteiramente partilhadas. Ao fim e ao cabo, todos vivemos e morremos em segredo. O mais profundo e significativo de nós em nenhuma circunstância vem à luz do solo. Principalmente ao bico da pena dos que mais se explicam e confessam mascarados de penitentes, e são quase sempre mestres consumados do disfarce. Santos Agostinhos há poucos.” A inculcação do número reduzido de Santos Agostinhos, isto é, de confessados dilacerantemente sinceros, aliados à verificação assumida de que “o mais profundo de nós em nenhuma circunstância vem à luz do sol” [sublinhado nosso], leva à conclusão não demasiado abusiva de que o autor de Bichos se não inclui entre os pares do autor de A Cidade de Deus. "
Miguel Torga morreu a 17 de Janeiro de 1995, às 12h e 33m, no Instituto de Oncologia, em Coimbra. No dia seguinte, foi sepultado em campa rasa no cemitério de S. Martinho de Anta. Passam, hoje, 26 anos sobre a sua morte.
Montserrat Caballe pôde rezar, em vida, um sentido padre-nosso. Ei-la numa magnifica interpretação de Padre Nuestro,  música composta por Jose María Cano (MECANO) para o Encontro Mundial de las Familias, celebrado em Valência, Espanha,  em 8 de Julho de 2006. 

 
Miguel Torga foi galardoado com vários prémios .  Em 1989, recebeu o Prémio Camões, sendo  o primeiro autor a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa. O prémio foi entregue em Ponta Delgada, no âmbito das comemorações do 10 de Junho, numa cerimónia presidida pelo Presidente da República, Mário Soares. No dia 2 de Junho, foi-lhe atribuída a condecoração de Oficial na Ordem das Artes e Letras, da República Francesa. 
Ponta Delgada, 10 de Junho de 1989
"Uma vida longa dá para tudo. Para se nascer obscuramente em Trás-os-Montes, mourejar adolescente em Terras de Santa Cruz, percorrer, solidário, na idade adulta, os actuais países lusófonos em luta pela independência, visitar, alanceado, na velhice, o que resta do Oriente português, e receber agora, nestes patrícios e paradisíacos Açores, um prémio sob a égide de Camões. Nos intervalos, ser cidadão a tempo inteiro, com profissão tributada e deveres cívicos assumidos, e poeta rebelde, cioso da sua liberdade de criador, numa época atribulada, de guerras, tiranias políticas, campos de concentração, terrorismo, bombas atómicas e outros flagelos […]"
Miguel Torga ,(Diário XV, 1990)
 
Eis um registo  sobre a vida e obra de Miguel Torga, com a  análise despretensiosa e reveladora do Pe. Augusto Cabral.