quinta-feira, 30 de abril de 2020

Sobre uma perda que sofri

Neste tempo de peste, Eugénio Lisboa oferece-nos novos poemas. Um comovente soneto que traduz o talento e a arte deste grande poeta.
SOBRE UMA PERDA QUE SOFRI
(Lembrando, vagamente, um soneto de Camões)

Alma minha gentil que me deixaste
sozinho, neste mundo tão agreste,
ontem, tão doce, porque nele andaste,
hoje, tão árido, porque te perdeste!

Aqueles dias em que tu vivias
lembro com saudade que me tortura:
tanto me davas quanto prometias,
ao meu canto dando tanta doçura!

Hoje, sem ti, já não me quero vivo,
que a lembrança de ti, alma tão pura,
faz de mim, p’ra sempre, amargo cativo.

Vivo sem viver como antes vivia,
usando, mentindo, um porte altivo,
que ilude o sofrer que antes não sofria.
                                              29.04.2020
Eugénio Lisboa,
em momento em que a solidão agudiza a saudade, mesmo que a amizade e solidariedade dos bons amigos de algum modo a mitiguem.  

terça-feira, 28 de abril de 2020

Vozes de África



Ma na prisâo d'nha liberdade sem bô
Cu nha razâo magoado sem gosto
Na nha alma um vazio
Dum tristeza profundo
'M conchê um verdade dess mundo
C'ma vida tem um sô vida

Cesaria Evora, (27/08/1941 - 17/12-2011), a voz maior  de Cabo Verde,  em "Vida Tem Um Só Vida", do Álbum  "Miss Perfumado", gravado em Paris, com produção, guitarra acústica, cavaquinho, piano, harmónica e percussão de Paulino Vieira. Participam Toy Vieira, Escabês e Malaquias Costa.
Licenciado ao YouTube por The Orchard Music, SME (em nome de Lusafrica); SODRAC, LatinAutor - SonyATV, BMI - Broadcast Music Inc., CMRRA, LatinAutor, UNIAO BRASILEIRA DE EDITORAS DE MUSICA - UBEM, Sony ATV Publishing e 9 sociedades de direitos musicais.
Salif Keita & Cesaria Evora  em  Yamore, canção da autoria de  Salif Keita, artista do Mali. 
Licenciado ao YouTube por UMG (em nome de Universal Music Division Decca Records France); SODRAC, União Brasileira de Compositores, LatinAutor, BMI - Broadcast Music Inc., EMI Music Publishing, UMPI, LatinAutor - SonyATV e 15 sociedades de direitos musicais.
Elida Almeida, de Cabo Verde, em Nta Konsigui.

xeio de altus e baixos
xeio de pontos e frakasus
xeio de perdas e vitorias

mesmo assim mi nka ta dezuspera
não não não, não não não
pamodi n sabi ma nta supera
no kim kre mi nta insisti
quem kim kre mi nta persisti
n ka ta desisti
pamodi n sabi ma nta consigui
n sabi ma nta consigui
n sabi ma nta consigui
n sabi ma nta consigui
Miriam Makeba, em Xica Da Silva. A grande voz da África do Sul que conquistou o mundo  e lutou pelo seu país, durante décadas, no exílio. 
Khadja Nin do Burundi,  em Free - Sina Mali, Sina Deni.
Licenciado ao YouTube por SME (em nome de Sony Music Entertainment); SOLAR Music Rights Management, UMPI, UNIAO BRASILEIRA DE EDITORAS DE MUSICA - UBEM, CMRRA, LatinAutor, LatinAutor - SonyATV, EMI Music Publishing e 5 sociedades de direitos musicais.

