quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Fado Português


Fado Português 

O Fado nasceu um dia
Quando o vento mal bulia
E o céu o mar prolongava,
Na amurada dum veleiro,
No peito de um marinheiro
Que estando triste, cantava.

(...)

( - Ai, que lindeza tamanha,
Meu chão, meu monte, meu vale,
De folhas, flores, frutas de ouro!
Vê se vês Terras de Espanha,
Areias de Portugal,
Olhar ceguinho de choro...
)

(..)

Na boca do marinheiro
Do frágil barco veleiro,
Morrendo a canção magoada
Diz o pungir dos desejos
Do lábio a queimar de beijos
Que beija o ar e mais nada.

( - Mãe, adeus! Adeus, Maria!
Guarda bem no teu sentido
Que aqui te faço uma jura
Que ou te levo à sacristia,
Ou foi Deus que foi servido
Dar-me no mar sepultura!
)

 (...)

Ora eis que embora, outro dia,
Quando o vento nem bulia
E o céu o mar prolongava,
À proa de outro veleiro,
Velava outro marinheiro
Que estava triste e cantava.
José Régio, in Fado, Arménio Amado Editor, Coimbra, pp.39-44

Livres Pensantes vai fazer uma pausa. As pausas  podem ter diferentes finalidades ou não ter qualquer uma. Esta é apenas uma pausa. Uma paragem necessária. Um hiato entre dois momentos. O próximo será o regresso. 
Até lá , fica  um grande momento de Fado, com belíssimas vozes femininas. 
Ai , que lindeza tamanha!

Amália Rodrigues, em Fado Português. Poema de José Régio e Música de Alain Oulman.
    
Amália Rodrigues, em  Gaivota . Poema de Alexandre O'Neill e Música de Alain Oulman.
                  
Carminho, em Lágrimas  do Céu, composição de Carlos Conde/Alfredo Marceneiro.
 
Carminho, em Escrevi Teu Nome No Vento, composição de Raul Ferrão.
 
Mariza, em Chuva , composição de Jorge Fernando.
Mariza, em Gente Da Minha Terra. Letra de Amália Rodrigues e Música  de Tiago Machado.
.   
Sara Correia, em  Quero É Viver. Letra e Música de  António Variações . 
 
Sara Correia , em Chegou Tão Tarde. Letra e Música de  Joana Espadinha.
 
Ana Moura, em  Tens Os Olhos De Deus. Letra e Música de Pedro Abrunhosa.
Ana Moura, em Arraial Triste  (Official Video), do novo álbum Casa Gulhermina. Produção e autoria de Pedro Mafama  e  Ana Moura.
   
Dulce Pontes, em Canção do Mar, num espectáculo ao vivo no  Odeon of Herodes Atticus, em  Atenas. Composição de  Frederico de Brito/Ferrer Trindade.
 
Dulce Pontes, em Povo que lavas no rio. Poema de Pedro Homem de Melo e Música de Joaquim Campos.
 
Gisela João , em  Canção ao Coração ,  no  Programa Eléctrico da  Antena 3. A letra e a música são de Gisela João.
   
Gisela João, em Labirinto ou não foi nada. Poema de David Mourão-Ferreira e  Música de Francisco Viana.
 

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Representar a pátria



Representar a pátria
                 ou
Somos os melhores do mundo
 
Esta ditosa pátria minha amada
enviou os seus barões assinalados,
de cabeça solene e levantada,
representá-la num dos emirados.
 
Jogava-se ali o nosso destino:
ganhar ou não ganhar o campeonato
fazia do país grande ou franzino,
o que tornava o povinho insensato.
 
Que importavam os direitos humanos,
que não tinha a mulher Qatari
e os trabalhos mais que desumanos
 
se o que importava era o charivari?
Ali, no abençoado relvado,
o nosso passado era confirmado!
                                 23.11.2022
Eugénio Lisboa

Uma delícia


Encantamo-nos com esta aula de inglês "às avessas" pelo prestigiado Millôr Fernandes (1923-2012), desenhista, humorista, dramaturgo, escritor, poeta, tradutor e jornalista brasileiro. A tradução para inglês dos ditos mais populares brasileiros , realizada literalmente, deu forma a um livro que é uma pura peça de fino humor.  O texto está publicado no blog Isso compensa,  que aplaudimos e agradecemos.
The Cow Went to the Swamp
"No final dos anos 80, Millôr Fernandes traduziu para o inglês, do jeito dele, carregado de humor, ditos e expressões bem brasileiros. O resultado foi o livro The Cow Went to the Swamp, A vaca foi para o brejo, lançado em 1988. No livro, Mr. Millôr, sério tradutor de Shakespeare e outros monstros da língua inglesa, resgata com humor e ironia frases e ditos do uso popular e traduz tudo “para inglês não ver”, ao pé da letra, by the foot of the letter. Com ilustrações do cartunista Nani e em forma de dicionário temático, The Cow… é uma aula de inglês às avessas, uma não-aula, que nos ensina mais sobre nós e nossa relação com essa outra língua do que sobre o inglês de cursinho disseminado por aí. Ladies and gentlemen, Mr. Millôr:

A vaca foi pro brejo
The cow went to the swamp
 
Abotoou o paletó
He buttoned his jacket
 
Afinal de contas
In the end of calculations
 
Afogar o ganso
To drown the goose
 
Água que passarinho não bebe
Water that the little bird despises
 
Aspone (Assessor de porra nenhuma)
Saaa (sperm at all assessor)
 
