quarta-feira, 30 de setembro de 2020

As tenebrosas fogueiras do medo


Em 1797, nasce o poeta alemão Heinrich Heine que proferiu a célebre frase: 
Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas.
Em 1933, acontece a grande queima de livros pelos nazis, na Alemanha.

«No dia 10 de Maio de 1933, foram queimadas em praça pública, em várias cidades da Alemanha, as obras de escritores alemães inconvenientes ao regime. Hitler e seus comparsas pretendiam uma "limpeza" da literatura.
Maio de 1933: uma multidão aglomera-se na praça Bebelplatz, em Berlim, para assistir à queima de livros.
O dia 10 de Maio de 1933 marcou o auge da perseguição dos nazis aos intelectuais, principalmente aos escritores. Em toda a Alemanha, principalmente nas cidades universitárias, montanhas de livros (ou suas cinzas)  acumulavam-se nas praças. Hitler e os seus comparsas pretendiam uma "limpeza" da literatura.
Tudo o que fosse crítico ou desviasse dos padrões impostos pelo regime nazi foi destruído. Centenas de milhares de livros foram queimados no auge de uma campanha iniciada pelo directório nacional de estudantes.
Stefan Zweig, Thomas Mann, Sigmund Freud, Erich Kästner, Erich Maria Remarque e Ricarda Huch foram algumas das proeminências literárias alemãs perseguidas na época.
O poeta nazi Hanns Johst foi um dos que justificou a queima, logo depois da ascensão do nazismo ao poder, com a "necessidade de purificação radical da literatura alemã de elementos estranhos que possam alienar a cultura alemã".
Assim como desde a pré-história, se acreditava nos poderes purificadores do fogo, o regime do mestre da propaganda – Joseph Goebbels – pretendia destruir todos os fundamentos intelectuais da República de Weimar tão odiada por ele .
A opinião pública e a intelectualidade alemãs ofereceram pouca resistência à queima. Editoras e distribuidoras reagiram com oportunismo, enquanto a burguesia tomou distância, passando a responsabilidade aos universitários. Também os outros países acompanharam a destruição de forma distanciada, chegando a minimizar a queima como resultado do "fanatismo estudantil".
Entre os poucos escritores que reconheceram o perigo e tomaram uma posição esteve Thomas Mann, que havia recebido o Nobel de Literatura em 1929. Em 1933, ele emigrou para a Suíça e, em 1939, para os Estados Unidos.
Quando a Faculdade de Filosofia da Universidade de Bonn lhe cassou o título de doutor honoris causa,  escreveu ao reitor: "Nestes quatro anos de exílio involuntário, nunca parei de meditar sobre a minha situação. Se tivesse ficado na Alemanha ou retornado, talvez já estivesse morto. Jamais sonhei que no fim da minha vida seria um emigrante, despojado da nacionalidade, vivendo desta maneira!"
Também Ricarda Huch  se retirou da Academia Prussiana de Artes. Na carta ao seu presidente, em 9 de Abril de 1933, a escritora criticou os ditames culturais do regime nazi: "A centralização, a opressão, os métodos brutais, a difamação dos que pensam diferente, os auto-elogios, tudo isso não combina com meu modo de pensar", justificou. Em 1934, a "lista negra" incluía mais de três mil obras proibidas pelos nazis.
Como disse o poeta Heinrich Heine:
Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas. »


O governo turco está  a queimar  livros – e outros países já fizeram o mesmo
Entre os autores já proibidos ao longo da história estão Victor Hugo, Walter Benjamin, Freud e George Orwell
Por Taís Ilhéu, 9.08.2019
"O ministro da educação turco, Ziya Selcuk, admitiu  que o governo da Turquia já incendiou mais de 300 mil livros desde 2016. A intenção era eliminar qualquer menção ao teólogo, pensador e escritor muçulmano Fethullah Gülen, acusado de promover uma tentativa de golpe de Estado contra o presidente Recep Tayyp Erdogan há três anos. Gülen vive exilado na Pensilvânia, nos Estados Unidos, e nega ter arquitectado um golpe.
Segundo o governo, os livros queimados haviam sido publicados por editoras já fechadas naquele mesmo ano, acusadas de propaganda terrorista. Os livros, no entanto, não são escolhidos apenas pelo filtro ideológico: qualquer relação possível de ser feita com Fethullah Gülen, por mais descabida que seja, coloca o livro na lista negra.
Segundo o site Turkey Purge, mantido por jornalistas independentes e que denunciam a censura no país, um livro de Matemática chegou a ser proibido em 2016 por conter uma explicação que mencionava o ponto F e G (iniciais do teólogo). Quase 2 milhões de livros também foram para a fogueira por mencionarem a Pensilvânia, estado nos Estados Unidos onde Gülen vive hoje.
Parece absurdo. Mas, infelizmente, novidade não é. Governos autoritários já fizeram o mesmo em diversos momentos da história. Mesmo a Igreja Católica criou a lista negra literária durante a Idade Média, a Index Librorum Prohibitorum. Grandes escritores e pensadores como Victor Hugo e Thomas Hobbes já apareceram na Index, que teve a última edição atualizada em 1948. Ainda assim, só em 1966 a lista foi oficialmente extinta. É, parece que Fahrenheit 451 nunca foi tão distópico assim. 
Os clássicos russos proibidos pela União Soviética

A literatura russa é política e combatente de nascença. Por isso, não é de se estranhar que na época da União Soviética diversos autores criticassem o regime soviético e o próprio chefe de Estado. Grandes nomes da literatura do país como Boris Pasternak, com   Dr. Jivago, ou Mikhail Bulgákov, com O Mestre e a Margarita, fizeram parte da lista negra do Glavlit (Direcção-Geral de Assuntos Literários e Editoriais). Os Filhos da Rua Arbat, de Anatoli Ribakov, tinha como um dos protagonistas da trama Estaline, e foi duramente reprimido. 

No Chile, o cubismo virou apologia a Cuba


Achou absurdo queimarem livros com referência à Pensilvânia na Turquia? O Chile de Pinochet não ficou tão para trás nas teorias da conspiração. Entre os mais de 15 mil livros queimados pelos militares da ditadura, muitos eram sobre o movimento artístico conhecido como cubismo, que tem entre um de seus expoentes Pablo Picasso. Uma das características do movimento na pintura é o uso de formas geométricas nas representações, daí o surgimento de seu nome. Mas não foi bem assim que Pinochet entendeu… para ele, “cubismo” fazia referência a Cuba, que havia feito sua revolução em 1959 e instaurado o socialismo. Para expurgar o perigo comunista, todos os livros foram para a fogueira.

