sábado, 31 de outubro de 2020

Aquilo foi o diabo

   «Suba, tome sentido nos degraus», recomenda a mulher e toma a dianteira. Alterou-se-lhe a voz que era fraca, hesitante e agora empurra autoritariamente as vibrações do ar.
    Esta casa que eu tanto imaginara, querendo ver levantados os cheiros, as paredes, circula no entanto como um redemoinho de pós e de bolores em torno das chinelas de Perpétua. O que quer que existiu aqui está já desfeito. Não houve tempo para que a podridão tratasse dos lugares a seu modo, um por um, conforme os usos, conforme as horas que lhes foram dedicadas. É um corredor velho e sem memória. Está reduzido à sua própria sombra. «Olhe se põe um pé em falso, olhe o soalho», diz a mulher, mas não me guia os passos. As suas chinelitas de fazenda parecem saltitar, tomam-se leves e como que doiradas naquela escuridão, brilham e apagam-se à maneira dos insectos. A madeira ressoa cavamente, está feita um algodão, fofa, sem consistência. E os passos flutuam numa fascinação de pesadelo.
    O que há por trás das portas? vou dizendo. Nada, coisas, responde. Bicharada. Há com certeza luz, vidraças por abrir. A caseira rirá, terá essa luxúria de me pôr aos tacteios, de me fazer talvez torcer um tornozelo, limpa que traz a superfície de consciência. «Bem avisei, não quis tomar cautela...» Terminando-se assim esta intrusão em acabrunhamento, em vergonha dorida. «Uma estranha, dirá, depois, na padaria, chegar ali como uma estranha, a querer ver tudo.» E encolherá os ombros, indignada.
    «Pronto, aqui era o quarto», diz Perpétua e cola-se à ombreira para me deixar passar. Avisto a colcha de algodão adamascado, cor de romã, ainda arrepanhada, sob uma manta e os estilhaços do entulho. «Vê a perna da cama? É com os livros. Ou vinha tudo por aí abaixo.»
    A casa deve ter os seus recursos para se limpar de todas as presenças. Faz sentir que jamais alguém aqui entrou. O espírito dos anos lambeu-se e sacudiu-se como um bicho de pêlo. E tudo se tomou silencioso e vazio.
    «Não esteve aqui ninguém», penso em voz alta. Mas a mulher aceita a frase sem ouvir, põe-se de novo a chinelar à minha frente. Leva-me ao rés-do-chão, ao lado da cozinha, ao que fora talvez uma casa da lenha, um cubículo fresco, com janelo. «Aqui, trazia-a mais debaixo de olho.»
    Há como que um instinto narrativo na escala com que ordena esta visita, um faro que estabelece e isola os fulcros onde o que quer que fosse de ousado e misterioso veio a ter um lugar. Também aqui não restam vestígios da sobrinha, a não ser umas tachas que afixavam decerto cartazes nas paredes. «Tinha aí um divã, as roupas numa cesta. Queria era tomar banhos que eu sei lá.»
    Aos poucos reencontra o gosto pela fala. Aliviou o medo e eu prefiro parar de lhe fazer perguntas. Dá-me entrada na sala de jantar onde os aparadores descaem levemente porque o chão abateu. Na grande mesa de castanho, aberta, amontoam-se malgas amarelas, garrafões com a palha apodrecida. No lambril de azulejos há emendas absurdas, pastoras e moinhos cortam aqui e além aquilo que parece um antigo painel com cenas de tapada. Junto às duas janelas com banquinhos, alguém deu grandes chapadões de cal para alisar o esventramento da parede.
    Perpétua faz subir uma vidraça, debruça-se a cheirar as árvores, o terreiro, e isso fá-la cobrar alguma cor. «Sentava-se-me aqui, diz ela, a tarde inteira.» Não compreendo acerca de quem fala. O sol-poente pega-lhe ao cabelo um fogo quase negro, de carvão.
    Dos buracos do chão vem o bafo das velhas areias de uma adega onde durante muitos anos azedaram as espumas do vinho que fervia. Não sinto encantamento algum em tudo aquilo e é por isso que faço brutalmente a pergunta:
    — Acha que não passou de uma história de amor?
    A mulher vira a cara para mim, mas por acção do sol ou do que quer que seja, deixou completamente de me ver.
    — Assim — insisto ainda — como nestas novelas?
    Ela sacode os ombros, fatigada. Conduz-me, chinelando, para a saída, tomada de repente por uma pressa, um tique de ansiedade. Dir-se-ia que quer expulsar-me antes da noite. À porta, ri-se e encara-me por fim:
    — Aquilo foi o diabo. E o que foi.
    Fica a dizer-me adeus, hospitaleira, amável, tendo aos pés o cão fulvo que a chegada da noite agora arroxeou.”
Hélia Correia, in A Casa Eterna, Relógio D´Água, Lisboa, 1999, pp. 39-41