Botar as manguinhas de fora
To put the little mangod outside
 
Botar a boca no trombone
To put the mouth in the trombone
 
Botar as barbas de molho
To put the whiskers in gravy
 
Cabra da peste
Goat of the plague
 
Cair no conto do vigário
To fall in the vicar’s tale
 
Careca de saber
Bald of knowing
 
Carioca da gema
Carioca of the egg’s yolk
 
Chamar urubu de meu louro
To call a vulture my blonde
 
Chato de galocha
A crab in galoshes
 
Cheio de nove horas
Full of nine o clocks
 
Colou na prova
He glued on the exams
 
Comeu mosca
He ate fly
 
Contar com o ovo no cu da galinha
To count with the egg in the hen’s ass
 
Cozinhou em banho-maria
He cooked in Mary’s bath
 
Custou-me os olhos da cara
It cost me the eyes of the face
 
Dar pra trás
To give backwards
 
Dar uma colher de chá
To give a spoon of tea
 
Dar um fora
To give an outside
 
Dedurar
To hardfinger
 
Descolou uma grana
He unglued some dough
 
Desovar um presunto
To unegg a ham
 
É cobra criada
He’s a pet snake
 
É o pai, cuspido e escarrado
He’s a father, spit and expectorated
 
É um barato
It’s a male cockroach
 
Ela é uma besta quadrada
She is a square beast
 
Ela é sapatão
She’s a big shoe
 
Ele não regula bem
He doesn’t regulate well
 
Esticou as canelas
Stiffened the cinnamons

Fazendo cu-doce
Making sweet-asshole
 
Fizeram uma vaquinha
They made a little cow
 
Mais pra lá que pra cá
More to that way than to this
 
Matando cachorro a grito
Killing dogs with screams
 
Matar a aula
To kill the class
 
Minha cara metade
My expensive half
 
O que cai na rede é peixe
What falls into the net is fish
 
O sol tá de rachar
The sun is of splitting
 
Onde o diabo perdeu as botas
Where the devil lost his boots
 
Ou dá ou desce
Whether you give or get down
 
Partir pra ignorância
To leave for the ignorance
 
Picar a mula
To sting the she-mule
 
Porra louca
Crazy sperm
 
Pé frio
Cold foot
 
Pé rapado
Shaved foot
 
Saiu cuspindo marimbondo
He went out spitting wasp
 
Saiu de fininho
He went out as a little thin
 
Santinho do pau oco
Little saint of hollow wood
 
Sebo nas canelas
Grease in the cinnamons
 
São carne e unha
They are flesh and nail
 
Tá puxando fumo
He’s pulling smoke
 
Tirar o cavalinho da chuva
To take the little horse out of the rain
 
Unha de fome
Nail of hunger
 
Uns gatos pingados
Some dropped cats
 
(blog Isso compensa)

terça-feira, 22 de novembro de 2022

BENFEITOR PRECISA-SE!

  

Destruir, sem pestanejar, um povo
inteiro, de frio, fome e de sede,
é próprio do mostrengo de Moscovo,
que, com frio de lagarto, procede
 
ao seu prazer perverso e favorito
de pôr-se sempre em bicos de pés,
para se mostrar muito homenzito,
arrasando todo um país rés vés.
 
Matar não lhe custa porque não sente
e, com toda a desenvoltura, mente,
porque assim gira seu ego demente!
 
Putine rima bem com assassine,
mas também com fulmine e chacine:
venha um benfeitor que o elimine!
                     22.11.2022
Eugénio Lisboa

Entre o sonho e o engano da vida




Eu venho do sonho e fujo da vida.
Errei no caminho para a paz prometida.
   
 Só sei que me chama um canto do mar.
 E a nau dos sonhos  no céu a varar.
   
 Ó meu capitão da barca perdida
 A errar entre o sonho e o engano da vida!
              Natália Correia, Rio de Nuvens 

Lamento della Ninfa, SV 163: Amor, amor , de Claudio Monteverdi por Regula Muehlemann e a CHAARTS Chamber Artists (official music video). Regula Mühlemann - soprano. CHAARTS Chamber Artists:Anna Brugger - viola. Andreas Fleck - violoncelo. Rui Lopes - fagote. Moritz Roelcke - clarinete .Lea Magdalena Knecht - harpa . Maestro - Co Merz.

   

Ave Maria, de Philippe Rombi,  por Regula Mühlemann.

   

Prendi, per me sei libero (Adina Aria) / L‘ elisir d‘amore, de Domenico Gaetano Donizetti, por Regula Mühlemann, acompanhada pela Musicians for Peace Orchestra, sob a direcção do Maestro Erwin Ortner.
Registo extraído do espectáculo Voices for Peace - Charity Gala - "Help for Ukraine", no Vienna Stadthalle.

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

O Álvaro de Campos não sabia o que era levar porrada

O Álvaro de Campos descobriu
nunca haver descoberto ninguém
que tivesse levado porrada. Viu
que, porrada, só ele e mais ninguém.
 
Com desprezo, olhou à sua volta
e só viu gente porreira e intacta.
Mas esta conversa ligeira e solta
só deixa a gente d’hoje estupefacta!
 
Renascesse e fosse ver a Ucrânia,
e veria o que é levar porrada,
da dura, como era na Germânia.
 
Porrada que deixa a gente cagada,
estropiada ou morta, só na guerra,
onde morto nem sempre se enterra!
                              21.11.2022
Eugénio Lisboa