Proibido ler e mencionar nas redes sociais
No ano passado, a notícia de que a China havia bloqueado a menção de alguns livros como 1984 e A Quinta dos Animais, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, nas redes sociais gerou críticas em todo o mundo. Todas esses livros são distopias que condenam regimes autoritários. Mas a censura literária na China não é novidade e tampouco restrita às redes sociais. A Administração Geral da Imprensa e Publicações (AGIP) é o órgão responsável pela regulação de editoras no país, e passa pelo seu crivo as obras e autores que podem ou não serem publicados. Essas medidas causam uma profunda instabilidade no mercado editorial chinês, já que cerca de 60% das editoras vivem na ilegalidade com a compra de números ISBN (obrigatórios para a publicação de um livro) das editoras autorizadas pelo governo. 

No Kuwait, não se pode ler Victor Hugo nem García Márquez

Na teoria, Cem Anos de Solidão e Nossa Senhora de Paris ferem de alguma forma o Islão ou a Justiça do Kuwait. Essa é a justificação oficial do país, que censurou nos últimos seis anos cerca de  4 mil livros. A proibição é feita pelo Ministério da Informação, apoiado por uma lei aprovada em 2006 pelo Parlamento, permitindo o controle sobre a imprensa e a publicação de livros. O regime político do Kuwait é a monarquia parlamentarista. 

As dez  mais lamentáveis queimas de Livros na história humana... 
Por Douglas Eralldo 
"Sim, livros tem poder. Libertam, criam independência e opinião. Justamente por isso, assim como já ocorreu com "as bruxas", ao longo da história humana, os livros foram queimados. Nesta lista apresenta-se uma seleção com as 10 lamentáveis queimas de livros na história humana:

1 - A queima nazi: Que a ascensão nazi provocou as maiores atrocidades em nossa recente história não restam dúvidas. E com os livros não foram diferentes, pois tão logo Hitler chegou ao poder como  acção propagandista do novo sistema em diversas cidades alemãs foram organizadas sessões de queima de livros que não estavam de acordo com os padrões impostos pelo regime nazi. Thomas Mann, Sigmund Freud, Albert Einstein, Karl Marx, foram alguns dos autores que arderam nas piras de Hitler;

2 - A Dinastia Chin: Outra conhecida queima de livros na história se deu por ordem do Primeiro Imperador da Dinastia Chin, que, por volta de 213 a.c, mandou queimar uma grande quantidade de livros que preservavam as ideias e moral dos antigos;

3 - A queima do faraó: Por ordens do faraó Akhnatón que sucedeu Ramsés II milhares de papiros foram queimados por falarem de espectros e demiurgos,  acabando por se destruir cerca de 75% da literatura existente;

4 - Os livros queimados de Wilhelm Reich: Com uma acusação de pornografia o Departamento de Estado Americano mandou queimar livros do autor, que entre outras contribuições para a sociedade estava o debate das funções do orgasmo;

5 - A destruição da Biblioteca de Alexandria: A destruição de uma das maiores bibliotecas da história antiga representou um verdadeiro "livrocídio". Embora os historiadores divirjam e muito sobre o que realmente aconteceu a versão que se popularizou é a de que a biblioteca foi destruída por ordem de Amr ibn al-As, governador provincial do Egito, em nome do califa Rashidun Omar ibn al-Khattab, pouco depois da conquista do Egito, comandada por Amr, em 642;

6 - A inquisição: Outro evento histórico responsável pelo extermínio de uma grande quantidade de livros foi a inquisição, que queimava não somente a obra, mas muitas vezes os próprios  autores. Só em Salamanca, durante a Inquisição espanhola, mais de 600 títulos foram para a fogueira;

7 - Fim aos escritos budistas: Em 1153 com a conversão das Maldivas ao Islão, além da decapitação dos monges budistas, uma grande quantidade de escritos sobre o budismo foram incinerados;

8 - A luta  entre Henrique VIII e o Papa: entre 1536 e 1550 ,a  divergência entre Henrique VIII e o papa resultou na incineração de textos católicos, fazendo em cinzas cerca de 300.000 volumes; 

9 - Queima do Alcorão: Não é preciso queimar uma biblioteca inteira para causar uma confusão internacional. Em 2012, soldados estrangeiros queimaram exemplares do Alcorão, numa base americana, o que obviamente  provocou grande reacção de animosidade  na região; 

10 - A Fogueira das Vaidades: Em 7 de Fevereiro de 1497, aconteceu a mais famosa das fogueiras das vaidades. Partidários de Girolamo Savonarola, padre e pregador dominicano em Florença, recolheram livros e outros objectos de arte ou de luxo   que teriam a capacidade de incitar ao pecado, queimando-os em praça pública;  Savonarola, afrontando a ordem papal ,  tinha declarado Florença como  a nova Jerusalém. Organizava diversos eventos para queimar obras de Ovídio, Propertius, Dante, Boccaccio, Boticcelli e Lorenzo di Credi entre outros, que não passaram despercebidos pelo Vaticano. Em retaliação, o papa excomungou Savonarola em Maio de 1497, e ameaçou uma interdição em Florença."

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Setembro


Ilustração: Susa Monteiro


 
Setembro, setembro, setembro 
por Dulce Maria Cardoso 
"Se um ano fosse um dia, setembro seria o seu fim de tarde. Dou-me bem com fins de tarde

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Da minha janela, vê-se a Poesia

É de Sebastião da Gama este momento de poesia. Num poema sem título afirmava
Da minha janela/vê-se a Poesia. Embora acrescentasse Não te digo, não,/se é bonita ou feia,/se é azul ou branca,/nem que formas tem. Acabava por sugerir:Queres conhecê-la?/Deixa o teu bordado,/vem para o meu lado,/que já podes vê-la/com teus próprios olhos.
E é disso que se trata . Ver, com os próprios olhos,  a poesia de Sebastião da Gama. Alguns  belíssimos poemas do seu segundo livro, editado há mais de setenta anos.

Meu país desgraçado!…

E no entanto há Sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há Céu mais alegre do que o nosso,
nem pássaros, nem águas…

Meu país desgraçado!…
Porque fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?

Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
— busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.

E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.

Alevanta-te, Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!

Povo anémico e triste,
meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!
— olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundar

as que só por Amor te não desprezam!
Sebastião da Gama, in Cabo da Boa Esperança Lisboa: Portugália Editora, 1947

Pureza

Vem toda nua
ou, se o não consentir o teu pudor,
vestida de vermelho.

