segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Amazónia


Amazónia

Antes da pátria, eras úmida promessa...
semente primordial
árvore mãe
planta continental
arvoredo, floresta, selva palpitante.
Hoje canto tua estatura vertical
o mogno gigantesco, seu colossal diâmetro
canto essa caudalosa geografia
essa multidão de vidas que sustentas
canto o itinerário sazonal da seiva
e  essa infinita linfa...
parto de infinitas criaturas.
Canto teu verde planetário
e no teu imenso respirar,
canto o nosso pão de oxigênio...
Canto a ti... Amazônia
bosque inquietante da esperança...
e  eis porque denuncio esse machado cruel sobre  teu peito...
essa fruta milenar, dia a dia devorada.


Antes da grande nação...já eras tu...
a nação primogênita
filha dos filhos da mata.
A infância da pátria foste tu,
sílaba aborígine, idioma tupi
cerâmica, canoa e tacape
ritual, dança e canção.
Foste tu a raiz,  sangue ameríndio
o parto da nacionalidade.

Hoje canto os povos da floresta
e o desencanto dessa memória esquecida.
Falo de sobreviventes
de tribos desgarradas
de aldeias tristes
de sonhos desmatados
de segredos e tradições pirateadas
das águas lavadas na bateia do mercúrio.



Amazônia....Amazônia...
quem deterá o teu martírio
uma vida tão diversa num  adverso viver...
Falo dos teus hectares de sangue
da lâmina cruel, da pira ardente
dessa cartilha de serras, rifles e archotes
dessa morte plural
na diversidade de aves e primatas
roedores, felinos e serpentes.
Falo de uma terra de cepos
de raízes degoladas
de caules retalhados
de castanheiras preservadas... a morrer de solidão.
Falo da linha negra do fogo
e desse cemitério de troncos defumados.



Falo da floresta sitiada
por uma legião de máquinas assassinas
falo de estradas e picadas clandestinas
de súbitas clareiras
desse assalto interminável... lento e invisível.
Falo de grileiros, posseiros, garimpeiros, bandoleiros
e de terras demarcadas sob a mira das pistolas.
Falo de dragas e crateras
das águas manchadas e dos rios estropiados.
Falo da vida degradada pelas pastagens da ambição.


Amazônia...Amazônia...
com que verde vestiremos nosso mapa
acuados pelo apetite voraz das motosserras,
por uma fronteira incinerante que avança insaciável.
Acuados pelo gatilho mercenário da violência
e pelo estigma oficial da impunidade.

Passo a passo e esse avizinhar-se do colapso...
quantos fóruns se abrirão para “resolver” essa tragédia!?
Crimes silenciados na cumplicidade regional dos gabinetes...
gritos sem eco nas vozes da omissão...
acenos sem resposta nos protocolos renegados...
e o poder dos maiorais contra tudo o que respira.
..............................................................................................

Deixaste ali teu heróico testemunho
teu seringal sagrado
teu rosto  solidário.
Contigo... caiu o tronco ensangüentado...
Tua alma...teu nome...Chico Mendes,
sobrevivem  em deslumbrante  hiléia,
na invisível bandeira das espécies
e na memória da pátria agradecida.

Depois chegaste tu...Dorothy  Stang
estrangeira, franzina e destemida
desafiando víboras e chacais
e defendendo a floresta com a paz do nazareno.
Em  Anapu  ergueram teu calvário
mas  hoje  ergo aqui,  no jardim humilde da poesia,
a tua estátua de missionária imperecível.

....................................................................................................
Amazônia... Amazônia...
quantos ainda cairão para que sobrevivas?
com que vozes cantaremos a esperança
enlutados pela ausência dos que ousaram manter suas denúncias?

quem te fará justiça?
quem suspenderá esse cerco que te aperta lentamente?
como conter teu holocausto
e a agonia silenciosa das espécies?