Para pensar

"Sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância."
Sócrates
"A parte que ignoramos é muito maior que tudo quanto sabemos."
Platão
"Quando um verdadeiro génio aparece no mundo , podemos reconhecê-lo por este sinal infalível: que todos os cretinos se conluiam contra ele."
Johnathan Swift
“Entre um governo que faz o mal e o povo que o consente, há certa cumplicidade vergonhosa."
 Victor Hugo
“A multidão pensa que sabe tudo e entende tudo; e quanto mais estúpida ela é, mais amplo parece-lhe o seu horizonte.”
 Anton Tchekhov
“Quem tem dinheiro põe no bolso quem não tem.”
 Lev Tolstoi
"Aqueles que não fazem nada estão sempre dispostos a criticar os que fazem algo."
Oscar Wide
"A política tem a sua fonte na perversidade e não na grandeza do espírito humano."
"O melhor governo é aquele em que há o menor número de homens inúteis."
Voltaire
Se  calar a verdade e enterrá-la, ela ficará por lá. Mas, pode ter certeza que, um dia, ela germinará.”
Emile Zola                                                                         
"Das definições possíveis do homem, uma só é verdadeira: o homem é o animal que disputa.
Que a tirania de dez milhões se exerça sobre um indivíduo, que a de um indivíduo se exerça sobre dez milhões, é sempre tirania, é sempre uma coisa abominável ."
Alexandre Herculano
"Nas nossas democracias a ânsia da maioria dos mortais é alcançar em sete linhas o louvor do jornal. Para se conquistarem essas sete linhas benditas, os homens praticam todas as ações - mesmo as boas."      
Eça de Queirós

domingo, 20 de novembro de 2022

Ao Domingo Há Música

Estar só

Estar só
é meditar numa ausência
erguer os olhos do que, escrevendo, o constata
por uma ordem emanada não se soube donde.

Ir só reivindica. 
Sonega a caneta,
dobra o papel escrito,
e conduz docemente
a uma longa suspeição de música.
Sebastião Alba, Caliban 1

Anne-Sophie Mutter, Daniel Barenboim, Yo-Yo Ma , acompanhados pela West-Eastern Divan Orchestra, numa magnífica interpretação do Triple Concerto in C Major, Op. 56 No. 2, de Ludwig van Beethoven.

sábado, 19 de novembro de 2022

Acatar o Qatar

Acatar o Qatar
soneto feito com palavras
próprias para serem usadas
 
Aceitar a boa hospitalidade
de tiranos que pagam e impedem
que a vida dos seus tenha qualidade
e, no direito à dignidade, não cedem,
 
fingir que tudo está muito bem,
quando tudo, afinal, está mal,
é o que sempre faz a sacanagem,
seja ela de rei ou cardeal.
 
Afasta-se o pobre que incomoda
e o que morreu só pra chatear
enterra-se depressa e que se foda!
 
Importante é ver a bola entrar
e, finalmente, ver chegar a glória
à selecção que assim fique na História!
                             19.11.2022
Eugénio Lisboa

Cantar do Amigo Perfeito

Ilha de Moçambique


Passado o mar, passado o mundo, em longes praias,
de areia e ténues vagas, como esta
em que haverá de nossos passos a memória
embora soterrada pela areia nova,
e em que sobre as muralhas quanta sombra
na pedra carcomida guarda que passámos,
em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas esta, ó meu amigo?

Aqui passeámos tanta vez, por entre os corpos
da alheia juventude, impudica ou severa,
esplêndida ou sem graça, à venda ou pronta a dar-se,
ido na brisa o sol às mais sombrias curvas;
e o meu e o teu olhar guiando-se leais,
de nós um para o outro conquistando
- em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas, diz, ó meu amigo?

Também aqui relembro as ruas tenebrosas,
de vulto em vulto percorridas, lado a lado,
numa nudez sem espírito, confiança
tranquila e áspera, animal e tácita,
já menos que amizade, mas diversa
da suspeição do amor, tão cauta e delicada
- em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda as recordas, diz, ó meu amigo?

Também aqui, sorrindo em branda mágoa,
desfiámos, sem palavras castamente cruas,
não já sequer os íntimos segredos
que o próprio amor, porque ama, não confessa,
nem a vaidade humana dos sentidos, mas
subtis fraquezas vis, ingénuas e secretas
- em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas, diz, ó amigo?

Partiste e foi contigo a juventude.
Ficou o silêncio adulto, pensativo e pródigo,
e o terror de não ser minha estátua jacente
sobre o túmulo frio onde as cinzas da infância
desmentem - palpitar de traiçoeira fénix! -
que só do amor ou só da terra haja saudade.
Em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
tu sabes que a levaste, ó meu amigo?
Jorge de Sena, in 'Pedra Filosofal', Editora Assírio & Alvim

Nota de LP: À memoria de uma grande amiga que acaba de partir. A ela devo grandes memórias de tempos remotos e felizes. 
Até sempre.

Um tesouro

 
Ana Cristina Leonardo

Um tesouro:
As crónicas de Ana Cristina Leonardo
por Eugénio Lisboa
 
O humor é uma coisa muito séria.
Penso que é uma das maiores e mais
antigas riquezas nacionais que devem
ser preservadas a todo o custo.
          James Thurber
 