Teus tules brancos,
o azul, que desmaia,
de tuas sedas finas,
guarda-os p’ra outros dias.

P’ra quando, Amor!, 
teu ventre, já redondo,
merecer a pureza do azul…
Sebastião da Gama, in Cabo da Boa Esperança
 Lisboa: Portugália Editora, 1947

Canção inútil

Nunca o Mar me quis ter nas suas ondas
enrolado e perdido.
Sou o Poeta das manhãs fecundas:
vivo me quer o Mar, para cantá-las

Ó Mar, onde se acaba
tudo que é vão!
Ó Mar feito do nada dos regatos
e dos rios efémeros!

Saibam minhas manhãs a maresia!
Haja ranger de cordas de navios
e searas de limos e de peixes,
haja a violência harmónica das ondas
nas manhãs que dão cor aos meus poemas!

Tudo fala verdade ao pé do Mar.
Mesmo as nuvens são velas que se rompem,
castigadas de um Sol que é vento puro
e que tem o direito de passar.
Andam gaivotas tontas à deriva
(acenos da ternura da Manhã…).
Tinem, nos estaleiros, marteladas.
E os motores monótonos, os gritos
dos homens e das aves, o inquieto
verbo do Mar, nas rochas espalmado
a todos os minutos, desde há séculos,
tudo revela a esplêndida verdade
de ao pé do Mar, em tudo que é do Mar,
a Vida estar desperta.

É o ar da Manhã, hálito alegre
do Mar, que enfuna as velas orgulhosas
desta canção poético-marítima.
Religiosamente aqui desfio
meu rosário de vagas.
Canção inútil!
Clarim que anunciou a Madrugada
depois de a Madrugada ter florido…
Sebastião da Gama, in Cabo da Boa Esperança Lisboa: Portugália Editora, 1947.

Segredo de amar

Fosse mais bela a vida e mais sincera…
Como eu lhe quero, mesmo assim!
Tanto lhe dei de mim
que já é menos acre do que fora.


Ah! bem me parece que o Amor melhora
quanto a graça de Deus não fez bonito.
Há lá coisa mais linda que um grito
quando foi o Amor que o pôs cá fora!...

Deixa ser o meu gesto uma grinalda
Nos teus cabelos, Vida!
Deixa que o meu olhar enflore teus olhos.

Adeus, adeus teus dedos ásperos!
Adeus teu rictus doloroso!
- Vida, quem é a minha namorada?
Sebastião da Gama, in Cabo da Boa EsperançaLisboa: Portugália Editora, 1947

Nasci para ser ignorante...

Nasci para ser ignorante 
mas os parentes teimaram 
(e dali não arrancaram) 
em fazer de mim estudante. 

Que remédio? Obedeci. 
Há já três lustros que estudo. 
Aprender, aprendi tudo, 
mas tudo desaprendi. 

Perdi o nome às Estrelas, 
aos nossos rios e aos de fora. 
Confundo fauna com flora. 
Atrapalham-me as parcelas. 

Mas passo dias inteiros 
a ver um rio passar. 
Com aves e ondas do Mar 
tenho amores verdadeiros. 

Rebrilha sempre uma Estrela 
por sobre o meu parapeito; 
pois não sou eu que me deito 
sem ter falado com ela. 

Conheço mais de mil flores. 
Elas conhecem-me a mim. 
Só não sei como em latim 
as crismaram os doutores. 

No entanto sou promovido, 
mal haja lugar aberto, 
a mestre: julgam-me esperto, 
inteligente e sabido. 

O pior é se um director 
espreita p'la fechadura: 
lá se vai licenciatura 
se ouve as lições do doutor. 

Lá se vai o ordenado 
de tuta-e-meia por mês. 
Lá fico eu de uma vez 
um Poeta desempregado. 

Se me não lograr o fado 
porém, com tais directores, 
e de rios, aves e flores 
somente for vigiado, 

enquanto as aulas correrem 
não sentirei calafrios, 
que flores, aves e rios 
ignorante é que me querem. 
Sebastião da Gama, in Cabo da Boa Esperança
 Lisboa: Portugália Editora, 1947
Sobre o autor
"Sebastião da Gama  é  natural de Vila Nogueira de Azeitão, Setúbal. Nasceu a 10 Abril 1924 e morreu  a 07 Fevereiro de1952.Concluiu o curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1947, e ainda nesse ano iniciou a sua actividade de professor, que exerceu em Lisboa, Setúbal e Estremoz. Foi colaborador das revistas Árvore e Távola Redonda. 
Sebastião da Gama ficou para a história pela sua dimensão humana, nomeadamente no convívio com os alunos, registado nas páginas do seu famoso Diário (iniciado em 1949). Literariamente, não esteve dependente de qualquer escola, afirmando-se pela sua temática (amor à natureza, ao ser humano) e pela candura muito pessoal que caracteriza os seus textos. Atingido pela tuberculose, que causaria a sua morte precoce, passou a residir no Portinho da Arrábida, com a panorâmica serra da Arrábida a alimentar o culto pela paisagem presente na sua obra. Foi, entretanto, instituído, com o seu nome, um Prémio Nacional de Poesia. Estreou-se com Serra Mãe, em 1945. Publicou ainda Loas a Nossa Senhora da Arrábida (1946, em colaboração com Miguel Caleiro), Cabo da Boa Esperança (1947) e Campo Aberto (1951). Após a sua morte, foram editados Pelo Sonho é que Vamos (1953), Diário (1958), Itinerário Paralelo (1967), O Segredo é Amar (1969) e Cartas I (1994)." escritas org.

domingo, 27 de setembro de 2020

Ao Domingo Há Música


"Negar a sucessão temporal, negar o eu, negar a ordem astronómica, são desesperos aparentes e consolos secretos. Nosso destino é espantoso porque é irreversível e de ferro. O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo. O mundo desgraçadamente é real; eu, desgraçadamente, sou Borges".(...) "A já avançada idade me ensinou a resignação de ser Borges".
 
                        Jorge Luis Borges"El tiempo está viviéndome"

É a Argentina que se invoca hoje. Com as palavras de um grande escritor argentino que morreu longe do seu país e com a música mais popular de Buenos Aires: o Tango. Dois grandes  músicos , que  também estando  longe desse belo país, interpretam peças de Astor Piazzolla, um dos mais talentosos artífices do tango. A música  nasce com  nacionalidade mas , ao crescer, adquire uma dimensão universal. Assim é o tango. Assim são os seus intérpretes.
Hauser e  Ksenija Sidorova, em  Adios Nonino,  de  Astor Piazzolla, no Gala Concert    "Hauser  &Friends" no  Arena Pula, Croácia,  em Agosto de  2018. São acompanhados pela  Zagreb Philharmonic Orchestra, sob a direcção do Maestro Ivo Lipanovic. Os arranjos pertencem a  Hauser e Filip Sljivac.
Foi filmado e editado pela MedVid production e  HauserAudio ,produzido por Hauser e  Filip Vidovic (Morris Studio).

