A loucura de Churchill: como Winston Churchill moldou o moderno Iraque e o Médio Oriente
Capítulo I
De Abraão a Allenby
por Christopher Catherwood
"Em Março de 1921, Winston
Churchill, recentemente nomeado ministro das Colónias, convocou um grande
grupo de conselheiros para se encontrarem num hotel de luxo no Cairo. Ao longo
de alguns dias, os peritos ali reunidos, que incluíam individualidades como T.
E. Lawrence (Lawrence da Arábia), Gertrude Bell, a eminente arqueóloga, e
outros especialistas, criaram um país completamente novo: o Iraque. Desde a sua
criação em 1922, este nome tem estado associado a guerras, a conspirações, à
opressão e à ideia de um caos generalizado. Todos conhecemos, porém, a
história do território que constitui o Iraque, especialmente, se nalguma fase
da nossa vida tivermos estudado história antiga ou aprendido episódios da
Bíblia na catequese. É por partilharmos a herança da história bíblica que se
assistiu à indignação internacional perante os saques dos museus de Bagdade,
em 2003. São raros os grandes museus ocidentais que não têm entre as suas colecções peças provenientes das principais expedições arqueológicas realizadas na
região no início no século XX (incluindo as duas efectuadas pelos principais
conselheiros de Churchill, Gertrude Bell e T. E. Lawrence). Actualmente, pelo
menos na Europa Ocidental, o número de pessoas que lê a Bíblia é muito menor do
que terá sido nos anos 20 do século XX, na época de Churchill e dos seus
contemporâneos, que mesmo que não frequentassem com regularidade a missa
durante a vida adulta, teriam muito provavelmente aprendido as histórias da
Bíblia em criança. Devido às nossas memórias de infância, muitos de nós pensam
conhecer a história da região, mas aquilo de que nos recordamos é geralmente
incorrecto. Vejam‑se os seguintes exemplos:
Abraão era um exilado iraquiano
que se refugiou em Israel… Rapidamente, vemos que isso é um anacronismo,
bastante parecido com os famosos versos de Shakespeare na peça Júlio César, em
que um dos conspiradores ouve as badaladas de um relógio, um instrumento que só
foi inventado mais de mil anos depois da morte de César. Infelizmente, a
história está cheia desses anacronismos, com as pessoas a projectar as
realidades e os conflitos actuais no passado. Tragicamente, durante o século XX, milhões de pessoas foram massacradas com base unicamente nesse tipo de
interpretações da história — esse é o tema de muitos livros e um dos tópicos
principais desta obra: Churchill inventou o Iraque e o país hoje com esse nome
não existia antes de ter sido criado pelo estadista britânico. Para
compreendermos como essa afirmação é anacrónica, basta‑nos apenas recuar até
ao período pré‑histórico dessa zona geográfica que é hoje delimitada pelas
fronteiras do Iraque. Para compreendermos os perigos desta visão da história,
temos somente de olhar para um dos seus principais adeptos — trata‑se, nem mais
nem menos, de Saddam Hussein, que deturpou o passado para reforçar o controlo
do poder. Abraão, o pai da nação judaica, era incontestavelmente natural de Ur,
actualmente uma cidade no Iraque, mas considerá‑lo um iraquiano seria
obviamente ridículo. Contudo, Saddam Hussein não hesitou em comparar‑se ao
grande rei assírio Nabucodonosor. Saddam chegou mesmo a gastar uma vasta
fortuna para reconstruir a antiga cidade de Babilónia, gravando o seu próprio
nome nas fachadas das réplicas dos edifícios originais, tal como os antigos
chefes da cidade tinham feito. As pretensões de Saddam eram tão absurdas como
considerar Abraão um iraquiano, mas Saddam não hesitou em apropriar‑se do poder
simbólico das imagens produzidas pelos grandiosos regimes anteriores de forma a
manter um controlo repressivo sobre o seu povo, que durou até à altura em que
foi deposto, no ano de 2003. É essencial não esquecer esta perspectiva
histórica, ao fazermos a nossa viagem panorâmica sobre a história da terra
entre dois rios — o Tigre e o Eufrates, o berço de uma grande parte da
civilização humana. Não há textos onde surja o nome do Iraque antes da criação
deste país por Churchill, e nos memorandos que enviava para os funcionários do
Ministério das Colónias tinha de lhes lembrar que usassem o nome do novo Estado
e não o nome antigo da região, Mesopotâmia, um termo de origem grega que
significa a terra entre os rios. Essa região também é conhecida como o
Crescente Fértil, pois os territórios que rodeiam o vale entre o Tigre e o Eufrates
não são mais do que um deserto inabitável.