"A coisa mais negligente, para não dizer a mais feia, que podemos fazer, é descobrirmos um tesouro e não badalarmos logo esta descoberta a amigos e conhecidos, para que dela também possam beneficiar. É tão criminoso como descobrir o chocolate e ficar calado. Não se faz! O que é bom é para repartir.
Dei  com a Ana Cristina Leonardo, quando o meu filho João Luis me ofereceu o seu pícaro e fabuloso romance O CENTRO DO MUNDO, que desafia a imaginação do mais pintado. Depois, apareceram as suas crónicas no suplemento ´´IPSILON, do PÚBLCO, de tal modo cintilantes de inteligência, verdadeira cultura e humor sonso, fininho e manhoso (os ingleses chamam-lhe humor “sly”, que talvez se possa também traduzir por sacaninha), que achei francamente ranhosa a periodicidade com que eram publicadas. Resmunguei com os meus botões: “Se o PÚBLICO desse conta do valor destas crónicas, publicava-as semanalmente.” Acontece que o PÚBLICO ou deu conta ou ouviu o meu resmungo enviado para o éter. E passámos a ter, todas as semanas, à sexta feira, o prazer e o privilégio de ler as crónicas de Ana Cristina Leonardo, que são sérias, da maneira
mais séria e competente que há de o ser: recheadas daquele humor que os lusíadas cultivam tão pouco, com excepção de gente (pouca) com o talento de um José Sesinando.
Dos humoristas tem-se dito muita coisa, mas o mais frequente – e tem um fundo de verdade – é dizer-se que não são, em geral, uma tribo feliz. O notável crítico e ensaísta literário britânico, Cyril Connolly, autor do muito conhecido ENEMIES OF PROMISE, punha a coisa nestes termos: ” Os humoristas não são homens felizes. Como Beachcomber e Saki e Thurber, eles ardem enquanto Roma toca violino.”
Ser humorista é uma profissão de alto risco, sobretudo se exercida num milieu de gente com pouca vocação para o humor e que mais depressa  afina do que ri. É precisa uma grande arte, para gozar fininho, todo o tempo, com o parceiro, e sair incólume desse exercício. Era isso mesmo que avisava George Bernard Shaw, quando dizia: “Mark Twain e eu estamos muito na mesma posição. Temos de pôr as coisas de tal maneira, que levem as pessoas que, normalmente, nos teriam enforcado, a acharem que estamos só a brincar.”
Ana Cristina Leonardo exercita-se, da maneira mais culta e atrevida, nesta arte de ensinar, divertindo-nos com o seu finíssimo senso de humor e pisando galhardamente a fronteira do risco. E quem não gosta de arriscar-se é melhor não se meter nestas andanças. Se, como sugere Connolly, ela também pertence à tribo dos infelizes, não sei, porque não tenho o privilégio de a conhecer pessoalmente. Mas sempre direi que, quando leio o seu discurso recheado de ensinamentos e humor sacaninha, prefiro pensar que talvez ela desminta o aforismo do autor de ENEMIES OF PROMISE."
Eugénio Lisboa, 18.11.2022 

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Celebrar Marcel Proust

Marcel Proust (10 de Julho de 1871-18 de Novembro de 1922)

Hoje, dia 18 de Novembro de 2022, completam-se   100 anos  do falecimento de  Marcel Proust.
Sobre este grande vulto das Letras francesas, nascido em  Neuilly-Auteuil-Passy,  em 1871, André Maurois, no seu livro "De Proust a Camus",  diz-nos o seguinte: "Acredito que ficariam espantados , os escritores que viviam em 1900, se lhes dissessem  que um dos maiores dentre eles, aquele que iria renovar a arte do romance e fazer entrar para o terreno da literatura as ideias dos filósofos e o vocabulário  dos sábios desse período, seria um jovem sempre doente, ignorado pelo público , pela maior parte dos literatos e considerado pelos que o conheceram , como homem mundano, talvez inteligente , mas incapaz  de uma grande obra. Erro que foi duradouro, resistindo mesmo à publicação de  Em Busca do Tempo Perdido, erro  análogo ao de Sainte-Beuve sobre Balzac ,  e que prova como deveriam ser enormes a prudência e a modéstia dos críticos.
 (...)Marcel Proust era filho do professor  Adrien Proust, médico em saúde pública bastante conhecido ; a sua mãe , judia, chamava-se Jeanne Weil; parece ter sido terna, delicada , instruída, e representou sempre para o seu filho Marcel, a própria imagem da perfeição. Dela, aprendeu ele " o horror à mentira, o escrúpulo e sobretudo  a bondade infinita.
(...)A esse horror  das pessoas que não prezavam  " as doçuras do afecto", ele permaneceu fiel a vida inteira.  O medo de causar mágoa restou nele como um instinto dominante.
(...)Gentil... A palavra representava papel importante no seu vocabulário e nas  suas acções.  (...)De onde viria essa gentileza? Em parte, de um temor de desagradar, de um desejo de conquistar e de guardar as afeições de que um ser fraco e doentio tem necessidade ,mas também  duma imaginação sensível e precisa que lhe permitiu  representar com uma dolorosa exactidão os sofrimentos e os desejos alheios.
(...) Em 1903, o pai morreu; em 1905 , a mãe . Teria tido algum remorso em relação a ela, visto que tivera tanta confiança nele e jamais vira o resultado de seu esforço, ou foi somente a doença que o obrigou a retirar-se por completo do mundo desde entâo? Ou ainda doença e remorso não foram mais que pretexto invocados pela necessidade inconsciente de escrever uma obra que nele estava quase feita? Difícil dizer ."

