quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A loucura de Churchill

Winston Churchill (30 de Novembro de 1874 - 24 de Janeiro de 1965)
A loucura de Churchill: como Winston Churchill moldou o moderno Iraque e o Médio Oriente
Capítulo I
De Abraão a Allenby
por Christopher Catherwood
"Em Março de 1921, Winston Churchill, recentemente nomeado ministro das Colónias, convocou um grande grupo de conselheiros para se encontrarem num hotel de luxo no Cairo. Ao longo de alguns dias, os peritos ali reunidos, que incluíam individualidades como T. E. Lawrence (Lawrence da Arábia), Gertrude Bell, a eminente arqueóloga, e outros especialistas, criaram um país completamente novo: o Iraque. Desde a sua criação em 1922, este nome tem estado associado a guerras, a conspirações, à opressão e à ideia de um caos generalizado. Todos conhecemos, porém, a história do território que constitui o Iraque, especialmente, se nalguma fase da nossa vida tivermos estudado história antiga ou aprendido episódios da Bíblia na catequese. É por partilharmos a herança da história bíblica que se assistiu à indignação internacional perante os saques dos museus de Bagdade, em 2003. São raros os grandes museus ocidentais que não têm entre as suas colecções peças provenientes das principais expedições arqueológicas realizadas na região no início no século XX (incluindo as duas efectuadas pelos principais conselheiros de Churchill, Gertrude Bell e T. E. Lawrence). Actualmente, pelo menos na Europa Ocidental, o número de pessoas que lê a Bíblia é muito menor do que terá sido nos anos 20 do século XX, na época de Churchill e dos seus contemporâneos, que mesmo que não frequentassem com regularidade a missa durante a vida adulta, teriam muito provavelmente aprendido as histórias da Bíblia em criança. Devido às nossas memórias de infância, muitos de nós pensam conhecer a história da região, mas aquilo de que nos recordamos é geralmente incorrecto. Vejam‑se os seguintes exemplos:
Abraão era um exilado iraquiano que se refugiou em Israel… Rapidamente, vemos que isso é um anacronismo, bastante parecido com os famosos versos de Shakespeare na peça Júlio César, em que um dos conspiradores ouve as badaladas de um relógio, um instrumento que só foi inventado mais de mil anos depois da morte de César. Infelizmente, a história está cheia desses anacronismos, com as pessoas a projectar as realidades e os conflitos actuais no passado. Tragicamente, durante o século XX, milhões de pessoas foram massacradas com base unicamente nesse tipo de interpretações da história — esse é o tema de muitos livros e um dos tópicos principais desta obra: Churchill inventou o Iraque e o país hoje com esse nome não existia antes de ter sido criado pelo estadista britânico. Para compreendermos como essa afirmação é anacrónica, basta‑nos apenas recuar até ao período pré‑histórico dessa zona geográfica que é hoje delimitada pelas fronteiras do Iraque. Para compreendermos os perigos desta visão da história, temos somente de olhar para um dos seus principais adeptos — trata‑se, nem mais nem menos, de Saddam Hussein, que deturpou o passado para reforçar o controlo do poder. Abraão, o pai da nação judaica, era incontestavelmente natural de Ur, actualmente uma cidade no Iraque, mas considerá‑lo um iraquiano seria obviamente ridículo. Contudo, Saddam Hussein não hesitou em comparar‑se ao grande rei assírio Nabucodonosor. Saddam chegou mesmo a gastar uma vasta fortuna para reconstruir a antiga cidade de Babilónia, gravando o seu próprio nome nas fachadas das réplicas dos edifícios originais, tal como os antigos chefes da cidade tinham feito. As pretensões de Saddam eram tão absurdas como considerar Abraão um iraquiano, mas Saddam não hesitou em apropriar‑se do poder simbólico das imagens produzidas pelos grandiosos regimes anteriores de forma a manter um controlo repressivo sobre o seu povo, que durou até à altura em que foi deposto, no ano de 2003. É essencial não esquecer esta perspectiva histórica, ao fazermos a nossa viagem panorâmica sobre a história da terra entre dois rios — o Tigre e o Eufrates, o berço de uma grande parte da civilização humana. Não há textos onde surja o nome do Iraque antes da criação deste país por Churchill, e nos memorandos que enviava para os funcionários do Ministério das Colónias tinha de lhes lembrar que usassem o nome do novo Estado e não o nome antigo da região, Mesopotâmia, um termo de origem grega que significa a terra entre os rios. Essa região também é conhecida como o Crescente Fértil, pois os territórios que rodeiam o vale entre o Tigre e o Eufrates não são mais do que um deserto inabitável.