Tentar apresentar uma visão
unificada da história desta região geográfica também pode ser considerado um
anacronismo, pois é algo que antigamente não teria sido feito. Por exemplo,
apesar de grande parte do Iraque actual ter sido em tempos uma parcela do
território do grande califado dos Abássidas ou, mais tarde, do igualmente
poderoso Império Otomano, outras áreas do país estiveram durante séculos sob o
domínio de vários reis da Pérsia, que corresponde actualmente ao Irão. Tendo
isso presente, faremos uma rápida viagem sobre o passado complexo e
extremamente rico da terra entre os rios, a região em que foram descobertos
alguns dos primeiros vestígios da civilização humana. Embora existam outros
lugares, como Mohenjo Daro, no vale do rio Indo, que são igualmente antigos,
podemos considerar a cultura da antiga Mesopotâmia como «um berço da
civilização», mesmo se já não possamos utilizar a expressão «o berço». Exemplos
das primeiras formas de escrita (conhecidas como cuneiformes) foram descobertos
em placas de argila em algumas das cidades mais antigas do mundo, situadas na
Mesopotâmia. Muitos dos mitos que mais admiramos, como a história do dilúvio, o
épico Gilgamesh, têm também a sua origem em contos narrados há muitos milhares
de anos em cidades como Ur. Sem dúvida que, pelos menos no que diz respeito ao
Ocidente, grande parte do que agora chamamos civilização Judaico‑Cristã teve a
sua origem há vários milénios nas planícies aluviais dos rios Tigre e Eufrates.
Foi também aí que surgiram alguns dos primeiros grandes legisladores da
história da humanidade: o Código de Hammurabi pode já ter milhares de anos, mas
nele reconhecemos uma tentativa antiga de criar um sistema de justiça que, ao
se preocupar não só com os ricos, mas também com os pobres e desprivilegiados
da sociedade, revelava uma visão extremamente progressista. Hammurabi, o rei
legislador, foi, infelizmente, mais uma das personagens da antiguidade de que
Saddam Hussein se apropriou, baptizando uma das suas divisões militares com o
nome dessa figura histórica. As ruínas de Ur, a a cidade caldeia de Abraão,
pode ser hoje visitada no Iraque, e embora seja incorrecto referir‑nos aos
Judeus como exilados iraquianos, aqueles pertencem incontestavelmente ao vasto
grupo de povos semíticos da região. Abraão também conheceria os signos do
Zodíaco, assim como a se‑ mana de sete dias. Tudo isso devemos igualmente aos
primeiros mesopotâmios. A Bíblia diz‑nos que Saddam não foi o primeiro
governante agressor a surgir na região. No Velho Testamento encontramos um dos
exemplos mais antigos da invasão de um território estrangeiro: a subjugação da
Mesopotâmia no século VIII a.E.C. pelo rei assírio Tiglath‑pileser III, cujos
métodos sanguinários que utilizava para capturar as cidades soam‑ ‑nos
tragicamente familiares. O povo Assírio, nome por que é actualmente conhecido,
converteu‑se ao Cristianismo e, ao contrário de muitos dos povos que o
rodeavam, permaneceu fiel à sua fé durante toda a era islâmica. (Os
aterrorizados refugiados cristãos assírios foram uma das principais
preocupações de Churchill durante a Conferência do Cairo de 1921). Por serem
cristãos, muitos assírios não se opuseram tanto à interferência das nações
cristãs ocidentais e, hoje, no século XXI, esta minoria, que não é assim tão pequena
no Iraque, encara a possível chegada de um Estado declaradamente islâmico com
bastante receio. O famoso quadro de Rembrandt, O Banquete de Belshazar, onde um
Belshazar ansioso lê o aviso de Deus escrito na parede, lembra‑nos de que nem
um império agressivo e beligerante como era o Assírio conseguiu durar
eternamente. Uma vez que o passado da Mesopotâmia é, porém, parte da nossa
herança cultural, a história da Assíria é também a nossa história.