I'm free kama maji
Ana tempaka mpaka kati ya pori

Kama hewa, kama macho kama nyota, kama maji
Kama mimi leo, mimi napona

I'm free, I'm free
Kama mimi leo, mimi napona
Waldemar Bastos, o grande cantor de Angola, em velha Chica.
Mas a velha Chica,
Embrulhada nos pensamentos
Ela sabia, mas não dizia
A razão daquele sofrimento
A razão daquele sofrimento

Xê menino, xê menino não fala política,
Não fala política, não fala política
Xê menino não fala política

Zena Bacar  (Lumbo, 25 de Agosto de 1949 — Maputo, 24 de Dezembro de 2017) , cantora moçambicana,  em Kihiene.
Angélique Kidjo do Benin, em Africa, no Concerto da entrega do Prémio Nobel, em 2011.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

FERNANDO PESSOA SOZINHO NO CHIADO

Um novo poema de Eugénio Lisboa , em tempo de peste, que nos dá honroso prazer publicar.
Estátua de Fernando Pessoa, no Chiado, Lisboa
Estátua de Fernando Pessoa, no Chiado, Lisboa


FERNANDO PESSOA
SOZINHO NO CHIADO

Estrangeiro sempre me conheci,
estranho entre os homens que acho estranhos,
mal roçando um amor que demiti,
e acalentando sonhos tamanhos;
paranóico, bizarro e ausente,
homem sem corpo e de alma pouca,
alcoólico de génio, demente,
pedinte e vadio de ambição louca,
assexuado bicho desgraçado,
sorrindo em itálico reprimido,
em vez da vida, o verso bem limado,
em vez da posse, o abraço bem fingido,
- assim grande e ausente me puseram,
plantado em pedra aqui no Chiado.
Palhaço de turistas me fizeram,
só, entre papalvos, alapardado!
E aqui fui moendo o meu tédio,
cercado de gente, mas solitário,
vivendo a eternidade sem remédio,
neste horrível mundo oco e arbitrário!
Entre só mas rodeado de gente
e só sem que ninguém me atormente,
confesso que ficarei mais contente,
neste mundo sem gente de repente!
                                               27.04.2020
Eugénio Lisboa,
que pede escusa ao grande escritor por lhe pôr na boca estas palavras álgidas e lúcidas (“Merda, sou lúcido!”, não era mais ou menos isto que dizia o seu histérico heterónimo, Álvaro de Campos?).

Alteridade

"Emmanuel Lévinas é um dos mais importantes autores de referência na reflexão moral contemporânea. Lévinas mistura a tradição grega e a judaica. Uma das suas ideias básicas é a da alteridade, isto é colocar o outro no lugar do ser. Nesta visão, inverte as propostas da Lei de Ouro e do Imperativo Categórico. Ao invés do indivíduo agir frente ao outro como gostaria de ser tratado e que isto deveria ser uma norma universal, é a descoberta do outro que impõe a conduta adequada. De acordo com Christiam Descamps (1), "a relação com o Outro é a base de uma co-presença ética". Cada um é constantemente confrontado com um próximo. "Não sou Eu frente ao Próximo (Outro), mas sim os Outros continuamente frente a Mim."

"... tudo começa pelo direito do outro e por sua obrigação infinita a este respeito. O humano está acima das forças humanas."

Esta proposta rompe com a perspectiva autonomista e individual para remetê-la a uma visão de rede social. Deixa de ter sentido a máxima "A minha liberdade termina quando começa a dos outros", sendo substituída pela proposta de que a minha liberdade é garantida pela liberdade dos outros. 
Ricardo Timm de Souza escreveu que "a responsabilidade pelo outro  significa responsabilidade por si mesmo, enquanto negação da neutralidade". 
José Roberto Goldim, in " Bioética" UFRGS

 Notas
(1) Descamps C. "As ideias filosóficas contemporâneas em França", São Paulo: Jorge Zahar, 1991:85.

domingo, 26 de abril de 2020

Ao Domingo Há Música

Museu do Vaticano
"Talvez (...) se apurássemos o ouvido , ouvíssemos , no meio da balbúrdia dos impérios e das nações , como um fraco ruído de asas, a doce agitação da vida e da esperança. Dirão uns que esta esperança é trazida por um povo, outros por um homem. Eu creio que é , pelo contrário, suscitada, reanimada, sustentada por milhões de solitários cujas acções e obras, em todos os dias , negam as fronteiras e as mais grosseiras aparências da história, para fazer resplandecer fugitivamente a verdade sempre ameaçada que cada um, por sobre os seus sofrimentos e alegrias, constrói por todos."
                                      Albert Camus, "Discursos da Suécia "