Hauser e Ksenija Sidorova, em Oblivion , de Astor Piazzolla, no Gala Concert "Hauser &Friends" no Arena Pula, Croácia, em Agosto de 2018. Acompanhados pela Zagreb Philharmonic Orchestra, sob a direcção do Maestro Ivo Lipanovic. Arranjos de Hauser e Filip Sljivac.
Hauser e Ksenija Sidorova, em  Libertango de Astor Piazzolla , no "Hauser & Friends" Gala Concert, no  Arena Pula, Croácia, Agosto de  2018. Acompanhados pela Zagreb Philharmonic Orchestra, sob a direcção do Maestro Ivo Lipanovic. Arranjos de Hauser e Filip Sljivac.
Foi filmado e editado pela MedVid production e  HauserAudio ,produzido por Hauser e  Filip Vidovic (Morris Studio).

sábado, 26 de setembro de 2020

João Pedro Grabato Dias


João Pedro Grabato Dias:
uma genial oficina
por Eugénio Lisboa 

Be not affraid of greatness 
Shakespeare

"António Cabrita publicou na revista Caliban, de 14 de Novembro de 2016, um notável e justiceiro artigo dedicado a uma das mais fascinantes figuras de artista do século XX português: João Pedro Grabato Dias, heterónimo poético do pintor António Quadros e ainda heterónimo de outros poetas, como Frey Ioannes Garabatus e Mutimati Barnabé João.
Pintor, poeta, professor (de altíssimo quilate), ceramista, arquitecto (singularmente inovador), apicultor, agrónomo, artista gráfico, construtor naval, nas horas vagas, descobridor e divulgador da obra de Rosa Ramalho, este verdadeiro homem da Renascença, como, muito adequadamente, lhe chama António Cabrita, como ser uma das mais ricas, complexas e bem adestradas figuras do nosso mundo cultural – e não só! – é também uma das menos frequentemente citadas, quando se trata de ressalvar um reduzido punhado de eminentes poetas ou de artistas plásticos de relevo. E, no entanto, comparados com ele, a maior parte dos nossos festejados poetas não passam de canhestros aprendizes de feiticeiro. Que a grandeza de Grabato seja por alguns reconhecida mas cuidadosamente não promovida nem divulgada diz muito da pequenez do nosso mundo cultural (faça-se aqui uma ressalva para a grande actriz Maria do Céu Guerra que, com enorme empenho e arte, tem divulgado alguns aspectos da poesia de Grabato Dias). Observava, com subtil e certeira ironia, o grande ensaísta Daniel Boorstin que “alguns nascem grandes, outros ascendem à grandeza e outros contratam um bom oficial de relações públicas”. Quantas reputações, entre nós, se não fazem nos escritórios de esforçados agentes de relações públicas! Aí, o que menos conta é o mérito real. Não vou citar nomes: são demasiado conhecidos, ainda que minuciosamente protegidos. A verdadeira grandeza quase sempre assusta e fomenta, rapidamente, a reacção corporativa dos falsos grandes. Dizia o grande biólogo francês, Jean Rostand, que é também um notabilíssimo aforista na língua de Chamfort, que “a grandeza, para se fazer reconhecer, deve, frequentemente, imitar a verdadeira grandeza”. Dura verdade, mas também muitas vezes irreconciliável com temperamentos orgulhosos e reclusos de homens como Grabato Dias. A estes, resta-lhes, como único trunfo, o mérito real, valor a que só o tempo – e muito lentamente – permite que se dê o devido acolhimento.
O autor de livros notabilíssimos, como 40 e Tal Poemas de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada, O Morto, A Arca, Quybyrycas, Eu, o Povo, Pressaga, entre outros, é um dos mais inventivos, singulares, turbulentos e luxuosos manipuladores de palavras, metáforas, mitos, ritmos e rimas de que pode orgulhar-se o universo poético lusíada. Desassossegador de alto quilate, o autor desse livro único que é a “Ode Didáctica” O Morto surpreende-nos e agride-nos com algumas das mais fulgurantes e dilacerantes sondagens ao âmago do coração humano que regista a poesia lusa.
No citado e belo artigo de António Cabrita, podemos ler o seguinte: “Tem sido um destino. De cinco em cinco anos vejo-me obrigado a reeditar este texto, pelo mesmíssimo motivo: a insuportável obscuridade que caiu sobre um dos mais interessantes e completos espíritos da literatura e da arte portuguesa do século XX: António Quadros / Grabato Dias (1933 – 1994), pintor, poeta, ceramista, pedagogo, apicultor e um homem da Renascença como antes dele só houve um Almada Negreiros. Vivendo no limbo, entre Moçambique e Portugal, ninguém o reivindica e a todos faz sombra e a sua obra está toda por reeditar.” António Cabrita tem toda a razão, excepto num pequeno ponto: quando diz: “ninguém o reivindica e a todos faz sombra”, deveria substituir a copulativa “e” pela causal “porque”. O vertiginoso ofício poético deste grande fabbro ofusca, ofende e aterroriza poetas que não decifram os mais elementares segredos e buzinas de uma arte poética que de todo se lhes furta. Poetas como Grabato Dias, Reinaldo Ferreira ou David Mourão-Ferreira ou Régio são sub-repticiamente “ocultados” como inconvenientes, embora excepcionais artesãos de uma arte milenar, mas, hoje, perversamente contornada. Quadros / Grabato Dias era minucioso em tudo o que aprendia e aprendia devagar. A apicultura, a cerâmica, a pintura não se improvisam: aprendem-se. A poesia, também.
No meu terceiro volume de memórias, escrevi isto: “O Quadros era um verdadeiro fenómeno de saberes e técnicas de vários feitios (…). Nada lhe escapava, tudo aprendia, com empenho, atenção esforçada, lentidão… Não ia em evidências nem brilharetes. Cada território novo do saber era, para ele, um terreno armadilhado de dificuldades. Via obstáculos onde os outros viam facilidades. Percebia devagar, mas com obstinação. Na escola, chegaram a considerá-lo “atrasado”. Cada disciplina nova era um tormento: nada era fácil, mas, quando se punha a “escarafunchar”, chegava onde ninguém tinha chegado antes dele. Andava devagar, mas escavava fundo. O que aprendia era para sempre. O que descobria ficava. (Lembro-me só de um como ele, também “estúpido” e vagaroso no compreender – chamava-se Einstein).”
A maior parte da sua obra poética foi escrita em Moçambique, ao mesmo tempo que pintava e dava lições gratuitas a alunos locais, no Núcleo de Arte. Foram seus alunos atentos os hoje famosos Malangatana Valente (pintor) e Chissano (escultor). Quadros era um docente notável, esforçado e admiravelmente sensível às dificuldades dos alunos. Era de uma extrema minúcia em tudo o que fazia. Lembro-me, com grande saudade, de noites prolongadas até de madrugada, na nossa casa, em Lourenço Marques, com o António Quadros  a desvendar-nos todos os mistérios  da vida e percursos das abelhas. Era assim com tudo: um dedicado e autêntico profissional. Enquanto escrevia o seu longo poema satírico – Quybyrycas, prefaciadas por Jorge de Sena - , mais longo que os Lusíadas, tinha fixado na parede um gráfico em que mostrava o progresso diário do poema, em estrofes concluídas. Tanto o Quadros, pintor, como o Grabato Dias, poeta, se consideravam, orgulhosamente, simples operários. O preço  dos quadros que vendia nada tinha a ver com a enorme reputação de que já então desfrutava: era rigorosamente calculado em função do número de horas de trabalho investidas na obra. Preços dignos, mas razoáveis. Dado que a maioria dos compradores era gente bastante endinheirada, que estava disposta a pagar-lhe o que ele pedisse, a sua contenção “operária” era tanto mais admirável.
Generoso e atrevido, quando o jornal A Voz de Moçambique se viu perseguido pelos poderes do dinheiro, aliados aos do Estado Novo, sendo-lhe vedado o acesso a todas as tipografias (endividadas ao Banco Nacional Ultramarino e portanto nas mãos dele), o António Quadros, recentemente chegado a Moçambique, caiu-nos do céu na redacção do jornal, ensinando-nos a fazê-lo pelo processo offset, um dos seus inúmeros saberes. Em noitadas de calor e humidade sufocante, de tronco nú, ofereceu-nos, gratuitamente, maquetes inesquecíveis, paginando o jornal de ponta a ponta e assim nos ajudando a baratinar a malandragem no poder.
Termino com uma passagem da homenagem que lhe prestei nas minhas memórias: “Como poeta, como pintor, como fazedor, como criador, como intrépido desvendador de territórios ignotos, António Quadros foi um dos raros génios que tive o privilégio de conhecer, em vida. Não me apetece, neste caso, estar com cuidado a medir as palavras: disse “génio” e disse bem."