E, sobre Marcel Proust e o prémio Goncourt que lhe foi atribuído,  reeditamos este  belíssimo texto de Eugénio Lisboa, o nosso mais clarividente crítico literário. 
Um Prémio Salvífico
por Eugénio Lisboa
“Os prémios literários são, com uma frequência assustadora, controversos. Mesmo os prémios mais prestigiosos – Nobel, Goncourt, Pulitzer – não fogem, muitas vezes, a mostrar preferências, no mínimo, discutíveis. De aí, o cepticismo de tantos escritores em relação a prémios literários. As razões por que eles são atribuídos mas, também, as razões por que não são atribuídos raiam, com frequência, o bizarro, para não dizer: o cómico. Bastaria, para se chegar a esta conclusão, vasculhar os arquivos, por exemplo, do Prémio Nobel e verificar as razões de atribuição  ou de não atribuição do galardão, ou, nalguns casos, a demora de anos, o arrastar de pés, até que, finalmente, embora com alguma relutância, o júri se digne conceder a renitente honraria. Os casos de André Gide e de Anatole France, entre outros, permitiriam, a este respeito, reflexões interessantes.
Talvez, por isto mesmo, os prémios, apesar do tumulto que ainda se levanta à volta deles, se tenham, ao longo do tempo, desacreditado. Ao ponto de um escritor como Jean Cocteau ter afirmado que um verdadeiro escritor tem a obrigação não só de não aceitar qualquer prémio, mas, até, de não o merecer.
Mas hoje venho aqui falar de um prémio atribuído não só com corajosa justiça, mas até, segundo a percepção do galardoado, com efeito salvífico: refiro-me ao Prémio Goncourt atribuído, em 1919, ao romance de Marcel Proust – À l’ombre des jeunes filles en fleur – publicado nesse mesmo ano.
É de todos mais ou menos conhecida a dificuldade que Marcel Proust sentiu em afirmar, aos olhos de editores e leitores, a sua obra-prima – À la recherche du temps perdu – que começou a publicar em 1913. Gide torcera o nariz ao primeiro volume do livro – Du côté de chez Swan – desencorajando Gallimard de o publicar: em grande parte, por preconceito em relação ao personagem mundano e superficial que via em Proust e talvez também por uma alegada falta de coragem deste relativamente a um homossexualismo não abertamente assumido (coragem que o próprio Gide tivera, ao publicar, contra a expressa opinião dos amigos mais chegados, o seu controverso Corydon).
O manuscrito deste primeiro volume do que viria a ser um longuíssimo “folhetim psicológico” – como Régio gostava de lhe chamar – teve má recepção de editores. O livro não era, à primeira vista, atraente: a estrutura do romance desviava-se completamente do romance bem construído do século XIX, com uma história contada com princípio, meio e fim. Era um manuscrito compacto, estranho, com períodos intermináveis, sem intervalos para respirar, quase sem diálogos ou com diálogos raros e não separadamente visíveis, antes “afundados” na massa espessa e densa do texto. O editor Fasquelle, contactado, achou por bem rejeitar liminarmente o manuscrito. Ferido e humilhado, Proust estava disposto a uma rendição completa: pagar do seu bolso as despesas da edição e fazer o editor, dono da chancela, partilhar os lucros, se os houvesse. Tinha de publicar aquilo em que apostava a sua vida e a sua imortalidade. Proust sabia que era esta, finalmente, a grande obra que trazia dentro de si, na qual estava a pôr tudo quanto  de melhor tinha para dar.Tudo o que publicara antes era, por assim dizer, irrelevante e secundário. Esta era o grande investimento da sua vida: que lhe traria a glória, se conseguisse fazer  que reparassem no livro. Mas tinha, em primeiro lugar, de o fazer publicar. Depois, tudo teria de congeminar para o impor.
O seu amigo fiel e dedicado, Louis de Robert, opôs-se firmemente à ideia de Proust pagar os custos e partilhar, mesmo assim, os lucros com o editor. Fez-lhe ver que isso traria um indesejado descrédito para si e para a obra. Mas lembrou-se de que tinha boas relações com um personagem – Humblot – que dirigia a livraria e editora Ollendorff. Contactado, Humblot prometeu ler o livro rapidamente e pronunciar-se sobre a viabilidade da sua edição. E assim o fez. A sua carta de rejeição pertence hoje à história da literatura, pelas más razões: “Caro amigo, sou talvez um burro chapado, mas não consigo compreender que um narrador possa empregar trinta páginas a descrever como se vira e revira na cama  antes de conseguir adormecer.” Mais do que uma nota de rejeição, era uma ofensa. Robert pediu-lhe que redigisse, caridosamente, uma segunda carta mais convencional e suave, que pudesse mostrar ao autor e amigo. E assim se fez, embora Proust, astuto e desconfiado não mordesse a isca.
Depois destes dois fracassos, o autor de Swan resolveu não perder mais tempo (tempo era o que menos tinha, com a asma a matá-lo lentamente) e propôs ao editor Bernard Grasset fazer publicar o livro com a chancela da casa, mas com as despesas por sua conta. Foi assim que o livro se viu finalmente publicado.
A recepção não foi brilhante, embora a obra não tenha passado completamente despercebida. Gide leria o livro já com outros olhos e faria “amende honorable”, E Gallimard passaria, a partir do segundo volume, a ser o editor de À la recherche du temps perdu.
Entretanto, meteu-se de permeio a guerra e, durante os quatro anos que ela durou, não foi possível pensar em editar a sequela de Swan. Mas, em 1918, terminada o conflito, fez-se a composição e impressão de À l’ombre des jeunes filles en fleur, que seria posto à venda em 1919.
O livro começava a impor-se, um pouco mais rapidamente que Swan, mas Proust não estava satisfeito. Tinha perfeita consciência da estranheza do seu escrito, da dificuldade de acesso que mesmo o leitor da maior boa vontade deveria sentir, diante de uma obra tão diferente, tão densa, tão interminavelmente longa e de diálogo raro e obscuramente encalhado naquela massa de texto. Tinha de arranjar maneira de fazer consagrar, de modo espectacular o seu livro. Tinha de salvá-lo de um oblívio quase certo. Precisava de angariar uma garantia de qualidade que captasse, para sempre, leitores. Pensou então no Prémio Goncourt e comunicou a Louis de Robert a sua intenção de se candidatar. Era um acto de alguma ousadia, tanto mais que as dificuldades eram enormes. Havia, para esse ano de 1918, pelo menos outro candidato de peso: Roland Dorgelès, que acabara de publicar um excelente romance de guerra, baseado na sua própria experiência de combatente nas trincheiras. Proust, devido à doença que o consumia – a asma – não fora combatente, o que era, para o caso, uma clara desvantagem. Por essa altura os do Prémio Goncourt tendiam a favorecer, desde que tivesse um mínimo de qualidade literária, uma obra sobre a guerra, cujo autor tivesse sido combatente. Obras desta natureza eram vistas como um esforço sério no sentido de se fomentar um desejável horror à guerra e, se possível, evitar que se repetisse a carnificina. Ora a obra de Dorgelès – Les Croix de Bois – satisfazia plenamente este não explícito mas existente caderno de encargos. Além do mais, Proust era tido como rico, isto é, não necessitado. Ser rico e não ter sido combatente, além de o seu livro nada ter que ver com a guerra – parece que tudo estava contra ele. Mas tratava-se, para o escritor, de um caso de vida ou de morte e por isso não hesitou, pedindo aos amigos chegados  que fizessem “lobby” cerrado junto de alguns membros do júri, sobretudo de Léon Daudet, que admirava Marcel. O “trabalho” foi tão bem feito, que Proust viria a vencer, angariando 6 dos dez votos . Houve, é claro, forte reacção da parte dos adeptos de Dorgelès. Inclusivamente, o romance deste foi posto à venda, com uma cinta de papel, dizendo em letras de grande formato: Prémio Goncourt. E, só depois, em letras minúsculas: 4 votos em 10. Quem olhasse de longe ficava a supor que Les Croix de Bois ganhara o Goncourt. O efeito do Prémio foi sensacional. Proust recebeu perto de 900 cartas e as reimpressões do livro sucederam-se. Os artigos de peso começaram a surgir. A sua glória consolidava-se e, quando morreu, três anos mais tarde, não lhe restavam dúvidas de que conseguira salvar a sua obra, captando, para sempre, a atenção dos leitores. O Goncourt não foi o único instrumento dessa consagração definitiva. Mas ajudou, de uma maneira decisiva, a que um grande livro se instalasse, mais rapidamente, no imaginário das pessoas. Sem ele, talvez Proust tivesse morrido, em 1922, sem ter a certeza de ter salvo do esquecimento a sua Recherche."
Eugénio Lisboa, em artigo  publicado no JL nº 1236, de 14 a 27 de Fevereiro de 2018