E eis porque canto o desencanto da árvore secular que tomba
e essa sinistra paisagem de troncos decepados...
E falo da imensa copa baqueada...
seus frutos, seus aromas
remédios e resinas,
seus colares e adereços...
Falo de samambaias e orquídeas
de cipós e de bromélias agonizantes.
De garras, patas e plumagens...
de berços destroçados, de ninhos mortos
e dessa maternidade em lágrimas.

Falo do patrimônio ambiental da pátria
da grilagem descarada
de negociatas e falsos documentos.
Falo da destruição diária e sorrateira
de pastagens criminosas
de uma ingrata agricultura
e da natureza usada e abandonada.
Falo de uma terra arrasada
e de um deserto verde que cresce...dia a dia.

Eis tu...e eu te chamo legião...
o mundo te observa e nos pergunta: por quê???
e todos nos perguntamos: até quando???
os que irão nascer perguntarão quem foste tu e por que tanto desamor...
os céus vigiam teus passos,
rastreiam teus crimes
e a tua sombra imensa que avança para o norte...
Sabem de ti o rei e os seus vassalos...
conhecem teus látegos de aço
tua tocha incendiária
teus cúmplices, tuas vítimas
tuas mãos manchadas com o sangue da floresta...
Somos os que te acusamos
nessas sementes queimando
nessas pétalas feridas
nesses pássaros sem ninho...
somos os que assistimos, impotentes, esse indigesto banquete,
tua dieta vegetariana
e a euforia com que brindas o lucro e o bom negócio
nessa taça transbordante de cinzas, de sangue e de lágrimas... 


Amazônia... Amazônia... sem lei, sem testemunhas...
e essa  oficial improvidência...
Nada que te ampare...
nada...
Talvez um vento reverso
uma chuva perene que apague essa queimada.
Talvez um decreto impossível
uma lei implacável
a mão de Deus, quem sabe...
a espada da justiça pra sangrar os que te sangram...
algo que feche essa ferida
algo que estanque essa agonia.
Quem sabe, o refluxo imperdoável do teu próprio martírio...
uma malária cruel...
algo que empeste essa ganância...
antes... bem antes
que essa segunda geração de abutres choque também os seus filhotes.

                                                              Curitiba, Abril de 2006
Manoel de Andrade , in " Cantares ", Editora Escrituras, São Paulo, 2007, pp. 97-102

Manoel de Andrade
O poeta é um visionário . Vê para além de qualquer um  e regista o seu olhar  em palavras que cantam , sorriem ou choram. Talvez , por isso,  alguém tivesse ousado  dizer que seriam  os melhores legisladores do mundo.
Manoel de Andrade, poeta brasileiro, escreveu este longo e belo poema em 2006. Um poema que canta e chora uma Amazónia que deixou de sorrir às mãos de quem a sufoca, a mutila e incendeia. 
A ganância foi sempre o motor que gerou o crime. A hecatombe que dizima  esta enorme e magnifica floresta brasileira é ,actualmente, a dor  que está exposta aos olhos e coração de todos nós. 
Manoel de Andrade sentiu-a  e fê-la nossa, através deste comovente poema. 