                                                S. Pedro do Estoril,   19.08.2020 

Eugénio Lisboa, em Crónica  publicada no JL nº 1304, de 23 de Setembro a 6 de Outubro de 2020.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A Arte segundo Camus


Albert Camus escreveu muito e magistralmemte. É possível construir um dicionário de ideias  com muitas das reflexões que deixou nos seus livres. Houve quem o fizesse. Eis algumas sobre Arte:

ARTE/ FILOSOFIA: "Por que sou eu um artista e não um filósofo? É porque penso segundo as palavras e não segundo as ideias." ("Cadernos") 

ARTE/ FINALIDADE: "A finalidade da arte não é de legislar ou reinar, mas em primeiro lugar, a de compreender. [...] Por isso o artista, ao chegar ao fim do caminho, absolve em vez de condenar. Não é juiz, mas defensor. É o advogado perpétuo da criatura viva. Porque está viva. Exorta verdadeiramente ao amor ao próximo, que não é esse amor longínquo que degrada o humanismo contemporâneo do catecismo de tribunal." ("Discursos da Suécia") 

ARTE: "A arte não é para mim um prazer solitário É uma maneira de comover o maior número possível de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e alegrias comuns." ("Discursos da Suécia") 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

As vozes do Outono

 
Autumn Leaves por Frank Sinatra.  
Mark Whitfield ft Diana Krall, em  Early Autumn (Verve Records 1997).
Mark é acompanhado por  Roland Guerin (bass), Donald Edwards (drums), Jim Pryor (piano), e Diana Krall (vocals).  Released in 1997.  (Verve Records)

Early Autumn

When an early autumn walks the land and chills the breeze

 And touches with her hand the summer trees

Perhaps you'll understand what memories I own


There's a dance pavilion in the rain all shuttered down

A winding country lane all russet brown

A frosty window pane shows me a town grown lonely

 

That spring of ours that started so April-hearted

Seemed made for just a boy and girl

I never dreamed, did you, any fall would come in view

So early, early


Darling, if you care, please, let me know

I'll meet you anywhere, I miss you so

Let's never have to share another early autumn

 
Autumn in New York , por Louis Armstrong e Ella Fitzgerald.
Ute Lemper , em  Les Feuilles Mortes, no  Prague Proms Festival 2017.
‘PARIS, PARIS’ Concerto  com a  Czech  National  Symphony  Orchestra, dirigida  pelo   Maestro  Vince  Mendonza,  que  também  contribuiu  com  cinco novos arranjos de canções de Serge Gainsbourg, Charles Trenet, Kosma e Prevert para Ute Lemper interpretar.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