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Hoje Há Música Para Recordar


What A Wonderful World
I see trees of green, red roses, too
I see them bloom, for me and you
And I think to myself
What a wonderful world.

I see skies of blue, and clouds of white,
The bright blessed day,
The dark sacred night
And I think to myself,
What a wonderful world.

The colour of the rainbow,
So pretty in the sky
Are also on the faces,
Of people going by
I see friends shaking hands,
Saying "How do you do?"
They're really sayin': "I love you".

O verão chegou ao fim . E, nesse adeus, chegaram  recordações de outros dias para a música que se foram acumulando  ao longo da vida. Trazê-las todas até aqui é impossível. No entanto, ficam algumas como leitmotiv para a busca que cada um pode fazer no repositório musical que construiu.
Louis Armstrong (1968), em What A Wonderful World
Leonard Cohen, em Dance me to the end of love.
  
Luciano Pavarotti, Brian Eno, Bono, The Edge , em  Miss Sarajevo, com a Orchestra Filarmonica Di Torinom conduzida pelo Maestro Michael Kamen. 
Licenciado ao YouTube por UMG; LatinAutor - UMPG, UMPG Publishing, ASCAP, IMPEL, CMRRA, BMI - Broadcast Music Inc., LatinAutor, UMPI, UNIAO BRASILEIRA DE EDITORAS DE MUSICA - UBEM, Abramus Digital e 13 sociedades de direitos musicais .
 
Tina Turner canta Let's Stay Together ao vivo, do álbum Celebrate!, gravado no ano 2000, em comemoração dos seus 60 anos de idade.
 
The Beatles, em  While My Guitar Gently Weeps. The Beatles LOVE pelo Cirque du Soleil num espectáculo no  The Mirage de Las Vegas…
James Brown, em  It's A Man's Man's Man's World, 1966
Frank Sinatra ,  em My Way. 

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

As palavras são caminhos

Palavras que atrapalham e ajudam a viver

"Mas você sabe que a pessoa pode encalhar 
numa palavra e perder anos de vida?"
Clarice Lispector