Neste domingo, o apontamento musical é o espelho do que vai acontecendo pelo mundo . Vozes que se separaram, mas que se reagrupam  de longe e em uníssono, com um objectivo comum. Perante  uma peste que  mata e enferma,  ficamos confinados aos muros da nossa casa. Para que os seus tentáculos não nos tolham, há que enfrentar a vida. Médicos, enfermeiros  e todos aqueles que salvam e cuidam da vida permanecem nos hospitais afrontando-os. Outros tantos laboram para que possamos sobreviver .
As vozes que se apresentam saúdam todos esses grupos que labutam por nós e para nós.
O primeiro registo foi extraído do concerto "One World: Together At Home ",  promovido por Lady Gaga,  a 18 de Abril deste ano.
Céline Dion, Andrea Bocelli, Lady Gaga, Lang Lang, John Legend interpretam   "The Prayer" 

Os maestros Franco Dattola e Antonio Condello resolveram  envolver alunos e ex-alunos da Accademia Musicale di Canto Moderno de Reggio Calabria,(Italia),  agrupando-os num  grande coro virtual.
A proposta seria a interpretação da canção "Itália", escrita por Umberto Balsamo e interpretada pelo cantor calabrês Mino Reitano, no 38º Festival Sanremo, em 1988, que lhe deu o sexto lugar  .  Ao longo dos anos , a canção  tornou-se um hino para todos os emigrantes italianos no exterior.
A música foi reorganizada pelo Maestro Condello e cada coralista,  gravou,  em casa, a sua contribuição  enviando-a  através do telemóvel  para o  Maestro Dattola que fez a respectiva montagem.
Um coro constituído por  58 elementos, com solos de  17 vozes , sendo todos estudantes que estão longe da sua terra, Reggio Calabria. Bilbau, Londres, Nova York, Maurício e, em seguida, Milão, Turim, Bolonha, Florença, Roma, cada qual em sua própria casa, distante, mas unidos pela música e pelo seu país. A canção foi dedicada   a todos os médicos, enfermeiros e pessoal de saúde que trabalham actualmente em todos os hospitais, de norte a sul, e  aos  italianos  que vivem no exterior.

E, em ADIEMUS,  de Karl Jenkins,  um diferente registo, apuremos o ouvido para ouvir a doce agitação da vida que recuperaremos um dia. Uma fresca interpretação pelas belas e jovens vozes de  Karina Meekes & Kimberley Olijslager, acompanhadas por  Laurie Paul &Rudin Ponds e outros.
Audio recording:Pim Heutink. Audio editing, mixing & mastering:Simone Ewouds & Frits Maters.Video recording: ZSOM Omroep Groenlo.

sábado, 25 de abril de 2020

Liberdade


Liberdade

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Mar novo", Editorial Caminho


O Coro Gulbenkian, em confinamento, em  casa, canta Liberdade, poema de Sophia de Mello Breyner.
Os trinta e seis coralistas do Coro Gulbenkian juntaram-se virtualmente para cantar este  poema musicado por Miguel Jesus, um dos baixos do Coro Gulbenkian.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

A prodigiosa descoberta da leitura

IV – A longa estrada
 “ Não há talvez dia da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aquele que julgámos passar sem tê-lo vivido, aqueles que passámos com um livro preferido.”
   Marcel Proust, O prazer da leitura,  Ed. Teorema   

“ Pero aquello que vemos com los ojos de la memoria no es idéntico a aquello que vivimos: la vida es irrecuperable”
     Octavio Paz, Los pasos contados, Vaso Roto