domingo, 25 de agosto de 2019

Ao Domingo Há Música

Claustro do Convento de Santa Maria Novella, Florença
Jardins de Salzburgo
“ […] Acontece-me, por vezes, ao voltar de uma dessas curtas tréguas que nos deixa a luta comum, pensar em todos os recantos da Europa que conheço bem. É uma terra magnífica, feita de sacrifícios e de história. Revejo as peregrinações que fiz com todos os homens do Ocidente. As rosas nos claustros de Florença, as tulipas douradas de Cracóvia, o Hradschin com os seus paços mortos, as estátuas contorcidas da ponte Karl sobre Ultava, os delicados jardins de Salzburgo. Todas essas flores, essas pedras, essas colinas e essas paisagens onde o tempo dos homens e o tempo da natureza confundiram velhas árvores e monumentos! A minha memória fundiu essas imagens sobrepostas para delas formar um rosto único: o da minha pátria maior."
Albert Camus, in Cartas a um Amigo Alemão, Carta Terceira (Abril de 1944), Livros do Brasil, Lisboa
Praga, República Checa
Catedral de Milão, Itália
Uma Europa  que não pode  esquecer a beleza paisagística e a riqueza cultural como património distintivo de um humanismo  que se singularizou no  bem acolher a quem a visita e procura.
Li e ouvi, há alguns meses,  por causa do trágico incêndio de Notre Dame, que somos todos Paris. É tempo de reassumir que somos ,por excelência e por devir , todos Europeus.  Numa época de Brexit(s), de fundamentalismos  segregacionistas , de rejeição do outro que vem acossado pela servidão ,  pelo medo, compete a todos e a cada um fazer emergir a alma do acolhimento, da compaixão, da tolerância , da Liberdade - a alma europeia. 
E  porque é tempo de uma trégua mais prolongada de Livres Pensantes, deixamos, em jeito de um " Até sempre", algumas peças musicais de grandes compositores europeus, que se tornaram icónicas.
Assim é a Europa , pátria maior, que nos permite  apresentar génios   da Alemanha, da República Checa, da Áustria  e  de Itália.
Que nos una, nos comprometa e nos deleite.

De Ludwig  van Beethoven,Fantasia in C Minor, Op. 80, "Choral Fantasy": I. Adagio por Martha Argerich, sob a direcção do Maestro Seiji Ozawa e a Mito Chamber Orchestra.
Licenciado ao YouTube por WMG; UMPG Publishing e uma sociedade de direitos musicais.

Gautier Capuçon, em Song to the moon  de  Antonín Dvořák, em "Rusalka", no  Concerto de Paris , a  14 de  Julho de 2019 , na Tour Eiffel, com  Alain Altinoglu e a Orchestre National de France.
Filmado por  François Goethgebeur para a France2 TV / Stéphane Bern / ElectronLibreProduction
Khatia Buniatishvili interpreta Franz Schubert, em Impromptu No. 3 in G-Flat Major, Op. 90, D. 899.
Wolfgang  Amadeus  Mozart pela virtuosa Mitsuko Uchida  , em  Piano  Concerto K. 271, acompanhada pela Mozarteum Orchestra, regida pelo Maestro Jeffrey Tate, na Opéra de Berlim.

The Three Tenors,  José Carreras, Plácido Domingo e Luciano Pavarotti, em Brindisi ("Libiamo ne' lieti calici")-La Traviata, de Giuseppe Verdi, num Concerto de  1994.

sábado, 24 de agosto de 2019

Memórias de Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa tem 89 anos. É a voz maior da critica literária e um dos mais singulares escritores portugueses. Construiu uma obra volumosa que se estende em vários géneros: Ensaio, Crónica, Diário , Memórias  , Poesia . Todos são expoentes de um apurado sentido artístico. 
Dotado de uma inteligência viva e de uma cultura invulgar soube  tecer cada obra com o rigor , a clareza e a sabedoria que caracterizam as obras primas.  
Vário, intérprido e fecundo são esses os epítetos que fazem o título de um livro que, publicado em 2011, é uma homenagem a Eugénio Lisboa, promovida pelos colegas da Universidade de Aveiro  e inúmeros amigos. Foi com essa fecundidade que publicou,  entre 2012  e 2017 , sete volumes de Memórias: "Acta Est Fabula". Um magnum opus que  não cessamos de reler. 
Revisitámos o IV volume , no momento em que Eugénio Lisboa faz uma pausa para questionar a valia desta obra. 