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Depois da chuva


Continuamos com Miguel Torga. Aliás, sempre continuaremos. Hoje são apenas alguns sábios excertos , retirados da sua monumental obra diarística. 

"O mundo com vários abcessos prestes a rebentar. Ainda há pouco exultávamos de esperança, e já ninguém tem paz na alma. É que não há mais tempo de duração. Todas as nossas horas são ofegantes , e cadentes as estrelas anunciadas e anunciadoras. Temos tudo, e falta-nos o essencial. É como se de repente a vida ficasse do avesso e a não soubéssemos vestir."
Miguel Torga, in" Diário XVI", Círculo de Leitores.


" Há uma coisa que eu nunca poderei perdoar aos políticos: é deixarem sistematicamente sem argumentos a minha esperança ." 
Miguel Torga, in " Diário XIV" , Círculo de Leitores.
 
Comunicado

Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem que ninguém lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.
Coimbra, 18 de Abril de 1968
Miguel Torga, in “Diário IX”, Circulo de Leitores,

Depois da chuva

Abre a janela, e olha!
Tudo o que vires é teu.
A seiva que lutou em cada folha,
E a fé que teve medo e se perdeu.

Abre a janela, e colhe!
É o que quiser a tua mão atenta:
Água barrenta,
Água que molhe,
Água que mate a sede...

Abre a janela, quanto mais não seja
Para que haja um sorriso na parede!
                Coimbra, 8 de Março de 1949
Miguel Torga, in "Diário I-IV", Circulo de Leitores.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Miguel Torga

Miguel Torga (1907-2005)

Neste espaço , Miguel Torga tem sido uma assídua presença. Contista , romancista, poeta , diarista, ensaísta  foi prolífero numa obra que se mantém actual. Dele, guardo o fascínio que me tomou ao descobri-lo na voz do meu pai. Mais tarde, a  sua produção literária  marcou-me  de tal modo que, enquanto estudante universitária, tinha como objectivo acabar o curso com uma tese sobre Miguel Torga.  Nunca deixou de me surpreender, de me tocar pela beleza da sua escrita. Recordá-lo, através das notas biográficas de quem o conheceu, é o prazer deste dia 16  de Novembro de 2022.