Nesse ano iniciático da minha longa aprendizagem, as aulas começaram em Outubro. Tinha acabado de fazer seis anos, em Agosto. As férias tinham terminado há poucos dias. A minha Mãe preparara a minha entrada para a Escola Primária.
Era uma Escola branca , igual a tantas outras deste nosso Portugal. Escolas que tinham sido edificadas  segundo um projecto nacional  preparado pelo Estado. A traça era a mesma de Norte a Sul. Aquele parque escolar tinha duas construções com as mesmas dimensões.  Estavam ambas viradas para a estrada  e resguardadas por muros da mesma cor branca . A entrada fazia-se por um portão de ferro forjado, com alguns arabescos burilados, e de uma renitente cor preta.
A minha escola era aquela que ficava do lado direito de quem entrava. A minha irmã mais velha estudava noutra sala. Tinha dois anos de avanço sobre mim. Frequentava a 3ª classe.
Nesse dia, acordei muito cedo, sem que alguém me tivesse chamado. Foi o meu pai que nos levou à  Escola num Citroën , que se designava por  Citroën Arrastadeira. Era um carro grande e comprido,  onde cabíamos todos.
O meu coração batia forte. Tinha o livro da Primeira Classe e um caderno com linhas. Era uma preciosidade que levava comigo. Além disso, estreara  uma bata branquinha e um laçarote na cabeça a condizer. Tudo era novo .
A sala tinha quatro filas de carteiras. Cada uma era ocupada por dois alunos. Fiquei na  fila junto à parede , do lado oposto da porta e na terceira carteira. A meu lado, sentou-se uma menina que não conhecia. Era mais alta  do que eu. Loira e muito simpática. Quase igual à menina de caracóis loiros que compunha a capa do livro da 1ª classe. Tal como ela, tinha também um grande laçarote azul a prender-lhe os cabelos.  Estava tão à vontade que pensei que ela já  conhecia a escola. Afinal era tão caloira quanto eu. Tinha, isso sim, um grande poder de descontracção perante tudo o que não conhecia. Fui descobrindo essa peculiaridade ao longo do tempo. Chamava-se  Maria Rosa. Foi sempre a minha colega de carteira, enquanto estudei naquela escola, ou seja, até acabar a terceira classe. Iniciámos nesse dia uma grande cumplicidade que nos manteve ligadas e amigas durante esses anos.  ( Há tanta gente que se perde , que fica para trás sem que nada possamos fazer. A Maria Rosa desapareceu da minha vida quando mudei de escola e de local de residência. Como ela tantos outros bons amigos que  preencheram a minha infância  e juventude  de momentos de grande generosidade, alegria e aventura. Um tempo que nunca mais se repetiu: o tempo da descoberta.)
A minha professora era a D. Isaura. Uma senhora doce e afável que nos saudou com uma voz que soava a música. Gostei dela desde que nos deu as boas vindas. Disse-o clara e assertivamente. Soube, nesse momento, que  estava em terra firme e amiga. Tudo seria agradável com aquela professora. E se  aprender a ler e a escrever era a primeira prioridade da escola, assim o pensava eu, seria, pois, uma tarefa que realizaria com gosto. Aliás, já o fazia nos livros que me liam. Apontava as frases como se as soubesse ler. Ficavam-me nos ouvidos de tanto as escutar e  de tanto gostar de histórias. Os livros eram já um dos meus objectos de culto. Tratava-os com carinho . Afagava-os com imenso cuidado. Nunca estraguei um livro. Enamorei-me deles logo que me leram a primeira história.  E havia muitos livros em nossa casa. Em “ Memória de Livros”, João Ubaldo Ribeiro refere uma situação muito similar:

Nada, porém, era como os livros .(…) A maior casa onde morámos ,mais ou menos a partir da época em que aprendi a ler, tinha uma sala reservada para a biblioteca e gabinete de meu pai,mas os livros não cabiam nela — na verdade,mal cabiam na casa.(…) A circulação entre os livros era livre (tinha que ser, pensando bem, porque eles estavam pela casa toda, inclusive na cozinha e no banheiro), de maneira que eu convivia com eles todas as horas do dia,a ponto de passar tempos enormes com um deles aberto no colo, fingindo que estava lendo e,na verdade,se não me trai a vã memória, de certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu inventava as histórias que elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de que entendia nelas o que inventara.