"Faço um intervalo, para me questionar sobre o valor futuro deste livro que agora escrevo. Tem-me dado muito trabalho – de memória, que tento activar, de pesquisa, de selecção, de redacção (e de dactilografia!) – mas constantemente me pergunto: “Para quê? Para quem? Para durar quanto tempo nas memórias em que pouse?” Não são perguntas retóricas ou “coquettes”, são profundamente sentidas. Olho à minha volta e vejo uma ordem de gente que não lê ou, pelo menos, não lê o que eu leio, não tem sensibilidade cultural nem inteligência afinada pela cultura (por “esta” cultura). Vendem-se a granel, nos supermercados, trambolhos ultrajantes, obscenamente anunciados em grandes parangonas, como os “grandes” do momento… A poesia, da Sophia para trás, não existe, e o romance do Eça parece de fazer dormir em pé gente que devora as inépcias literárias dos senhores do petit écran. A grandeza reside toda no “ser muito visto”. Aparecer ou não aparecer na televisão, eis a questão. Entre o José Rodrigues dos Santos e o Alexandre Quintanilha, a escolha é fácil. Grandes figuras da nossa cultura humanista e científica são desprezadas, ou esquecidas ou simplesmente ignoradas. Reportagens feitas na rua para se avaliar o grau de conhecimentos culturais, até de estudantes universitários, dão resultados de nos tirar o sono. Que gente é esta? Que escolas, que pais, que cidadãos são estes? Olho para as listas de classificação de filmes feitas pelos ”especialistas” de jornais de referência e eriçam-se-me os cabelos. Que valores privilegia esta gente? O que os comove? O que os move? Que gente é esta ou, antes, que ando eu a fazer, no meio desta gente? Que mundo se desenha para depois de mim? É a esse mundo que vou legar estas memórias de coisas, estas lições de coisas, estas emoções, ideias, encontros – que me tocaram? Mas tocará isto mais alguém? haverá, dentro de pouco tempo, alguma coisa de comum entre “os meus amores” e aquilo que, para “eles”, é importante? Paul Valéry previa que algumas das obras-primas da literatura dita clássica só conseguiriam, no futuro, ser entendidas, atafulhando de “notas explicativas” o fundo das páginas: por exemplo, uma emoção simples, como o sentimento de fraternidade entre soldados em combate, teria de ser “explicada”, numa época futura de “guerra de premir botões a distância”, em que se não vê nem o rosto do inimigo nem o do camarada que está do seu lado. Presumo que aquilo que deu alegria à minha vida – a descoberta dos livros de papel, do amor casto enquanto se não torna menos casto, o calor da casa materna, a saudade dos bons momentos de uma praia, mesmo sem dinheiro para um bolo, o gozo de um bom almoço de família, ao domingo, mesmo numa casa sem frigorífico, nem telefone, nem telefonia, sem recursos para se ir ao outro cinema da terra – tudo isto será, num futuro próximo ou mesmo já no presente, difícil de partilhar com o leitor, de “explicar”, mesmo com abundantes notas de pé de página… Dizia Baudelaire que tinha memórias que chegavam para mil anos. Eu também! Mas qual a valia delas? O criador de Peter Pan dizia que Deus nos deu memória para podermos ter rosas em Dezembro. 
Seja então isso: as minhas memórias servir-me-ão, a mim, para ter rosas no Dezembro da minha vida. Já não é pouco. Mas fica a pergunta: e que ganham os outros com as rosas que só eu conheço? "
Eugénio Lisboa, in"Acta est fabula, Memórias -IV- Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo. Londres. (1976-1995)",Editora Opera Omnia,  Outubro de 2014, pp. 195-197

Nota de Livres Pensantes 
Por termos a certeza da resposta , podemos afirmar que também  nós leitores ganharemos  essas rosas , frescas e brilhantes,  sempre que mergulharmos na leitura destas Memórias. 
Bem haja, Eugénio Lisboa.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Nápoles