Miguel Torga  (1907-2005)
por Maria Luisa Paiva Boleo
"Conheci Miguel Torga em Coimbra. Encontrava-o muitas vezes no eléctrico carreira nº 3, quando ambos regressávamos dos nossos respectivos trabalhos, nos anos 70, rumo à parte alta da cidade.
Médico que sempre foi a par de escritor, terminava as consultas no seu consultório no Largo da Portagem, 45 e eu já apanhara o mesmo eléctrico duas paragens antes, na Av. Fernão de Magalhães onde trabalhava então, na Federação dos Grémios da Lavoura da Província da Beira Litoral, num prédio emblemático, todo forrado a azulejos amarelos, que felizmente ainda não sofreu a voragem das demolições, mesmo junto à estação dos caminhos-de-ferro, mais conhecida em Coimbra por Estação Nova.
O meu pai, Manuel de Paiva Boléo, foi professor da Universidade de Coimbra na Faculdade de Letras e, desde sempre, na minha família se falou de Miguel Torga, também porque a mulher do escritor, Andrée Crabbé Rocha também professora de Letras cruzava-se com o meu pai na faculdade. Uma irmã minha, amiga do Leandro Morais Sarmento morava ao lado de Miguel Torga e passavam lá muitos fins de tarde a conversar. Lembro-me da minha irmã comentar que lhe parecia Miguel Torga ter uma grande angústia perante a morte, o que é patente no seu «Diário».
A admiração e o conhecimento da obra de Miguel Torga eram partilhados na minha família, onde a minha mãe nos recitava «Herodes» “o tal das tranças” lá na Judeia que foi para o Inferno “só porque não gostava de crianças” e outros textos.
Como é sabido Miguel Torga não era uma pessoa muito dada, mas eu várias vezes meti conversa com ele, até porque  temas não faltavam dado vivermos na mesma cidade. Mais de uma vez fiquei ao seu lado no tal eléctrico, e, se muitas pessoas o conheciam, muitas mais naquela carreira ignoravam quem era aquele senhor, de faces magras, como que esculpidas em rocha, com um tom de pele escura e um olhar penetrante. Com o tempo muitas mais sabiam que ele era um escritor de repercussão mundial e uma das glórias de Coimbra, embora ali não tenha nascido.
Mais tarde, nos anos 90, conheci em Lisboa uma japonesa que foi professora de literatura portuguesa numa universidade de Tóquio e que traduziu vários textos de Miguel Torga para japonês. Chama-se Takiko Okamura e é muito conhecida no meio literário português, porque já foi bolseira do Instituto Camões e penso que da Gulbenkian e que, além de Torga, já traduziu José Cardoso Pires e «Os Lusíadas» para japonês e publicou há escassos anos (2003, salvo erro) uma bem documentada biografia de Wenceslau de Morais, em japonês. A professora Takiko admirava muito Miguel Torga com quem esteve na sua terra natal mais de uma vez e com quem tirou fotografias, que me mostrou.
A religiosidade de Torga que perpassa pela sua obra é tão autêntica, percebe-se que foi forjada na vida dura que levou em criança, na relação próxima entre o céu e a terra. Mais tarde, no Brasil em casa do tal tio que o obrigava a trabalhos duros, a imensidão da natureza e quantas vezes não se terá interrogado sobre o que afinal fazemos neste mundo e um Deus que nem sempre nos parece magnânimo, perante tanta rudeza que nos rodeia, nas relações humanas e da paisagem agreste.
Adolfo Correia Rocha, nasceu a 12 de Agosto (dia de Santa Clara) de 1907 em S. Martinho de Anta, numa pequena aldeia de Trás-os-Montes, distrito de Vila Real. Filho de camponeses pobres, o pequeno Adolfo foi sempre muito chegado à mãe por quem nutria uma enorme afeição, como ele próprio diria em «A Criação do Mundo». Eram três irmãos. Em 1913 Adolfo Rocha terminou a escola primária com o Sr. Botelho, a quem Miguel Torga dirá que deveu muito da sua formação.
«Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição»
Miguel Torga, pseudónimo que escolheu por duas razões: Miguel por ser o nome próprio de dois mestres da língua castelhana como Cervantes (1547-1616) e Unamuno (1864-1936) grandes escritores também preocupados com a alma humana. E Torga de «torgas» urzes que florescem nas terras transmontanas, cor de vinho, com profundas raízes bem metidas nas rochas. Que melhor nome poderia ter escolhido? Não é ele também uma rocha, até no nome?
Adolfo terminou a 4ª classe com distinção e o pai percebeu que devia continuar a estudar, o que era raro na época nos meios rurais. Escapou assim à vida no campo e à enxada, que trocaria pela caneta. O pai ofereceu-lhe um cavaquinho quando terminou a 4ª classe e por não ter posses para o poder mandar estudar disse-lhe: «tens de escolher ou o Seminário ou o Brasil»
Adolfo Rocha esteve um ano no Seminário de Lamego, mas aos 13 anos (em 1920) optou pelo Brasil tendo ido para casa de um tio – fazenda de Santa Cruz, no Estado de Minas Gerais. Ali a vida do futuro escritor não foi fácil: mungir as vacas, cujo leite era o alimento da casa, tratar dos porcos, ir ao moinho, ir a cavalo buscar o correio longe da fazenda, fazer a escrita e tudo o mais que fosse preciso. Foram dias de inferno para o jovem Adolfo, não tanto pelo trabalho, mas porque os tios lhe não dedicavam grande afecto, e ele que adorava a mãe, sentia fortemente a sua ausência.
Em 1925, como recompensa pelo trabalho de cinco anos o tio anuncia-lhe que lhe paga os estudos num colégio em Coimbra. Fez em três anos o liceu que era de sete.
Em 1928 entrou para o curso de medicina. Escreveu o primeiro livro de versos «Ansiedade» e em 1929 dá-se com o grupo da revista «Presença», onde pontoavam José Régio, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões, mas cedo o individualismo de Torga o afasta do grupo.
É a altura em que o jovem estudante de medicina e literato lê os grandes nomes da literatura mundial: Gide, Dostoievski, Ibsen, Proust, Jorge Amado, Cecília Meireles, etc. Em 1930 publica «Rampa». «Tributo» e «Pão Ázimo» em 1931.
Em 1932, começou a publicar o que seriam dezasseis volumes do «Diário».
Acaba a licenciatura em 1933 e passa a exercer a sua especialidade de clínica geral, na sua terra natal e em Vila Nova de Miranda do Corvo, mas cedo se radica em Coimbra.
Em 1934 usa pela primeira vez o pseudónimo que o imortalizaria – Miguel Torga, em «A Terceira Voz».
Escreve, em 11 de Dez de 1934, o poema «Prece»:
«Senhor deito-me na cama/Coberto de sofrimento;/ E a todo o comprimento/Sou sete palmos de lama:/Sete palmos de excremento/Da terra-mãe que me chama./Senhor, ergo-me do fim/Desta minha condição:/Onde era assim, digo não,/Onde era não, digo sim;/Mas não calo a voz do chão/Que grita dentro de mim./Senhor acaba comigo/Antes do dia marcado;/O tiro de um inimigo.../Qualquer pretexto tirado/Dos sarcasmos que te digo.»
Em 1937 escreve «A Criação do Mundo» iniciando uma autobiografia ficcionada. Viaja pela Europa: França, Itália, Bélgica, Espanha e por Portugal e colabora na Revista de Portugal dirigida pelo escritor Vitorino Nemésio. Escreve «Peregrinação»:
 «Corro o mundo à procura dum poema/Que perdi não sei quando, nem sei onde./Chamo por ele, e a voz que me responde/Tem o timbre da minha, desbotado./Às vezes no mar largo ou no deserto/Parece-me que sim, que o sinto perto/Da inspiração;/Mas sigo afoito em cada direcção/E é o vazio passado/Acrescentado.../Areia movediça ou solidão./Teimoso lutador, não desanimo/Olho o monte mais alto e subo ao cimo,/ A ver se ao pé do céu sou mais feliz./Mas aí nem sequer ouço o que digo;/O silêncio de Orfeu vem ter comigo/E nega os versos que afinal não fiz.»
Adolfo Rocha/Miguel Torga chegou a ter, em 1939, um consultório em Leiria, mas passava os fins-de-semana em Coimbra, com professores e intelectuais como Paulo Quintela e Vitorino Nemésio, em casa de quem conheceu a futura mulher – Andrée Crabbé, de apelido, por casamento, Rocha.
Um texto de Miguel Torga sobre a guerra civil espanhola levou-o à prisão, onde esteve três meses. Casou em 27 de Julho de 1940.
Em 1941, abriu consultório de médico em Coimbra, no Largo da Portagem, com vista sobre o Mondego – a «sua» janela para o mundo.
Escreve os célebres contos «Montanha» (mais tarde com o título «Contos da Montanha» apreendido pela Censura. Começa a escrever o seu célebre «Diário».
Miguel Torga fez edições de autor, porque se recusava a entregar os textos previamente à Censura, como era obrigatório na época e porque, dizem os que o conheceram de perto que era extremamente económico.
O seu romance «O Senhor Ventura» data de 1943, mais tarde será transposto para o cinema e foi um dos primeiros a ser traduzido para o chinês, há poucos anos. Penso que também foi traduzido pela Takiko Okamura, de que falei, para japonês.
 A sua vida literária decorre com regulares edições. A mulher completa o doutoramento em 1947. A filha nasceu em 1955.
Em 1954 recusou um prémio literário atribuído por ocasião das comemorações do Centenário de Almeida Garrett.
Em 1960 o prof. Jean-Baptiste Aquarone (da Faculdade de Letras de Universidade de Montpelier) propõe Miguel Torga para prémio Nobel da Literatura. O escritor recebe em 1969 o Prémio Literário Diário de Notícias.
Com o 25 de Abril de 1974 escreveu no Diário XII:
«Golpe Militar. Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que durante macerados cinquenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e asseguraram com as baionetas o poder à Tirania. Quem poderá esquecê-lo. Mas pronto de qualquer maneira é um passo. Oxalá não seja duradoiramente de parada...»
Em 1976, foi-lhe atribuído o Grande Prémio Internacional de Poesia da XII Bienal de Knokke-Heist (Bélgica). Dois anos depois foi de novo proposto para prémio Nobel. Em 1978 a Fundação Calouste Gulbenkian prestou-lhe homenagem nos 50 anos de carreira literária. Em 1980 recebeu o Prémio Morgado de Mateus, ex-equo com o escritor brasileiro Carlos Drummond de Andrade.
A 10 de Junho de 1989 o júri do Prémio Camões dá-lhe esse prestigiado galardão e, em Janeiro de 1991, a revista «Le Cheval de Troie» dedica-lhe um número especial. É mais uma vez nomeado para o Nobel da Literatura pela Associação Portuguesa de Escritores.
Em 1993 publica o 16º vol. de «Diário». O último onde escreve o poema «Requiem por mim»
A 17 de Janeiro de 1995, às 12,33 minutos deixa este mundo.
Fiquemos com estas suas palavras:
«Ser livre é um imperativo que não passa pela definição de nenhum estatuto. Não é um dote, é um dom».