Nesse tempo, as escolas não tinham livros. As bibliotecas escolares não existiam como agora, em 2017. No entanto, lia-se com prazer , folheando e sentindo o objecto precioso que é o livro.
Nesse primeiro dia, descobri que aprender seria um dos meus grandes assombros. Senti que ir à escola era quase tão bom como brincar. E não me senti intimidada por ficar sem os meus pais num lugar novo e desconhecido. A Escola  era uma espécie de casa aberta às crianças , onde todos vinham aprender. Nessa  altura , ainda não tinha a percepção das assimetrias sociais que existiam.
Para mim , a  descoberta da escola foi um acontecimento maravilhoso. Havia tantos meninos e meninas de bata branca a chegar naquele primeiro dia, que não me senti diferente de qualquer um deles. A Escola era o lugar  para onde iam as crianças a partir dos seis anos. Era lá que se iniciava o longo caminho da aprendizagem para qualquer um deles. Era esta a percepção que eu tinha nos meus poucos anos de vida : aprender a ler e a escrever eram os primeiros passos de uma grande e jamais acabada  descoberta. E foram realmente. Esses primeiros anos marcar-me-iam para sempre. (...)"
Maria José Vieira de Sousa, in "O livro que já escrevi", Maio de 2018pp.107-113

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Poesia em tempo de peste - Soneto inédito de Eugénio Lisboa

AMOR VIRTUAL –II
VARIAÇÕES SOBRE UM SONETO CAMONEANO 

Amor é fogo que arde só ao longe
É ferida que dói e que se sente.
É um contentamento só de monge
É promessa doce que logo mente!

É um querer igual a não querer
É um comer que come sem comer
É um contentar-se em não colher
É um cuidar que se ganha sem arder!

É querer não estar preso e solitário
É sonhar que é sonhando que se tem
É só saber aguentar o fadário

Na esperança de o vírus acabar
É amar com as regras ao contrário
É cuidar que se frui sem se roçar!
                                           22.04.2020

Eugénio Lisboa,
pedindo desculpa ao grande Vate, por se apropriar de um seu soneto justamente célebre, para fins medicinais, muito necessários neste momento de grande solidão.

Celebrar o planeta Terra

"Não há um só homem que não seja um descobridor . Começa por descobrir  o amargo, o salgado, o côncavo, o liso, o áspero, as sete cores do arco-íris e as vinte e tal letras do alfabeto, passa pelos rostos , os mapas , os animais e os astros; conclui pela dúvida ou pela fé e pela certeza quase total da sua própria ignorância."
Jorge Luís Borges, in "Atlas", Quetzal Editores, 2018
                                                 

Descobrir a importância do que nos rodeia e de todo este nosso velho planeta é um exercício que todos nós fizemos e devemos fazer. Nestes dias de grande confinamento mundial, a Terra  surgiu reforçada como o lugar comum cuja sobrevivência depende de  uma acção conjunta e harmoniosa. A poluição que grassava por algumas regiões do mundo diminuiu superlativamente. O mundo enclausurou-se devido a uma pandemia. E deixou de agredir a  Terra. A terra regenerou-se. Muito do que se havia perdido, daquilo que o homem havia enfermado renasceu . O ar mostrou-se mais puro,  o azul saudou os céus, os rios e os mares  brindaram aos tempos primevos.   
É preciso reaprender a viver.  Começar  a olhar o planeta de um outro modo se o queremos como nosso. E tal como Carl Sagan afirmou - Gostemos ou não, por enquanto, a Terra é o único lugar onde podemos viver (...) .
O dia mundial da Terra foi criado pelo senador norte-americano Gaylord Nelson, a 22 de Abril de 1970 . É actualmente celebrado em mais de 190 países. 

Vangelis, em Pinta, Nina, Santa Maria (Into Eternity), Beautifull Planet.
Licenciado ao YouTube por WMG; EMI Music Publishing, BMI - Broadcast Music Inc., UNIAO BRASILEIRA DE EDITORAS DE MUSICA - UBEM, LatinAutor - SonyATV, LatinAutor, União Brasileira de Compositores e 15 sociedades de direitos musicais.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Poesia inédita em tempo de peste

PENTASSÍLABOS PARA UMA
VÉNUS DE MILO ABANDONADA

No Louvre deserto
a Vénus de Milo,
peito descoberto,
bonito mamilo,
não tendo a vê-la
ninguém como antes,
pensou: “Minha estrela
não é como dantes.
Antes, devoravam-me,
de olhos abertos,
e recomendavam-me
aos amigos certos.
Turbas assanhadas
com a minha nudez
expunham, pasmadas,
feroz cupidez!
Assim visitada
num belo museu,
fiquei viciada:
o mundo era meu!
Mas a peste veio
e tudo roubou:
que mundo feio
aquele em que estou!
Só, abandonada,
pior, desprezada,
ninguém a sorrir-me,
- o melhor é vestir-me!”
                            20.04.2020
Eugénio Lisboa,
Lamentando, polissilabicamente, os efeitos da peste no abandono e na morte de um mundo  onde a beleza e a nudez eram devidamente apreciadas e até veneradas.