Nada nos prepara para Nápoles
Por Bruno Ramos
"Nápoles agarra-nos pelas entranhas e cola-se a todos os sentidos com tremenda ferocidade. A meio de Agosto, o calor e a humidade acentuam esse abraço visceral da cidade, que faz cair sobre nós uma realidade sem concessões feita de ruas intrincadas, uma expressividade física que grita em todas as esquinas, um ritmo frenético que nos arremessa numa vertigem para logo nos amparar com a sua integridade e maneira muito própria de ser. É um organismo vivo que pulsa continuamente.Vamos já dizer as coisas como são: Nápoles não é o protótipo da cidade turística de postal. É feia, suja a roçar o infecto, esconsa, labiríntica e escura. Está também longe, muito longe, de encabeçar a lista de destinos facilmente visitáveis: é complicada, caótica, bruta e disfuncional. E no entanto transpira uma verdade de que todos, sem excepção, parecem comungar. Estende-nos uma genuína bondade do cimo da sua altivez só alcançável àqueles que nada escondem sobre o que são e para o que ali estão. Por debaixo do sarro assoma uma elegância e nobreza antigas. No meio das suas ruas de portas abertas acolhe-nos uma beleza despudorada.
Esta também não é a clássica reportagem que informa sobre os melhores hotéis, restaurantes e bares da cidade para turistas ready-made. Foi uma viagem de orçamento controlado, por isso alugámos um pequeno apartamento e poupámos nas refeições fora. Ao contrário de constituir uma lacuna, tanto para umas férias de Verão como para um artigo de viagens, acabou por ser o que nos abriu as portas de Nápoles e do seu dia-a-dia. Percebemos isso logo no primeiro momento: saímos de manhã para abastecer a casa de mantimentos e já o calor e a humidade abafavam a cidade, o clamor do trânsito zumbia por todos os lados e a fauna napolitana vociferava a plenos pulmões.
Em Nápoles, há nichos de santos por todo o lado