Tentar apresentar uma visão unificada da história desta região geográfica também pode ser considerado um anacronismo, pois é algo que antigamente não teria sido feito. Por exemplo, apesar de grande parte do Iraque actual ter sido em tempos uma parcela do território do grande califado dos Abássidas ou, mais tarde, do igualmente poderoso Império Otomano, outras áreas do país estiveram durante séculos sob o domínio de vários reis da Pérsia, que corresponde actualmente ao Irão. Tendo isso presente, faremos uma rápida viagem sobre o passado complexo e extremamente rico da terra entre os rios, a região em que foram descobertos alguns dos primeiros vestígios da civilização humana. Embora existam outros lugares, como Mohenjo Daro, no vale do rio Indo, que são igualmente antigos, podemos considerar a cultura da antiga Mesopotâmia como «um berço da civilização», mesmo se já não possamos utilizar a expressão «o berço». Exemplos das primeiras formas de escrita (conhecidas como cuneiformes) foram descobertos em placas de argila em algumas das cidades mais antigas do mundo, situadas na Mesopotâmia. Muitos dos mitos que mais admiramos, como a história do dilúvio, o épico Gilgamesh, têm também a sua origem em contos narrados há muitos milhares de anos em cidades como Ur. Sem dúvida que, pelos menos no que diz respeito ao Ocidente, grande parte do que agora chamamos civilização Judaico‑Cristã teve a sua origem há vários milénios nas planícies aluviais dos rios Tigre e Eufrates. Foi também aí que surgiram alguns dos primeiros grandes legisladores da história da humanidade: o Código de Hammurabi pode já ter milhares de anos, mas nele reconhecemos uma tentativa antiga de criar um sistema de justiça que, ao se preocupar não só com os ricos, mas também com os pobres e desprivilegiados da sociedade, revelava uma visão extremamente progressista. Hammurabi, o rei legislador, foi, infelizmente, mais uma das personagens da antiguidade de que Saddam Hussein se apropriou, baptizando uma das suas divisões militares com o nome dessa figura histórica. As ruínas de Ur, a a cidade caldeia de Abraão, pode ser hoje visitada no Iraque, e embora seja incorrecto referir‑nos aos Judeus como exilados iraquianos, aqueles pertencem incontestavelmente ao vasto grupo de povos semíticos da região. Abraão também conheceria os signos do Zodíaco, assim como a se‑ mana de sete dias. Tudo isso devemos igualmente aos primeiros mesopotâmios. A Bíblia diz‑nos que Saddam não foi o primeiro governante agressor a surgir na região. No Velho Testamento encontramos um dos exemplos mais antigos da invasão de um território estrangeiro: a subjugação da Mesopotâmia no século VIII a.E.C. pelo rei assírio Tiglath‑pileser III, cujos métodos sanguinários que utilizava para capturar as cidades soam‑ ‑nos tragicamente familiares. O povo Assírio, nome por que é actualmente conhecido, converteu‑se ao Cristianismo e, ao contrário de muitos dos povos que o rodeavam, permaneceu fiel à sua fé durante toda a era islâmica. (Os aterrorizados refugiados cristãos assírios foram uma das principais preocupações de Churchill durante a Conferência do Cairo de 1921). Por serem cristãos, muitos assírios não se opuseram tanto à interferência das nações cristãs ocidentais e, hoje, no século XXI, esta minoria, que não é assim tão pequena no Iraque, encara a possível chegada de um Estado declaradamente islâmico com bastante receio. O famoso quadro de Rembrandt, O Banquete de Belshazar, onde um Belshazar ansioso lê o aviso de Deus escrito na parede, lembra‑nos de que nem um império agressivo e beligerante como era o Assírio conseguiu durar eternamente. Uma vez que o passado da Mesopotâmia é, porém, parte da nossa herança cultural, a história da Assíria é também a nossa história. 