O tempo é agora

O tempo é agora
por Serge Halimi
"Quando esta tragédia passar, será que tudo vai recomeçar como antes? Há trinta anos que cada crise alimentou a esperança insensata de um regresso à razão, de uma tomada de consciência, de uma paragem. Acreditámos no confinamento, depois na inversão de uma dinâmica sociopolítica cujos impasses e ameaças teriam sido finalmente ponderados por todos [1]. A debandada bolsista de 1987 iria conter a escalada das privatizações; as crises financeiras de 1997 e de 2007-2008 iriam fazer vacilar a globalização feliz. Não foi isso que aconteceu.
Os atentados de 11 de Setembro de 2001 suscitaram, por sua vez, reflexões críticas sobre a húbris norte-americana e interrogações contristadas deste tipo: «Por que é que eles nos detestam?»… Isto também não durou. É que o movimento das ideias, mesmo quando caminha no bom sentido, nunca é suficiente para parar o funcionamento das máquinas infernais. É sempre preciso quem ponha mãos à obra. Nessa altura, mais vale não depender das mãos dos governantes responsáveis pela catástrofe, mesmo que estes pirómanos saibam dar um ar da sua graça, alertar para o incêndio, fingir que mudaram. Sobretudo quando a vida deles – tal como a nossa – está em perigo.
A maior parte de nós não viveu directamente uma guerra, um golpe de Estado militar, um recolher obrigatório. Ora, no fim de Março, perto de três mil milhões de habitantes estavam já confinados, muitas vezes em condições penosas; a maior parte deles não eram escritores a observar a camélia em flor em redor da sua casa de campo. Aconteça o que acontecer nas próximas semanas, a crise do coronavírus terá constituído a primeira angústia planetária das nossas existências: não é coisa que se esqueça. Os responsáveis políticos estão obrigados a ter isso em conta, pelo menos parcialmente (ler nesta edição o artigo de Renaud Lambert e Pierre Rimbert).
A União Europeia acaba então de anunciar a «suspensão geral» das suas regras orçamentais; o presidente francês Emmanuel Macron adia uma reforma das pensões que teria penalizado os profissionais de saúde; o Congresso dos Estados Unidos envia um cheque de 1200 dólares à maior parte dos americanos. Porém, já há mais de dez anos os liberais aceitaram, para salvar o seu sistema em perigo, um aumento espectacular do endividamento, um relançamento orçamental, a nacionalização dos bancos, o restabelecimento parcial do controlo dos capitais. A seguir, a austeridade permitiu-lhes recuperar o que haviam dado largas para fazer num salve-se quem puder geral. Permitiu-lhes até concretizar alguns «avanços»: os trabalhadores trabalhariam mais, durante mais tempo, em maiores condições de precariedade; os «investidores» e os rentistas pagariam menos impostos. Os gregos pagaram o mais pesado tributo desta viragem quando os seus hospitais públicos, em situação de emergência financeira, observaram o regresso de doenças que acreditávamos desaparecidas.
Assim, o que à partida permite acreditar numa estrada de Damasco poderá transformar-se numa «estratégia de choque». Já em 2001, a seguir ao atentado contra o World Trade Center, a conselheira de um ministro britânico enviara esta mensagem a altos funcionários do seu ministério: «É uma óptima altura para recuperar e aprovar discretamente todas as medidas que temos de tomar». A conselheira não pensava necessariamente nas restrições contínuas que seriam feitas às liberdades públicas sob o pretexto do combate contra o terrorismo, e menos ainda na Guerra do Iraque e nos desastres inumeráveis que esta decisão anglo-americana iria provocar. Mas, uns vinte anos mais tarde, não é preciso ser poeta nem profeta para imaginar a «estratégia de choque» que está a ser desenhada.
Como corolário do «Fiquem em casa» e do «distanciamento», todas as nossas formas de sociabilidade correm o risco de ser perturbadas pela digitalização acelerada das nossas sociedades. A emergência sanitária tornará ainda mais premente, ou totalmente ultrapassada, a questão de saber se ainda é possível viver sem a Internet [2]. Todos têm já de possuir consigo documentos de identidade; em breve ter um telemóvel não será apenas útil, mas exigido para fins de controlo. E, uma vez que as moedas e as notas constituem uma fonte potencial de contaminação, os cartões bancários, transformados em garantia de saúde pública, vão permitir que cada compra seja repertoriada, registada, arquivada. «Crédito social» à chinesa ou «capitalismo de vigilância», o recuo histórico do direito inalienável de não deixar vestígio da própria