Devemos ter parecido perdidos e confusos com aquele primeiro impacto. De tal maneira que um senhor dos seus cinquenta e tal anos deu por nós e, com aquele jeito italiano de falar com gestos, que no caso dos napolitanos veste uma ginga de permanente desafio, adoptou-nos com esta simples frase: “Ma, cosa stai cercando? [O que estão à procura]?” Tomaso di Borbone, assim se apresentou (mais tarde viemos a encontrá-lo novamente e explicou-nos a origem do seu nome, que se mistura com a história da cidade) e assim também nos entregou o cartão de visita dos napolitanos: curiosos, disponíveis, orgulhosos e, principalmente, sociáveis. “I napoletani hanno un grande cuore! [Os napolitanos têm um grande coração!]”, rematou ele este primeiro encontro, batendo no lado esquerdo do peito com indisfarçável orgulho.
Feios, porcos e bons
Logo ali, além de ficarmos a saber onde comprar a melhor fruta e o peixe mais fresco, percebemos que estávamos a residir em La Sanità, considerado pela intelligentsia dos operadores turísticos um dos bairros perigosos e a evitar, numa cidade onde o alarme generalizado relativo à segurança ultrapassa claramente, e até de forma injusta, a realidade.
Futebol, Deus e Maradona
Em La Sanità embrenhámo-nos nos seus ritmos, conhecemos os vendedores e metemos conversa com os que se demoravam na rua no tal dolce far niente. Estabelecemos a nossa própria vida de bairro com a vizinhança. Ainda que por pouco tempo, fizemos parte de tudo aquilo. Em Nápoles é fácil que assim seja, pois parece que toda a cidade é habitada por uma única e alargada família. Todos falam e exprimem-se da mesma maneira. Nápoles é pobre e é popular.
A rua é onde tudo acontece e as casas são a sua extensão, sempre de portas abertas, numa proximidade que tanto raia a promiscuidade como nos faz sentir gratos e reverentes perante a ternura dos quadros que vislumbramos de soslaio. Os napolitanos não têm pejo nenhum em fazer-se notar e partilham com a comunidade os momentos mais importantes da vida. Afixam cartazes quando alguém morre e colocam fotografias dos falecidos nos inúmeros nichos religiosos kitsch espalhados pela cidade. Lançam valentes fogos-de-artifício de cada vez que alguém festeja um aniversário. Comunicam e insultam-se com papelinhos afixados no interior dos prédios e na rua. Penduram gigantes chupetas e laçarotes de peluche nos portões para celebrar o nascimento de mais um filho.
Na relação com as crianças – e há muitas! – percebe-se o treino familiar e comunitário de todo e qualquer napolitano. É também onde mais se revela a sua bondade. O carinho, o deslumbramento e o cuidado que todos partilham pelas crianças, omissos dos tiques exteriores de autoridade paternal ou até de exagerados protocolos de bom comportamento, fazem dos putos uns napolitanozinhos em potência, crescendo num caldo cultural que não poderia fazer deles outra coisa que não veri napoletani.
Salvar o colapso com fita-cola
Uma parte fundamental do treino para se vir a ser um verdadeiro napolitano é dominar uma scooter - diga-se, em abono da verdade, que devem ultrapassar largamente em número a população. Vimos crianças que ainda nem sequer gatinham a serem transportadas num braço enquanto o outro segura o guiador. É comum verem-se famílias inteiras de um lado para o outro: o pai à frente, o filho mais pequeno entalado entre ele e a mãe, e o mais velho atrás agarrado a esta. Mais frequente ainda é ver crianças de chucha na boca, em pé agarradas ao guiador e encostadas ao banco, enquanto o condutor ziguezagueia pelo trânsito. Há ainda a versão que transporta cães ou bandejas ou três e quatro caixas de pizzas equilibradas num braço. E, finalmente, a scooter de carga, em que mal se percebem as duas rodas por baixo das caixas e sacos. Tudo isto em vertiginosa velocidade, sem capacete, a falar ao telemóvel ou tagarelando de uma mota para outra. É por isso normalíssimo verem-se crianças de 12, 11 ou mesmo dez anos a guiarem estas motas com natural destreza - as scooters são uma extensão dos seus próprios corpos.
O trânsito em Nápoles é uma atracção turística de pleno direito, muito por causa das scooters que surgem de todos os lados (o único conselho que o funcionário do rent-a-car nos deu antes de nos desejar boa sorte foi simplesmente “olhem sempre para a direita”), mas também porque é uma manifestação da espontânea anarquia da cidade. Apesar disso, ou talvez por causa disso, não vimos nenhum engarrafamento ou acidente. Todos buzinam mas ninguém discute. Não há regras, mas todos respeitam o desrespeito. Ninguém liga às faixas de rodagem, as scooters não querem saber de semáforos ou sentidos proibidos e, se por acaso foste o primeiro a enfiar o carro naquele espacinho passando à frente de toda a gente, que bom para ti, devia ter sido eu a ver isso primeiro. O que em Portugal é considerado chico-espertice, em Nápoles é uma instituição tácita. Resta dizer que, quase de forma incongruente, há uma enorme condescendência para com os peões. Embora até estes tenham de se fazer à vida e atirar-se à estrada se não quiserem ficar o dia todo à espera de atravessar a rua, mesmo estando especados em cima de uma passadeira.
 