"Vejam só: encalhar numa palavra. A pessoa lá vai no seu barquinho vida adentro e, de repente, encalha numa palavra. Pode ser "marxismo", "Deus", "pai", "vanguarda", "revolução", "Paris", "aposentadoria". As palavras são paralisantes. O Brasil, por exemplo, no princípio do século estava encalhado na "febre amarela". Nos últimos anos reencalhou na "ditadura" e na "censura". Tem hora que encalha na "inflação". Agora encalhou no "desemprego". E está dificil desencalhar da "reforma agrária", da "corrupção" e do "subdesenvolvimento".
Os escritores, sobretudo, encalham muito nas palavras. João Cabral se referia a Graciliano Ramos como um homem "com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol". Joyce, com Ulisses e Finnegans wake encalhou titanicamente numa região cheia de palavrosos icebergs. Alguns poetas que conheço estão há cinquenta anos engastalhados em palavras como "Pound, ideograma, morte do verso, Joyce, un coup de dés", e não há quem os demova.
Quem leu O nome da rosa se lembra que havia lá na biblioteca medieval um texto impossível, envenenado, como o fruto interditado no meio do jardim. É que as palavras, com essa coisa de se plantarem em nossa vida, nos alimentam e nos matam, são remédio e veneno, e, como os produtos de uma farmácia, são drogas que podem sarar ou curar. É uma questão de alquimia verbal saber administrá-las. Aurélio Buarque de Hollanda, que dicionarizava rebanhos de palavras, enfatizando o lado positivo das palavras, me disse um dia: "Nós temos que dar oportunidade às palavras". Entendi isto como uma sugestão para a gente se desencalhar e ir desfrutando palavras novas, como o amante que com um novo amor renasce vida afora.
Em algumas culturas certas palavras não podem sequer ser pronunciadas, pois trazem desgraças. Mas em algumas narrativas certos vocábulos abrem grutas, cofres e corações. Sim, algumas palavras ajudam o barco a flutuar: "esperança", amanhã", "utopia". Pode-se também passar uma estação com algumas delas, como se pode passar uma temporada num determinado lugar, num certo corpo, num certo amor. Certas palavras são como hotéis: nelas fazemos pernoite, mas outras demandam moradia maior, são grutas ou catedrais que exigem contemplação.
Ler é tomar a palavra alheia, vesti-la, habitá-la por certo tempo. Escritor, no entanto, não é aquele que acumula palavras obscuras num egoísta museu ou cofre de erudição, mas quem as troca na bela moeda da emoção.
Eis um bom exercício: tome um lápis e anote as palavras que paralisaram ou fizeram a  sua vida avançar. Palavras-coisas, palavras-pessoas. Sobre a vida e sobre as palavras há várias teorias, a escolher. Há quem diga que a vida tem que ser palavras em movimento, aquele work-in-progress de que falam os ingleses. Se você encontrar, vinte ou trinta anos depois, uma pessoa fazendo o mesmo discurso, tenha pena, desconfie, é sinal que a vida dela emperrou. (A menos que seja um discurso de amor).
Com as palavras, a gente tem que tomar cuidado, pois no primeiro encontro nos libertam, depois nos aprisionam. Há palavras tão duras e montanhosas, que nem com tractor, só dinamitando. E o facto é que um simples "bom dia" ou "alô" pode salvar uma vida. A psicanálise pretende ser o método da "cura pela fala", mas também pode se tratar pelo ouvido. As palavras ouvidas também curam. Vejam a mãe soprando o dedinho do filho dizendo: "já passou o dodói, pronto".
Viver também é a arte de lidar com as palavras.
E como já disse alguém as palavras são caminhos para encontrar as coisas perdidas."
Affonso Romano de Sant'Anna, in  Que presente te dar?Ed. Leya, 201
Sobre o autor
"Brasileiro e mineiro de Belo Horizonte, nasceu em 1937. Bacharelou-se em Letras Neolatinas pela UFMG, em 1962. Em 1969, também pela UFMG, com uma tese sobre Carlos Drummond de Andrade, tornou-se Doutor em Literatura Brasileira.
Nos anos 1960 participou activamente de diversos movimentos de renovação da  poesia e, durante a ditadura militar, publicou, nos principais jornais brasileiros, corajosos poemas, reativando a relação do poeta com a vida social e política do país.
Entre 1990 e 1996, presidiu a Fundação Biblioteca Nacional, época em que estabeleceu uma eficaz política do livro e da leitura no país. Com cerca de quarenta livros publicados, entre poesia, ensaios e crónicas, é casado com a escritora Marina Colasanti e tem duas filhas."