Segundo os
registos históricos, a terra entre os rios foi sempre um campo de batalha entre
impérios. Nos séculos antes de Cristo, as batalhas eram geralmente entre o
grande Império Romano e o vasto Império Sassânida situado a oriente e com base durante um longo tempo em
Ctesifonte, agora uma cidade em ruínas, não muito distante da actual Bagdade. A
Mesopotâmia foi um território de fronteira muito disputado, por vezes dividido
entre dois impérios em guerra e outras dominado predominantemente por um deles.
Durante milhares de anos, o território que hoje é o Iraque nunca chegou a ser
totalmente parte de um dos impérios em guerra.
No Ocidente, esquecemo‑nos que,
embora o Império Romano do Ocidente tenha caído no século V em resultado das
invasões bárbaras, o Império Romano do Oriente, mais conhecido geralmente como
Império Bizantino, sobreviveu, de uma forma ou doutra, quase ininterruptamente,
até à sua queda em 1453. Além disso, os Bizantinos, embora falassem grego,
consideravam‑se romanos, isto apesar de a sua ligação ao antigo Império Romano,
cuja língua era o latim, se ter tornado ténue e distante.
Reis e aspirantes a conquistadores
chegaram e partiram da região da Mesopotâmia durante milénios, mas houve um
elemento constante ao longo dos tempos: uma guerra fronteiriça permanente com
os povos que controlavam o território que é hoje o Irão, um país com um
percurso, em termos da sua história política, que é, juntamente com o da China,
dos poucos que podemos descrever como contínuo ao longo de milhares de anos.
Isso não significa que as dinastias que governaram o Irão não mudaram ou que os
líderes foram sempre originários da mesma região a que pertenciam os seus
súbditos. Mas o Irão tem realmente uma história cultural ininterrupta, o que já
não é bem verdade no caso dos povos árabes que habitavam na região situada
entre o Tigre e o Eufrates.
Por volta do século VIII E.C., os conflitos que
duravam há milénios entre o principal império a dominar a região, hoje
conhecida como o Médio Oriente — o Império Bizantino —, e quem estivesse a
controlar o Irão começavam, como era de esperar, a esgotar ambos os lados. Em
resultado disso, apesar da sua antiguidade, os dois adversários estavam
bastante vulneráveis a qualquer ataque de uma nova força que surgisse na
região.
Foi precisamente o que aconteceu em 622 E.C. com o aparecimento do
Islão.
O próprio Maomé era originário da região actualmente conhecida como
Arábia Saudita. Não é do âmbito deste livro avançar com muitos detalhes sobre
as impressionantes conquistas árabes e a conversão ao islamismo que se
seguiram. É suficiente dizer que, no espaço de apenas alguns anos, os Árabes
criaram um império que se estendia desde o Hindu Kush, a oriente, até à costa
atlântica da Península Ibérica, a ocidente. (A expansão árabe proporcionou
ainda ao Irão a rara experiência de ser, pela primeira vez desde as conquistas
de Alexandre, o Grande, nove séculos antes, apenas um entre os vários
territórios de um vasto império.)
Como actualmente a esmagadora maioria dos
iraquianos é muçulmana, temos de parar e olhar para alguns acontecimentos
significativos que ocorreram no início da história do Islão e que criaram
grandes divisões na sociedade e cultura iraquianas.