A ideia de Deus

Confissão (Fragmentos)
XII
por Lev Tolstoi

" (...)Por essa mesma altura, aconteceu-me o seguinte. Durante esse ano em que quase a cada minuto perguntava a mim mesmo se não seria melhor acabar tudo com uma corda ou com uma bala - durante todo esse tempo, a par dos pensamentos e das observações de que falei, o meu coração andava oprimido por um sentimento doloroso. Um sentimento que só posso designar como a procura de Deus.
Digo que essa procura de Deus não era um raciocínio , mas uma sensação, porque  essa procura decorria não do curso dos meus pensamentos - era directamente oposto a eles - mas procedia  do meu coração.  Era um sentimento de medo, da orfandade, de solidão no meio de tudo o que me era estranho e de esperança na ajuda de alguém.
Embora eu estivesse plenamente convencido da impossibilidade de provar a existência  de uma divindade ( Kant provara-mo e eu compreendia-o inteiramente), mesmo assim procurava Deus ,  tinha esperança de que o encontraria,  e por um velho hábito dirigia-me em orações àquilo que  procurava e não encontrava . Ora examinava os argumentos de Kant e de Schopenhauer acerca da impossibilidade de provar a existência  de uma divindade, ora começava a refutá-los.  A causa, dizia  eu a mim mesmo, não é uma categoria de pensamento como o espaço e o tempo . Se eu existo, existe uma causa  para isso, e existe a causa das causas da vida.  E essa causa de tudo é aquilo a que chamam Deus; detinha-me neste pensamento e tentava com todo o meu ser reconhecer a presença dessa causa. E , assim,  que reconhecia que existe uma força que me tem em seu poder , logo sentia a possibilidade da vida. Mas perguntava a mim próprio: « O que é essa causa, essa força? Como posso eu pensar  nela, como relacionar-me com aquilo a que chamo Deus?» E só me vinham à cabeça  as respostas  conhecidas:  « Ele é o criador , a providência .» Estas respostas  não me  satisfaziam  e sentia que se perdia em mim aquilo de que necessitava  para a vida. Ficava apavorado e começava a rezar àquele  que procurava ,   para que Ele  me ajudasse.  E quanto mais eu rezava , mais evidente era para mim que Ele não me ouvia e que não havia ninguém  a quem pudesse recorrer. E, com o desespero no coração por Deus não existir, dizia:
« Senhor, tem piedade, salva-me! Senhor, ensina-me, meu Deus!» Mas ninguém  se apiedava de mim, e eu sentia que a minha vida  parava.
Mas uma e outra vez, de vários outros lados, voltava a mesma conclusão de que eu não podia ter aparecido neste mundo sem um motivo, uma causa  e um sentido, de que não posso ser assim uma avezinha caída do ninho. Ou,  mesmo sendo uma avezinha caída do ninho, estou deitado de costas , a piar entre as ervas altas, mas estou a piar porque sei que uma mãe me carregou no seio, me incubou, me aqueceu, alimentou e amou. Onde está ela, essa mãe?  Se me abandonaram , quem foi que me abandonou? Não posso ocultar de mim mesmo  que alguém me deu à luz com amor. Mas quem foi esse alguém? - Deus - uma vez mais. 
« Ele  conhece e vê a minha procura, o meu desespero, a minha luta. Ele existe», dizia eu a mim mesmo. E bastava-me  admitir isto por um instante, logo a vida se elevava em mim e eu sentia  a alegria da existência . Mas uma vez mais , da admissão da existência de Deus  passava à busca da minha relação com Ele, e de novo imaginava  esse Deus , nosso criador em três pessoas , que nos enviou o Filho, o Salvador e de novo esse Deus, separado do mundo e de mim, se derretia diante dos meus olhos como um bloco de gelo e uma vez mais não restava nada , e uma  vez mais secava  a fonte da vida , e eu desesperava e sentia  que não tinha mais nada a fazer senão matar-me. E o pior  de tudo era sentir que não podia fazer isso.
Não duas, nem três vezes, mas dezenas e centenas de vezes chegava a estas condições - ora de alegria e animação, ora novamente de desespero e de consciência da impossibilidade da vida.
Lembro-me de que foi no princípio da Primavera: estava sozinho no bosque a escutar-lhe os sons. Escutava e pensava sempre na mesma  coisa, como tinha constantemente  pensado durante os últimos três anos. Andava outra vez à procura de Deus.
«Está bem, não existe Deus nenhum  - dizia para comigo -, não existe nada que não seja a minha imaginação, mas uma realidade como toda a minha vida; isso não existe. E nada , nenhum milagre ( nenhuns milagres) pode provar isso, porque os milagres serão imaginação minha, além disso irracional.»
« Mas a minha ideia de Deus, daquele que eu procuro? - perguntava a mim mesmo. - De onde me veio essa ideia?» E a este pensamento de novo subiam  em mim as alegres ondas da vida. Tudo à minha volta revivia, ganhava sentido. Mas essa alegria não durava muito tempo. A minha mente continuava o seu trabalho. « A ideia de Deus é aquilo que eu posso suscitar e posso não suscitar em mim. Não é isso o que eu procuro. Eu procuro aquilo sem o qual não podia existir vida.» E uma vez mais tudo começava a morrer à minha volta, e de novo tinha vontade de me matar. 
Mas então olhei para mim mesmo, para aquilo que se passava no meu íntimo; e lembrei-me  de todas essas centenas  de agonias e revivescências? Lembrei-me de  que só vivia quando acreditava em Deus. Tal como antes antes dizia a  mim mesmo: basta-me ter a ideia de Deus, para viver; basta-me esquecer, não acreditar nele , e morro. Não vivo quando perco  a fé na existência de Deus, e já há muito  me teria suicidado se não tivesse uma vaga esperança de encontrá-lo. Porque eu só vivo verdadeiramente quando O sinto e O procuro.
Que procuras tu então? - exclamou uma voz  dentro de mim. Portanto isto é Ele. Ele é aquilo sem o qual não se pode viver. Conhecer Deus e viver é a mesma coisa. Deus é vida.
«Vive procurando Deus, e assim não haverá vida sem Deus. » E, mais fortemente do que nunca, tudo dentro de mim e à minha  volta  se iluminou e essa luz  já nunca mais me abandonou. 
E salvei-me do suicídio. Não seria capaz de dizer quando e como se deu em mim essa reviravolta. Da mesma maneira imperceptível e gradual  que se destruía em mim a força da vida, e eu chegava à impossibilidade  de viver,  a uma paragem da vida,  à necessidade  do suicídio, também gradualmente, de maneira imperceptível , me voltava  essa força da vida. E o  estranho é que a força  da vida  que me voltava não era nova,  mas velha , a mesma que me puxava  nos primeiros anos da minha vida. Voltei em tudo  ao mais antigo , à infância  e à juventude. Voltei à fé naquela vontade que me produziu  e que quer alguma coisa de mim; voltei àquilo que é principal e único objectivo da minha vida , que é ser melhor , ou seja, viver de  acordo  com essa vontade; voltei à fé  de que posso encontrar a manifestação dessa vontade  naquilo que, em horizontes que me são ocultos, toda a humanidade produziu para sua orientação, isto é, voltei à fé em Deus, no aperfeiçoamento moral e na tradição que transmite o sentido da vida. A  única diferença estava em que dantes tudo isto era aceite inconscientemente, e agora eu sabia que sem isso não podia viver."
Lev Tolstoi , in Os  Últimos Escritos, Relógio D'Água Editores, Setembro de 2018, pp. 11-15

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Deixa ficar comigo...

PARAÍSO

Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,

entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.

David Mourão-Ferreira (1927 – 1996), in "Infinito Pessoal" , Guimarães editores, 1963


OS AMANTES SEM DINHEIRO

Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.
 