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Albert Camus

"(...) Nessas praias de Oran, todas as manhãs de verão parecem ser as primeiras do mundo. Todos os crepúsculos dão-nos a impressão de serem os últimos, agonias solenes anunciadas ao pôr-do-sol através de uma derradeira luz que escurece todos os matizes. O mar é ultramar; o caminho, cor de sangue coagulado; a praia, amarela. Tudo desaparece com o sol verde; uma hora mais tarde, a lua começa a jorrar das dunas. Nesses momentos, as noites se fazem incomensuráveis sob a chuva de estrelas. Por vezes cruzam-nas tempestades, e os relâmpagos escorrem sobre o dorso das dunas, empalidecem o céu, pondo na areia e nos olhos clarões alaranjados. Mas nada disso se pode compartilhar. É necessário tê-lo vivido. Tamanha solidão e grandeza dão a esses lugares um rosto inesquecível. Ao nascer da madrugada frágil, passadas as primeiras vagas ainda negras e amargas, é um novo ser o que fende a água da noite, tão difícil de suportar. A lembrança dessas alegrias não é uma saudade triste; por isso sei que eram boas. Tantos anos depois, ainda persistem em algum recanto de meu coração, que tem dificuldade de ser fiel. E hoje sei que sobre a duna deserta, se eu quisesse retornar, o mesmo céu continuaria derramando sobre mim a sua carga de suspiros e estrelas. Porque aqui estão as terras da inocência." 
 Albert Camus, in" Noces suivi de L'été", Editions Gallimard, 1959 
Albert Camus nasceu  a 7 de Novembro de 1913, em Argélia, no bairro  Belcourt, zona de Argel, onde se situavam os bairros pobres . Foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura aos 44 anos . Era um escritor famoso e com uma grande obra feita.  No entanto, a vida promissora,  que  se esperava  ser prosseguida, acabou dois anos depois. A 4 de Janeiro de 1960,  morreu num brutal acidente de viação, quando regressava a Paris ,  no automóvel do seu amigo  Michel Gallimard. Camus perdeu a vida no local e Michel Gallimard morreu cinco dias depois, no hospital. Apesar de desaparecido precocemente, é  um dos  nomes maiores da literatura francesa e mundial, pelo seu pensamento  e  por ter produzido   uma obra excepcional e de uma riqueza incontornável.  
"O Estrangeiro", talvez o seu   livro mais famoso, publicado em 1942, vendeu oito milhões de cópias e foi traduzido em quarenta línguas. Luchino Visconti  fez uma adaptação cinematográfica em 1962. 
A sua obra é bastante volumosa e repartida por vários géneros literários. 
Albert Camus pertence ao círculo dos meus eleitos. Eis um excelente documentário que retrata " as vidas" deste grande e íntegro escritor que tão bem problematizou a condição humana.

domingo, 25 de outubro de 2020

Ao Domingo Há Música


“Não sei por que buscas palavras longas
para as coisas breves que nos assombram.

Não sei por que teces teias enormes
para as incertezas que nos envolvem.

Não sei por que insistes. Não sei porque insistes
em prender meus passos nesse limite.”
Glória de Sant’Anna, in ‘Poemas do Tempo Agreste’ 

O poema e a  música entrelaçam-se . Bastam-se. Têm o ritmo das coisas breves que nos assombram.
La Quête de Jacques Brel, com  arranjos de Yvan  Cassar para o  "Symphonie pour la Vie" Le Concert , realizado no  Théatre du Châtelet, a 24 de Junho de  2020 . O concerto teve fins humanitários  a favor da  Fondation Hôpitaux de Paris e nele participaram muitos artistas como  Gautier Capuçon, Plantu, Stéphane Bern, Franck Ferrand, Pierre Bleuse, Lionel Bringuier, Yvan Cassar, Orchestre Lamoureux, Gaëlle Arquez, Lise Berthaud, Hugues Borsarello, Frank Braley, Bertrand Chamayou, Nicolas Dautricourt, Karine Deshayes, Natalie Dessay, Jérôme Ducros, Thom Enhco, Laure Favre-Kahn, Julie Fuchs, Delphine Haidan, Philippe Jaroussky, David Moreau, Edgar Moreau, Rhiannon Mothersele, Laurent Naouri, Neima Naouri, Tom Naouri, Samuel Parent, Nemanja Radulovic, Dimitri Saroglu, Vassilena Serafimova et Alexandre Tharaud.