Monumento a San Genaro
Se é certo que não presenciámos nenhum acidente de trânsito, também é verdade que o estado do parque automóvel é revelador do estilo de condução dos napolitanos e da dificuldade de o fazerem naquelas intrincadas ruas. Não há um único carro ou mota sem mossas, raspões, um retrovisor pendurado, fios descarnados e outros componentes à beira do colapso. E assim seria, não fosse a fita-cola. Tudo ali se resolve com ela. Aliás, a própria cidade passa uma sensação periclitante e sustém-se não se percebe bem como. Com os seus prédios de arquitectura decadente, teias de fios emaranhados, ruas tão estreitas onde dificilmente entra o sol, e paredes que ameaçam ruir a qualquer o momento, toda ela só se mantém graças a uma inventiva engenhosidade: estendais amarrados de uma varanda à outra, rodas de bicicleta a fazer de roldanas puxando baldes com compras, vassouras armazenadas nas paredes exteriores e outras serventias seguras com fita-cola, sempre ela, dizem bem da panóplia de expedientes a que os napolitanos recorrem para resolver qualquer situação. E funciona!
Um golfo, um vulcão, seiscentas igrejas
Geograficamente, há dois factores que sempre marcaram a história da cidade: o golfo de Nápoles e o Vesúvio. Este ficou dramaticamente famoso por em 79 a.C., após uma violenta explosão, ter soterrado Pompeia, Herculano e outras vilas romanas circundantes sob cinzas incandescentes. Visitámos Pompeia à noite e a experiência é marcante, não tanto pela atracção voyeurista da tragédia que ali aconteceu, mas antes porque caminhamos por entre as ruas ainda calcetadas, casas, templos, lojas e outros locais que faziam da cidade o que ela era. É muito fácil imaginarmo-nos a fazer parte desse dia-a-dia. Se esquecermos que o Vesúvio é ainda um vulcão activo e um dos mais imprevisíveis (nesse aspecto pior do que o Etna, na Sicília), olhar Nápoles a partir do seu largo horizonte de terra em meia-lua por onde entram, calmas e cálidas, as águas do mar Tirreno e sobre as quais se ergue como um sentinela o imponente vulcão, já faz valer a viagem. É obrigatório descer ao fim do dia até à beira-mar de Chiaia e aí ficar a beber uma cerveja, Moretti, de preferência, enquanto o sol desliza no horizonte... e depois mergulhar ali mesmo no porto, ainda que só tenhamos trazido boxers vestidos.
 
Catedral de Santa Maria Assunta
Compreende-se, então, que a vantajosa localização da cidade tenha favorecido a fixação de povos e civilizações aqui desde muito cedo. Nápoles começou por ser grega e depois romana. Essa influência é ainda bastante evidente no desenho urbano da cidade. No centro histórico, os Decumani Maggiore e Inferiore são ruas que vêm da costa e irrompem rectilíneas pela cidade adentro. Uma delas, conhecida como Spaccanapoli (literalmente “Divide Nápoles”), é uma rua imensa e vertiginosa. São interligadas por uma numerosa teia de pequenas ruas chamadas Cardini. Percebe-se também, principalmente depois de visitar a costa Amalfitana, que os romanos encarassem esta localização maioritariamente como um local de ócio, aí instalando moradias para os seus momentos de prazer. Talvez por isso, no fabuloso Museu Arqueológico Nacional, além da estatuária e dos bem preservados mosaicos e frescos resgatados às cinzas de Pompeia e Herculano, exista também uma rica e variada colecção de artefactos e pinturas eróticas, isoladas na Sala do Segredo.
O centro histórico, Património da Humanidade da UNESCO, é o epicentro turístico por excelência, e onde a gincana se torna quase um acto de sobrevivência para nos desviarmos das scooters, da multidão e do vibrante comércio. É aqui que estão alguns dos monumentos mais emblemáticos de Nápoles, principalmente igrejas – houve quem nos asseverasse que a cidade tem 600 igrejas, o que, carecendo de comprovação, nos pareceu bastante plausível, tal é a religiosidade das suas gentes – e onde a vida nocturna se concentra à volta da Piazza Bellini.
Piazza Bellini