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

Eugénio de Andrade (1923 – 2005), in “Antologia Breve”, Editora Limiar – Outubro.1985


O BEIJO

Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

Alexandre O'Neill (1924 — 1986), in “'No Reino da Dinamarca' ,Editora Relógio D'Água

domingo, 20 de setembro de 2020

Ao Domingo Há Música

Ao longo dos tempos, a  Música tem feito parte da história da humanidade. Ora erudita, ora popular não deixa de crescer e  de se renovar. Sem ela o mundo já não se pensa. É força, motor , alento , evasão,  magia.  Recruta e seduz. E para a celebrar, há sempre novas  vozes que se distinguem pela musicalidade e pelo  talento  com que interpretam as canções.
Neste domingo, escolhemos duas  cantoras de sucesso que bem atestam a validade destas afirmações: Adele e Lady Gaga. 
Adele, em  Send My Love (To Your New Lover)
 
Lady Gaga  e Adele,  em Million Reasons / Someone Like You.
Licenciado ao YouTube por UMG (em nome de Interscope); BMI - Broadcast Music Inc., ARESA, Sony ATV Publishing, Concord Music Publishing, UNIAO BRASILEIRA DE EDITORAS DE MUSICA - UBEM, LatinAutor - PeerMusic, UMPI, ООО С.Б.А. Мьюзик Паблишинг/S.B.A.Music Publishing LTD, CMRRA, Abramus Digital, SOLAR Music Rights Management,BMG Rights Management (US),LLC e 20 sociedades de direitos musicais.

sábado, 19 de setembro de 2020

Ajuda-me a olhar!

 

A Função da Arte 1
«Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o sul. Ele, o mar, está do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: ‘Ajuda-me a olhar!’»
Eduardo Galeano , in O livro dos Abraços, Antígona Editores, p.9

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Os livros da rentrée

Novo livro de poesia de Eugénio Lisboa
Poemas em Tempo de Peste, de Eugénio Lisboa chega às livrarias a 29 de Setembro de 2020. A edição tem a chancela da Guerra & Paz. 
Sinopse
"Merda para esta vida de paz, / diria, se fosse escritor naturalista: / porque, já agora, tanto me faz / comer um bife ou simplesmente alpista
Com esta desembaraçada franqueza, o poeta Eugénio Lisboa enfrenta, desabafa, ri-se e faz-nos rir deste perigoso mundo em que um vírus nos pôs a viver. Poemas em Tempo de Peste não é só um livro de poemas, é uma aventura em que se fundem literatura e vida. Ah, mas fundem-se com um grande sentido lúdico e um melancólico langor, que tanto toca em Camões, Eliot ou Almada, como no sabor a paraíso de uma África que já foi, porque «o passado sempre conta / quando o vírus já desponta!» À mesa destes Poemas em Tempo de Peste, são chamados a sentar-se os grandes do mundo. 
Os Poemas em Tempo de Peste de Eugénio Lisboa tanto cantam o admirável Pinto da Costa em decassílabos (não murchos) «com umas rimas do caraças», como lançam farpas a alguns escritores de que não dizemos os nomes: cuidado com os rapazes!"
Outras Inquirições, de Jorge Luis Borges , com edição de Quetzal Editores. Está nas livrarias em Setembro.
Sinopse
"Outras Inquirições reúne alguns dos ensaios mais brilhantes de Jorge Luis Borges - constituem um diálogo permanente com o mundo e fazem do seu nome uma referência indispensável para a cultura do século XX.
Os textos reunidos em Outras Inquirições abordam temas importantes e quase obsessivos na obra de Jorge Luis Borges: as relações entre o espaço e o tempo, a previsão do futuro, a eternidade, o suicídio e a redenção, o infinito, a existência do inferno, o papel da alegoria, os nomes de Deus, a leitura cabalista da Bíblia, a filosofia e a poesia chinesas, o panteísmo, os clássicos e a sua importância, a lenda de Buda ou a refutação do tempo - e ainda uma lista de autores que sempre amou, de Cervantes a Chesterton, de Coleridge ou Quevedo a Kafka e Oscar Wilde. Publicado pela primeira vez em 1952, Outras Inquirições é um título que nos devolve o seu génio criador e solitário, onde Borges reúne alguns dos seus mais importantes ensaios, como Magias Parciais do Quixote, Kafka e os Seus Precursores ou Do Culto dos Livros."
A Vida Mentirosa Dos Adultos , de Elena Ferrante tem edição da Relógio D'Água, com tradução de Margarida Periquito. Está nas Livrarias em Setembro.
Sinopse
«Dois anos antes de sair de casa, o meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia» é a frase inicial deste romance.
A revelação é feita por Giovanna, que ao olhar paterno se transformara de criança encantadora em adolescente imprevisível, que parecia tornar-se cada dia mais parecida com a desprezada tia Vittoria.
A frase ouvida sem que os pais o soubessem vai levar Giovanna a procurar conhecer a tia, cujas fotografias foram apagadas dos álbuns de família e é evitada em todas as conversas.
Para saber se estará realmente a tornar-se semelhante à tia, vai visitar a zona empobrecida de Nápoles, a conhecer uma versão diferente dos seus pais, provocando sem o saber a desagregação da sua família intelectual, compreensiva e perfeita na aparência.
Confirmando a sua mestria narrativa e o profundo conhecimento do que se passa na cabeça das adolescentes, Ferrante constrói um enredo surpreendente, ligando uma história de iniciação aos episódios de uma pulseira que passa de mão em mão.
Giovanna move-se entre duas famílias e duas zonas da cidade em busca dela própria, na passagem da adolescência para a idade adulta."

Quichote, de Salman Rushdie, publicado pela Editora Dom Quixote, está nas livrarias em Setembro.
Sinopse
"
Inspirado pelo clássico de Cervantes, Sam DuChamp, um medíocre autor de livros de espionagem, cria Quichotte, um cortês e apatetado vendedor ambulante obcecado pela televisão que é vítima de uma paixão impossível por uma estrela de TV. Acompanhado pelo seu filho (imaginário) Sancho, Quichotte empreende uma picaresca busca pela América a fim de se mostrar digno da sua mão, arrostando valorosamente com os tragicómicos perigos de uma era em que Tudo-Pode-Acontecer. Entretanto, o seu criador, que vive uma crise de meia-idade, enfrenta igualmente os seus imperiosos desafios. Tal como Cervantes escreveu Dom Quixote para satirizar a cultura do seu tempo, Rushdie transporta o leitor numa desvairada corrida através de um país à beira do colapso moral e espiritual. E, com aquela magia narrativa que é a imagem de marca da obra de Rushdie, as vidas amplamente realizadas de DuChamp e Quichotte interpenetram-se numa busca profundamente humana do amor e num retrato perversamente divertido de uma época em que os factos são tantas vezes indistinguíveis da ficção. "

O Mundo à Minha Procura, de Ruben A., com edição da Assírio & Alvim e nas livrarias em Setembro.
Sinopse
"Passando pela infância, o primeiro amor, os estudos em Coimbra, amizades, livros e viagens, esta obra representa, como afirmou Ruben A. numa entrevista ao Diário Popular em Julho de 1965, «uma necessidade urgente de arrumar a minha vida sentimental, de ver a novela que dentro do meu ser transporto. A forma autobiográfica é a mais pura do romance, a criação permanente de um estado de espírito que traz presentes os fantasmas que se acolheram no sótão da sensibilidade."