 
Hymne à l'amour , por Gautier Capuçon , no violoncelo,  Jérome Ducros no  piano, e Orchestre de Chambre de Paris, sob a direcção do  Maestro  Adrien Perruchon
Hymne à l'amour foi composta, em 1950,  por  Marguerite Monnot e imortalizada pela voz  de Édith Piaf. Esta transcrição para violoncelo foi orquestrada por  Jérôme Ducros.
O concerto foi registado  pela Warner Classics , na  Tour Eiffel , em Paris.

sábado, 24 de outubro de 2020

tudo se escreve com a tua letra

Secreta Viagem 

No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada…
Como podemos só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada! 

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa…
Que figura de lenda! Olhos vagos, perdidos…
Por entre as nossas mãos, o verde mar se escoa…

Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós  olhamos, sem ver, a longínqua miragem…
Aonde iremos ter? – Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa… alheio aos meus sentidos.
– Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos.

David Mourão-Ferreira, in Obra Completa, Lisboa, Presença, 2006, p. 44

A tua nudez inquieta-me

Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.

A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.

Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho «um pensamento despido»;
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.

Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
iluminado, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.

Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.
Fernando Assis Pacheco, in A Musa Irregular, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006

Adiamento

Olhar-te bem nos olhos: que voragem!
Ouvir-te a voz na alma: que estridência!
É tão difícil termos coragem
de nos vermos enfim sem complacência.

É tão difícil regressar de viagem,
e descobrir no rastro tanta ausência…
Mas os meus olhos, súbito, reagem.
À tua voz chega o silêncio e vence-a.

Nos pulsos vibra ainda o mesmo rio
que no delta dos dedos se extasia
e moroso reflui ao coração. 

O gesto de acusar-te? Suspendi-o.
Mas foi só aguardando melhor dia
em que tenha lugar a execução.
David Mourão-Ferreira, in “Obra poética”, Editorial Presença, pp.171,172 

Com a tua letra

Fala-se de amor para falar de muitas coisas
que entretanto nos sucede.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.
Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
Quer dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não para.
Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.

Fernando Assis Pacheco, in A Musa Irregular,  Hiena Editora ,  1991.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A convalescença do Rio de Janeiro