O bairro espanhol, outro dos situ non grato à noite para qualquer guia de viagem, merece bem uma visita sem destino ou mapa na mão, não só porque se torna praticamente impossível destrinçar a apertada malha urbana, mas porque o que verdadeiramente importa em Nápoles é deixarmo-nos levar ao sabor do espanto. E ele torna-se estranhamente constrangedor quando percebemos que este bairro, dos mais pobres da cidade, vive paredes meias com a Via Toledo, onde estão instaladas algumas das lojas de marca mais caras. Desembocar subitamente de uma quelha recolhida e íntima do bairro espanhol para o mar de glamour e cacarejo social desta via exige um exercício de estômago que dificilmente se apazigua. Ajuda continuar a descer essa rua e vermo-nos surpreendentemente desafogados na enorme Praça do Plebiscito, aceitando então que Nápoles também é isto, esta crueza bruta de contrastes que nos deixa rendidos ao seu charme de ser outra coisa que nunca vivemos até aqui termos chegado. 
Praça do Plebiscito
Futebol, Deus e Maradona 
Ao fim do terceiro dia a dizermos que éramos portugueses sem nunca surgir o maior desbloqueador internacional de conversas – Cristiano Ronaldo – indicava que algo estava podre no reino napolitano. Foi só quando vimos as paredes garatujadas com impropérios cabeludos à Juventus e rolos de papel higiénico decorados com a cara de CR7 é que percebemos de onde vinha o cheiro. O ódio à Juventus só é ultrapassado pelo amor ao Nápoles e a Maradona, que, tal como Deus e os santos, merece inúmeros nichos de verdadeira devoção religiosa espalhados um pouco por todo o lado.
 
A costa Amalfitana tem praias de postal ilustrado
A que horas fecha a praia A costa Amalfitana merece todos os elogios que lhe possamos dispensar, pela sua íngreme beleza, pelo permanente namoro entre o mar e o céu, pelo prazer de conduzir nas suas serpenteantes estradas costeiras, enfim, pela promessa de praias recônditas e únicas. E o problema é mesmo esse: fica-se maioritariamente pela promessa. Em Agosto o trânsito é impraticável, o estacionamento inexistente, tudo se paga, até a entrada nas praias, e há mesmo aquelas que têm horário de abertura e fecho. Restou-nos um daqueles momentos em que a divina providência iluminou um casal carregando toalhas de praia que saltava um muro no meio da estrada. Foi encostar o carro de imediato, saltar o mesmo muro e descer muitas dezenas de degraus até ao paraíso. Não, não se pagava. E não, também não vamos dizer qual o nome dessa praia, cada um tem de procurar e merecer o seu próprio momento de sonho 
O favor

Só falta mesmo falar do elefante na sala. Quando toca a Nápoles, é impossível não pensar imediatamente na Camorra, nome dado à máfia na região de Campania. Escondida a violência e remetida ao folclore no imaginário de qualquer não italiano, o que se sente de forma subliminar nas conversas com os napolitanos é uma tendência indelével e inata para uma hierarquia baseada no favor. Até o arrumador de carros à beira de uma praia, que nos arranjou um lugar e nos deu algumas dicas, fez questão de demonstrar o seu ascendente sobre nós fazendo-nos anunciar de forma bem audível aos rapazes que guardavam a concessão da praia: “Ó fulano, está tudo bem, estes estão comigo!”, disse-lhes. São estas e outras pequenas solicitudes, tão espontâneas naquela maneira de evidenciar o domínio sobre alguém ou uma situação, que fazem subentender onde se funda a pirâmide."Bruno Ramos(Texto e Fotos), Público, 09.02.2019

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

A Vida

                 
                       As palavras têm a leveza do vento e a força da tempestade.
                                                                Victor Hugo

Mas há tempestades que não arrastam palavras: levam-nos.  Enchem o horizonte, num desafio de  sedução e magnificência. Sem armas , capturam-nos em deslumbramento , permitindo à emoção ser parte de uma nova tempestade.  
E de tempestade em tempestade, de bonança em bonança, reerguemo-nos numa eufonia que não cessa de se transformar e a que chamamos  VIDA.
Antonio Vivaldi, (Veneza, 4 de Março de 1678 — Viena, 28 de Julho de 1741),  teceu "The Storm" ( Four seasons), uma peça magnifica.
Ei-la , numa brilhante  interpretação de  The Divertissement Chamber Orchestra. A direcção é de  Lesya Melnik. No Violino solo  está  Ilya Ioff. 
O registo foi realizado por  A.Polagaev e o  som por  A.Barashkin.