terça-feira, 15 de novembro de 2022

A rendição da palavra

A palavra pode só o que pode,
por mais que ensaie ir mais além:
diante de um mundo que explode,
sabe que é só impotente refém.
 
O apocalipse está bem perto
e já se lobrigam os seus cavalos:
são esbeltos bichos em céu aberto,
anunciando tremendos abalos!
 
Para os travar, temos a palavra,
mínimo guerreiro, que mal nos resta:
cheia de horror, com coragem, lavra
 
terreno que a peste já infesta.
Heroica, fala e diz em voz alta
que é a vaga final que nos assalta.
                             15.11.2022
Eugénio Lisboa

bright lights to guide me

Bright, bright lights, bright lights to guide me 
Bright, bright lights, bright lights to guide me home 
Bright, bright lights, bright lights to guide me 
Bright, bright lights, bright lights to guide me home


HAEVN, em   Bright Lights, de Upclose Concert.
Director: Robin Piree & Kevin Kimman. Director of Photography: Kevin Kimman .Visuals: Hessel Stuut. Show Light Design: Michiel Knoop. Gaffer: Marc Roodhart. Light assistent: Bob Rooijen. Monitor engineer: Remco van der Giessen
   
HAEVN , em  Throw Me a Line (Upclose Concert).
 

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Teodiceia do gato


Teodiceia do gato
 
                      À Ísis, ao Lindo e à Lua
 
O gato criou deus à sua imagem,
mas deu-lhe poderes orientados
no sentido de meter, na bagagem
do gato, mimos bem condimentados.
 
Perante o gato, deus é bem mandado,
porque o gato, com o seu belo porte,
mantém deus muito bem disciplinado,
se quer que lhe corra bem a sorte!
 
O gato manda e deus obedece:
assim roda o mundo em grande harmonia.
Ao gato, não aquece nem arrefece
 
saber pra que lado deus assobia:
o gato come, ao pequeno almoço,
os deuses que vai tirando do bolso!
                                      14.11.2022
Eugénio Lisboa 

Silêncio ruidoso

Certos silêncios fazem mais ruído
do que o ribombar de trovoadas:
não são construídos de sons banidos,
antes cheios de dores recalcadas.
 
São silêncios que falam sem falar
e só querem dizer o que não dizem.
Há nesses silêncios um deflagrar
de anúncios e suspeitas que maldizem
 
um viver que ao não falar conduz.
São silêncios que ferem como espadas
ou como escuridão que desse luz.
 
São como salas de espera ensaiadas
de um calar profundo e definitivo,
que habite não um morto mas um vivo.
                                  14.11.2022
Eugénio Lisboa