Segundo os registos históricos, a terra entre os rios foi sempre um campo de batalha entre impérios. Nos séculos antes de Cristo, as batalhas eram geralmente entre o grande Império Romano e o vasto Império Sassânida situado a oriente e com base durante um longo tempo em Ctesifonte, agora uma cidade em ruínas, não muito distante da actual Bagdade. A Mesopotâmia foi um território de fronteira muito disputado, por vezes dividido entre dois impérios em guerra e outras dominado predominantemente por um deles. Durante milhares de anos, o território que hoje é o Iraque nunca chegou a ser totalmente parte de um dos impérios em guerra. 
No Ocidente, esquecemo‑nos que, embora o Império Romano do Ocidente tenha caído no século V em resultado das invasões bárbaras, o Império Romano do Oriente, mais conhecido geralmente como Império Bizantino, sobreviveu, de uma forma ou doutra, quase ininterruptamente, até à sua queda em 1453. Além disso, os Bizantinos, embora falassem grego, consideravam‑se romanos, isto apesar de a sua ligação ao antigo Império Romano, cuja língua era o latim, se ter tornado ténue e distante.  
Reis e aspirantes a conquistadores chegaram e partiram da região da Mesopotâmia durante milénios, mas houve um elemento constante ao longo dos tempos: uma guerra fronteiriça permanente com os povos que controlavam o território que é hoje o Irão, um país com um percurso, em termos da sua história política, que é, juntamente com o da China, dos poucos que podemos descrever como contínuo ao longo de milhares de anos. Isso não significa que as dinastias que governaram o Irão não mudaram ou que os líderes foram sempre originários da mesma região a que pertenciam os seus súbditos. Mas o Irão tem realmente uma história cultural ininterrupta, o que já não é bem verdade no caso dos povos árabes que habitavam na região situada entre o Tigre e o Eufrates. 
Por volta do século VIII E.C., os conflitos que duravam há milénios entre o principal império a dominar a região, hoje conhecida como o Médio Oriente — o Império Bizantino —, e quem estivesse a controlar o Irão começavam, como era de esperar, a esgotar ambos os lados. Em resultado disso, apesar da sua antiguidade, os dois adversários estavam bastante vulneráveis a qualquer ataque de uma nova força que surgisse na região. 
Foi precisamente o que aconteceu em 622 E.C. com o aparecimento do Islão. 
O próprio Maomé era originário da região actualmente conhecida como Arábia Saudita. Não é do âmbito deste livro avançar com muitos detalhes sobre as impressionantes conquistas árabes e a conversão ao islamismo que se seguiram. É suficiente dizer que, no espaço de apenas alguns anos, os Árabes criaram um império que se estendia desde o Hindu Kush, a oriente, até à costa atlântica da Península Ibérica, a ocidente. (A expansão árabe proporcionou ainda ao Irão a rara experiência de ser, pela primeira vez desde as conquistas de Alexandre, o Grande, nove séculos antes, apenas um entre os vários territórios de um vasto império.) 
Como actualmente a esmagadora maioria dos iraquianos é muçulmana, temos de parar e olhar para alguns acontecimentos significativos que ocorreram no início da história do Islão e que criaram grandes divisões na sociedade e cultura iraquianas. 