Maomé, o fundador do Islão,
morreu em 626, tendo conquistado com êxito a maior parte da península Arábica.
Foi sob o poder dos seus quatro principais sucessores, os Quatro Califas Bem‑Guiados,
que a expansão entrou numa fase verdadeiramente exponencial — a da propagação
da nova fé, propriamente dita, e da expansão dos territórios que os seus
seguidores governavam.
Infelizmente, Maomé não deixou uma
linha clara de sucessão e alguns muçulmanos devotos acreditaram, e ainda o
crêem hoje em dia, que o cargo de Califa (o sucessor militar, político e
teológico) devia ser elegível, o califa seria escolhido por uma umma (a
comunidade dos crentes muçulmanos)."
Christopher Catherwood, in A loucura de Churchill: como Winston Churchill moldou o moderno Iraque e o Médio Oriente, Relógio D'Água, Novembro de 2024, pp.23-27
LIVRO EM PRÉ-VENDA. ENVIOS DIA
14 DE NOVEMBRO (Relógio D'Água Editores)
Sobre o livro:
"Este livro revela-nos o que
aconteceu durante a primeira tentativa de reorganizar o Médio Oriente após a
derrota do Império Otomano, levada a cabo por Winston Churchill após a I Guerra
Mundial. Enquanto ministro das Colónias do governo britânico, durante os anos
20, Churchill cometeu um erro com consequências desastrosas e repercussões
incalculáveis ainda visíveis no século XXI. Christopher Catherwood analisa a
forma como Winston Churchill criou a monarquia do Iraque, forçando os curdos
sunitas, os árabes sunitas e os xiitas a viverem sob o domínio de um único
governante, produzindo, sem o saber, um verdadeiro barril de pólvora no Médio
Oriente. Catherwood examina as acções de Churchill que viriam a resultar
posteriormente no golpe de Estado de 1958 contra o governo hachemita do Iraque
e, a seguir, numa série de regimes cada vez mais sanguinários.
Ao mesmo tempo é analisado o modo como Churchill moldou o Médio Oriente,
levando ao actual mapa de conflitos na região, nomeadamente entre israelitas e
palestinianos."
«Este livro é um bom ponto de
partida para quem quer compreender porque é que o Iraque parece estar condenado
ao conflito (e porque é que isso está a mudar as nossas vidas).»
[Alexander McCall Smith]
«Um estudo impressionante sobre
a criação do actual Iraque, com todas as suas crises e catástrofes.»
[Kirkus Reviews]
SOBRE O AUTOR:
"Christopher Catherwood é um historiador e escritor que divide o seu tempo entre
Cambridge, em Inglaterra, e Richmond, no estado norte-americano da Virgínia.
Foi casado com a musicóloga Paulette Moore Catherwood, e ambos foram
professores no Institute of Continuing Education da Universidade de Cambridge.
Catherwood também ensina História na School of Continuing Studies, na
Universidade de Richmond, na Virgínia, onde todos os anos, durante o Verão, é
escritor residente no Departamento de História. Além disso, lecciona História do
Século XX no INSTEP. É autor de vários livros, entre os quais se destacam
Christians, Muslims, and Islamic Rage, The Balkans in World War Two e Why the
Nations Rage.
Christopher Catherwood foi consultor da equipa do Strategic Futures, um
projecto da Unidade de Estratégia do governo de Tony Blair, onde trabalhou no
edifício utilizado por Churchill quando este era primeiro lorde do Almirantado
durante as duas guerras mundiais. Possui graus académicos das universidades de
Oxford e de Cambridge e foi bolseiro Rockefeller da Virginia Foundation for the
Humanities and Public Policy da Universidade da Virgínia."
Título: A loucura
de Churchill: como Winston Churchill moldou o moderno Iraque e o Médio Oriente
Autor: Christopher
Catherwood
Tradução: João Vilhena
Data de publicação: 12/11/2024
Nº de páginas: 268
Acabamento: capa mole
Peso: 500 gramas
Preço: 17.10 €
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