passagem quando não se transgride nenhuma lei instala-se nas nossas mentes e nas nossas vidas sem suscitar outra reacção que não uma sideração imatura. Antes do coronavírus já se tornara impossível apanhar um comboio sem enunciar o seu estado civil; já não se podia usar uma conta bancária online sem dar a conhecer o seu número do telemóvel; já não se podia passear garantindo que não se era filmado. Com a crise sanitária foi dado um novo passo. Em Paris, aviões teleguiados vigiam as zonas de acesso interdito; na Coreia do Sul, sensores alertam as autoridades quando a temperatura de um habitante representa um perigo para a colectividade; na Polónia, os habitantes têm de escolher entre a instalação de uma aplicação de verificação do confinamento nos seus telemóveis e visitas inesperadas da polícia a sua casa [3]. Em tempos de catástrofe, tais dispositivos de vigilância são aprovados pela maioria. Mas sobrevivem sempre às urgências que levaram à sua aplicação.
As mudanças económicas que estão a desenhar-se consolidam, também elas, um universo em que as liberdades se restringem. Para evitar qualquer contaminação, milhões de estabelecimentos comerciais do sector alimentar, cafés, cinemas, livrarias encerraram em todo o mundo. Não dispõem de serviços de entrega ao domicílio e não têm possibilidade de vender conteúdos virtuais. Passada a crise, quantos deles sobreviverão e em que estado? Em contrapartida, os negócios serão mais sorridentes para gigantes da distribuição como a Amazon, que se prepara para criar centenas de milhares de empregos de motorista e de gerente de manutenção, ou a Walmart, que anuncia o recrutamento suplementar de 150 mil «associados». Ora, quem melhor do que eles conhecem os nossos gostos e escolhas? Neste sentido, a crise do coronavírus poderá constituir um ensaio geral que prefigura a dissolução dos últimos focos de resistência ao capitalismo digital e ao advento de uma sociedade sem contacto [4].
A menos que… A menos que vozes, gestos, partidos, povos, Estados venham perturbar este guião antecipadamente escrito. Ouve-se muitas vezes dizer que «não tenho nada a ver com a política». Até ao dia em que todos compreendem que são escolhas políticas que obrigaram médicos a fazer uma triagem entre os doentes que vão tentar salvar e os que são forçados a sacrificar. É esta a situação a que chegamos. Isto é ainda mais verdade nos países da Europa Central, dos Balcãs ou de África, que há anos vêm o seu pessoal de saúde emigrar para regiões menos ameaçadas ou empregos mais bem pagos. Também neste caso, não são escolhas ditadas pelas leis da natureza. Sem dúvida que hoje percebemos isto melhor. O confinamento é também um momento em que cada um pára e reflecte…
Com a preocupação de agir. O tempo é agora. Porque, contrariamente ao que sugeriu o presidente francês, já não está em causa «questionar o modelo de desenvolvimento pelo qual o nosso mundo enveredou». Já sabemos a resposta: é preciso mudá-lo. O tempo é agora. E já que «delegar a nossa protecção a outros é uma loucura», então deixemos de nos sujeitar a dependências estratégicas para preservar um «mercado livre e não falseado». Macron anunciou «decisões de ruptura». Mas jamais adoptará as que se impõem. Não apenas a suspensão provisória, mas a denúncia definitiva dos tratados europeus e dos acordos de comércio livre que sacrificaram as soberanias nacionais e erigiram a concorrência em valor absoluto. O tempo é agora.
Doravante, todos sabemos o que custa confiar a cadeias de abastecimento espalhadas pelo mundo fora, e que operam sem stocks, a responsabilidade de fornecer a um país em perigo milhões de máscaras sanitárias e produtos farmacêuticos de que dependem a vida dos seus doentes, dos seus profissionais de saúde, dos seus distribuidores de mercadorias ao domicílio, dos seus empregados de caixa. Todos sabemos também o que custa ao planeta ter suportado desflorestações, deslocalizações, a acumulação de resíduos, a mobilidade permanente – Paris acolhe por ano trinta e oito milhões de turistas, ou seja, mais de dezassete vezes o número dos seus habitantes, e a autarquia congratula-se com isso…
Doravante, o proteccionismo, a ecologia, a justiça social e a saúde estão ligados. Eles são os elementos fundamentais de uma coligação política anticapitalista suficientemente e poderosa para impor, e o tempo é agora, um programa de ruptura."
                                    quarta-feira 8 de Abril de 2020
Serge Halimi, em Editorial de "Le Monde Diplomatique - Edição  portuguesa", Abril de 2020