Maomé, o fundador do Islão, morreu em 626, tendo conquistado com êxito a maior parte da península Arábica. Foi sob o poder dos seus quatro principais sucessores, os Quatro Califas Bem‑Guiados, que a expansão entrou numa fase verdadeiramente exponencial — a da propagação da nova fé, propriamente dita, e da expansão dos territórios que os seus seguidores governavam.
Infelizmente, Maomé não deixou uma linha clara de sucessão e alguns muçulmanos devotos acreditaram, e ainda o crêem hoje em dia, que o cargo de Califa (o sucessor militar, político e teológico) devia ser elegível, o califa seria escolhido por uma umma (a comunidade dos crentes muçulmanos)."
Christopher Catherwood, in A loucura de Churchill: como Winston Churchill moldou o moderno Iraque e o Médio Oriente, Relógio D'Água, Novembro de 2024pp.23-27
LIVRO EM PRÉ-VENDA. ENVIOS DIA 14 DE NOVEMBRO (Relógio D'Água Editores)
Sobre o livro:
"Este livro revela-nos o que aconteceu durante a primeira tentativa de reorganizar o Médio Oriente após a derrota do Império Otomano, levada a cabo por Winston Churchill após a I Guerra Mundial. Enquanto ministro das Colónias do governo britânico, durante os anos 20, Churchill cometeu um erro com consequências desastrosas e repercussões incalculáveis ainda visíveis no século XXI. Christopher Catherwood analisa a forma como Winston Churchill criou a monarquia do Iraque, forçando os curdos sunitas, os árabes sunitas e os xiitas a viverem sob o domínio de um único governante, produzindo, sem o saber, um verdadeiro barril de pólvora no Médio Oriente. Catherwood examina as acções de Churchill que viriam a resultar posteriormente no golpe de Estado de 1958 contra o governo hachemita do Iraque e, a seguir, numa série de regimes cada vez mais sanguinários.
Ao mesmo tempo é analisado o modo como Churchill moldou o Médio Oriente, levando ao actual mapa de conflitos na região, nomeadamente entre israelitas e palestinianos."
«Este livro é um bom ponto de partida para quem quer compreender porque é que o Iraque parece estar condenado ao conflito (e porque é que isso está a mudar as nossas vidas).»
[Alexander McCall Smith]
«Um estudo impressionante sobre a criação do actual Iraque, com todas as suas crises e catástrofes.»
[Kirkus Reviews]
SOBRE O AUTOR:
"Christopher Catherwood é um historiador e escritor que divide o seu tempo entre Cambridge, em Inglaterra, e Richmond, no estado norte-americano da Virgínia. Foi casado com a musicóloga Paulette Moore Catherwood, e ambos foram professores no Institute of Continuing Education da Universidade de Cambridge. Catherwood também ensina História na School of Continuing Studies, na Universidade de Richmond, na Virgínia, onde todos os anos, durante o Verão, é escritor residente no Departamento de História. Além disso, lecciona História do Século XX no INSTEP. É autor de vários livros, entre os quais se destacam Christians, Muslims, and Islamic Rage, The Balkans in World War Two e Why the Nations Rage.
Christopher Catherwood foi consultor da equipa do Strategic Futures, um projecto da Unidade de Estratégia do governo de Tony Blair, onde trabalhou no edifício utilizado por Churchill quando este era primeiro lorde do Almirantado durante as duas guerras mundiais. Possui graus académicos das universidades de Oxford e de Cambridge e foi bolseiro Rockefeller da Virginia Foundation for the Humanities and Public Policy da Universidade da Virgínia."
TítuloA loucura de Churchill: como Winston Churchill moldou o moderno Iraque e o Médio Oriente
Autor: Christopher Catherwood
Categoria: Ensaios
Tradução: João Vilhena
Data de publicação: 12/11/2024
Nº de páginas: 268
Acabamento: capa mole
Peso: 500 gramas
Preço 17.10 €

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