Na Planície das Serpentes, de Paul Theroux, com chancela de Quetzal Editores. Em Setembro nas livrarias.

Sinopse
"Paul Theroux regressa aos seus temas clássicos, e pela porta grande: o México, a terra de todas as aventuras e de todos os sonhos. Na cultura ocidental, o México é a terra da liberdade - foi o país procurado pelos foragidos e pelos aventureiros, pelos escritores europeus e americanos e pelos viajantes em busca de exotismo, pacificação e turbulência. Da fronteira com os EUA até ao limite das grandes montanhas a sul, o México é o mapa da literatura, do cinema, da música e do gosto de viver e de viajar.
No deserto de Sonora ou nas grandes pirâmides das civilizações maia ou tolteca, nas cidades modernas ou nas que conservam a beleza da arquitectura colonial, Theroux redescobre para todos nós um país grandioso e cheio de história, que fascina várias gerações: as mais velhas, que relembram a música, a literatura e o gosto pela história; as mais jovens, que não perderam o gosto pela liberdade e pela aventura. Paul Theroux percorre toda a extensão da fronteira EUA-México (onde encontra emigrantes em busca de conforto) e depois mergulha profundamente no interior, nas estradas secundárias de Chiapas e Oaxaca, vai a Monterrey e a Veracruz para descobrir um mundo fascinante escondido por detrás da brutalidade e da violência das manchetes dos jornais e das histórias dos cartéis da droga."
Uma História de Espanha, de Arturo Pérez-Reverte , com chancela da Asa Editora, nas livrarias, em Setembro.
Sinopse
"Neste relato pessoal, irónico e sempre sagaz, Arturo Pérez-Reverte conta a acidentada história do nosso país vizinho. Uma obra concebida, segundo o autor, como "um pretexto para olhar para trás desde os tempos remotos até ao presente, reflectir um pouco sobre ele e contá-lo por escrito de uma forma pouco ortodoxa".
Das origens de Espanha até ao final da transição para o regime democrático, os principais acontecimentos da história do nosso vizinho ibérico são narrados com um olhar único, construído com as doses certas de leituras, experiência e senso comum.
"O olhar com que escrevo romances e artigos, não fui eu que o escolhi - diz o autor -, é, sim, o resultado de todas essas coisas: a visão, mais ácida do que doce, de quem, como diz um dos meus personagens, sabe que ser lúcido em Espanha acarreta sempre muita amargura, muita solidão e pouca esperança." 
Tempos Duros, de Mario Vargas Llosa , edição de Quetzal Editores, em Setembro, nas livrarias.
Sinopse 
"Guatemala, 1954. O golpe militar encabeçado por Carlos Castillo Armas, e apoiado pelos Estados Unidos através da CIA, provoca a queda do governo reformista de Jacobo Árbenz. Por detrás desta ação violenta está uma mentira que passou por verdade e que mudou a história da América Latina: a acusação — por parte do governo de Eisenhower — de que Árbenz, um líder moderado, encorajava a entrada do comunismo soviético no país e no continente. 
Neste romance apaixonante, evocativo das suas melhores reconstituições de episódios da vida da América Latina e das suas singularidades, Mario Vargas Llosa funde a realidade com duas ficções: a do narrador que livremente recria personagens e situações; e a que foi desenhada por aqueles que quiseram controlar a política e a economia de um continente, manipulando a sua história, pondo e dispondo da vida de países que tentaram caminhos independentes."
Pela Terra Alheia. Notas de Viagem , de Ramalho Ortigão
Sinopse
"As grandes descrições e narrativas de Ramalho Ortigão inventaram a moderna literatura portuguesa de viagens, emprestando-lhe cosmopolitismo, alegria e luxúria - e um picante de humor e ironia que só Ramalho pôde conhecer. 
Condensando num só volume os dois tomos da edição original que reúne textos escritos entre 1867 e 1910, esta edição de Pela Terra Alheia percorre a Espanha, a Argentina, a França, a Alemanha e a Itália. São evidentes o apreço pelo detalhe, a notável ironia de Ramalho Ortigão, bem como o seu deslumbramento pelas cidades e paragens que visita. Simultaneamente romântico e cosmopolita — o autor de Praias de Portugal é um viajante culto e informado, desejoso da companhia do leitor; por isso, os seus textos são visuais, enaltecem a paisagem (descrevendo-a em pinceladas fortes), elogiam os costumes e os hábitos estranhos, constroem um ideal de civilização onde o homem é substituído pelo gentleman e a curiosidade é tão eterna como as paragens por onde nos leva, concebendo-se a si mesmo como «um risonho fantasma de pé leve». 
O final é digno de uma grande ópera, à vista da Sicília, a súmula do espírito da civilização."

Os livros da Relógio D'Água para Outubro:

1 — A Minha Luta: O Fim, de Karl Ove Knausgård
2 — A Quinta dos Animais: O Romance Gráfico, de George Orwell (Adaptado e Ilustrado por Odyr)
3 — Fogos, de Marguerite Yourcenar
4 — A Ciência de Interstellar, de Kip Thorne
5 — A Noite das Barricadas, de H. G. Cancela
6 — Sapatos de Corda, de Mónica Baldaque
7 — Peregrino e Estrangeiro: Ensaios, de Marguerite Yourcenar
8 — EstojoPoesia Édita e Inédita, de Miguel-Manso
9 — Mary Ventura e o Nono Reino, de Sylvia Plath
10 — O Sítio do Lugar Nenhum, de Norberto Morais
11 — Reino Transcendente, de Yaa Gyasi
12 — A Muralha, de Agustina Bessa-Luís
13 — O Almanaque do Céu e da Terra, de Cristina Carvalho