Notas

[1] Ler «Le naufrage des dogmes libéraux», Le Monde diplomatique, Outubro de 1998, e Frédéric Lordon, «O dia em que Wall Street se tornou socialista», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Outubro de 2008.
[2] Ler Julien Brygo, «Ainda podemos viver sem a Internet?», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Agosto de 2019.
[3] Cf. Samuel Kahn, «Les Polonais en quarantaine doivent se prendre en selfie pour prouver qu’ils sont chez eux», Le Figaro, Paris, 24 de Março de 2020.
[4] Cf. Craig Timberg, Drew Harwell, Laura Reiley e Abha Bhattarai, «The new coronavirus economy: A gigantic experiment reshaping how we work and live», The Washington Post, 22 de Março de 2020. Ler também Eric Klinenberg, «O Facebook contra os lugares públicos», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Abril de 2019.

domingo, 19 de abril de 2020

Ao Domingo Há Música

Cabeças grisalhas anónimas
George Steiner e Doris Lessing
( cabeças grisalhas famosas  da Literatura)
                     

                              O sábio é aquele que com tudo se espanta.
                                              André Gide, " Les Nourritures terrestres"
 
Sei que não sei se a vida ainda tem tempo para que não esqueça tudo o que aprendi. Sei que não sei se alguém se lembrará de tudo o que a vida lhe deu. Dos momentos grandiosos que lhe foram oferecidos por vozes  que não têm idade. Essas nunca serão apagadas, discriminadas , obliteradas. São intemporais. Saibam ou não saibam , queiram ou  determinem  os senhores que  governam o nosso mundo Não há quem possa proibir o outro pelo critério da idade, por ter vivido muito ou pouco. Por estar vivo. A vida é uma passagem . O ser humano nasce do pó e a ele retorna. A todos o mesmo fim após um igual início. Reter entre muros quem já viveu muito é lançá-lo ao degredo  ;  é condenar o mundo à tristeza de uma vida curta. Um objectivo estreito e ignóbil.  Um crime de dimensão infinda. 
Todos os registos que vamos ouvir não teriam ocorrido se  a vida se medisse apenas pela sua duração. Todas estas vozes trazem o sabor mágico do tempo. O fascínio, a beleza , o talento , a sabedoria são nelas a marca de uma longa vida que as tornou insubstituíveis, seres únicos .

A bela voz de Miriam Makeba , (Mama Africa), em The Retreat Song , no Graceland Concert, promovido por Paul Simon, na África do Sul. 
Licenciado ao YouTube por BMI - Broadcast Music Inc., Warner Chappell e  sociedades de direitos musicais.

 A voz magnífica de Etta James acompanhada por  The Roots Band , em  I'd Rather Go Blind, 2001.

A incomparável voz de Ray Charles com  The Voices Of Jubilation, em Oh, Happy days.