O Rio convalesce 
por Olavo Bilac 
“Não há interesse mais vivo, não há atenção mais ansiosa, do que o interesse e a atenção com que, depois de uma longa enfermidade gravíssima, as pessoas que amam o enfermo espiam na sua face, no seu olhar, nas suas maneiras, o lento progredir da convalescença. É a ressurreição ... 
No organismo, que a morte gulosa andou rondando, como uma fera ronda uma presa cobiçada, a vida reponta aos poucos, num brando anseio de maré que sobe; nos olhos, em que já tinham começado a crescer as névoas do aniquilamento, acorda vagamente a luz da saúde; o sangue começa a transparecer na face, ainda pálida — como uma nuvem cor-de-rosa sob a água límpida de um rio; todo o corpo desperta do torpor prolongado; a voz principia a calor e animação; o sorriso reaparece à flor da adquirir boca; o apetite renasce... 
Mas as pessoas amigas, que ansiosamente acompanham esse moroso ressurgimento do enfermo, ainda têm desconfiança e susto. Não venha uma recaída estragar todo esse esforço do organismo. Não seja essa melhora uma cilada da Morte insidiosa, que, às vezes, gosta de brincar com a sua presa, antes de a tragar, como um gato cruelmente se diverte com o ratinho prisioneiro, fingindo soltá-lo, fingindo distraí-lo, dando-lhe segundos de enganadora esperança, antes de lhe arrancar o último anseio de vida com uma dentada misericordiosa. E esse receio é um sobressalto constante, uma contínua preocupação... 
Não de outro modo, os cariocas (os verdadeiros, os legítimos — porque há muitos cariocas que só se preocupam com a beleza e a saúde de... Paris) acompanham, atentamente, interessadamente, carinhosamente, e assustadamente, a convalescença do Rio de Janeiro — pobre e bela cidade, que quase morreu de lazeira, e, por um milagre mil vezes bendito, foi arrancada às garras da morte. 
Os médicos ainda se não despediram. A moléstia foi longa e séria — e o tratamento também há de ser sério e longo. Mas a cura parece, agora, infalível. A cidade engorda, ganha cores, faz-se mais bela de dia em dia. E, a cada novo sinal de saúde, a cada novo progresso da beleza, a cada novo sintoma de renascimento que lhe notam — os seus amigos exultam, e sentem a alma alagada de uma ventura infinita... 
Agora, o que está particularmente interessando os cariocas é a rapidez maravilhosa com que se vai erguendo o majestoso pavilhão São Luís, no fim da Avenida. 
A qualquer hora do dia ou da noite, quando por ali passa um bonde, há dentro dele um rebuliço. Interrompe-se a leitura dos jornais, suspendem-se as conversas, e todos os olhares se fixam na formosa construção, que está pouco a pouco subindo, esplêndida e altiva, da casca dos andaimes, já revelando a suprema beleza em que daqui a pouco pompeará. 
As velhas casas de em torno ruem demolidas. Rasga-se ali, no coração da cidade, um imenso espaço livre, para que mais formoso avulte o palácio. No alto das cúpulas imponentes, agitam-se os operários como formigas, completando a toilette do monumento. E a cidade não pensa em outra cousa. Ficará pronto ou não, em Julho, o palácio? Ferve a discussão, chocam-se as opiniões, fazem-se as apostas — porque o carioca é um homem que nada faz sem aposta e sem jogo. 
Sim! o Pavilhão ficará pronto! Será dignamente hospedada a Conferência Pan-Americana, e aqueles que, por birra ou vício, apostaram pela não-conclusão do trabalho, hão de perder o seu dinheiro e ficar corroídos de vergonha... E, por felicidade, não é apenas materialmente que a cidade convalesce: é moralmente também. A população naturalmente vai perdendo certos hábitos e certos vícios, cuja abolição parecia difícil, se não impossível. 
Verdade é que, para outros vícios, é ainda necessária a intervenção da autoridade, com o argumento sempre poderoso e decisivo da multa... Mas, voluntária ou obrigada, espontânea ou forçada, o essencial é que a reforma dos costumes se opere. 
Ainda ontem, a prefeitura publicou um edital, proibindo, sob pena de multa, "a exposição de roupas, e outros objetos de uso doméstico, nas portas, janelas e mais dependências das habitações que tenham face na via pública...". 
Era esse, e ainda é, um dos mais feios hábitos do Rio de Janeiro... 
Já não falo das casas humildes, nos bairros modestos da cidade. Que há de fazer a gente pobre, que mora em casinhas sem quintal, senão fazer da rua lavadouro, e das janelas coradouro da sua minguada roupa? Não falo das míseras vestes que, nas estalagens dos subúrbios, aparecem aos olhos de quem passa, estendidas em cordas, ou desdobradas no chão, lembrando os farrapos de Jó, de que fala Raimundo Correia, "[ ...]Voando — desfraldadas/ Bandeiras da miséria imensa e triunfante...". 
Não! Muita cousa deve ser permitida aos pobres, para quem a pobreza já é uma lei pesada demais... 
O que se não compreende é que essa exibição de roupas de uso íntimo seja feita em palacetes nobres, de bairros elegantes. De manhã, ainda é comum ver, em casas ricas, essa exposição impúdica e ridícula. Na janela desta casa, vê-se um alvo roupão de banho, sacudido ao vento matinal; e a casa parece estar dizendo, com orgulho: "Vejam bem, aqui mora gente asseada, que se lava todos os dias!...". Mais adiante, vêem-se saias de fino linho bordado, ricas anáguas de seda; e a casa proclama, pela boca escancarada da janela: "Reparem, aqui moram senhoras de bom gosto, que usam lençarias de luxo!...". Que cousa abominável! A casa de família deve ser um santuário: não se compreende que se transformem as janelas da sua fachada em vidraçarias de exposição permanente, para alarde gabola do que a vida doméstica tem de mais recatado e melindroso... 
Não seria também possível, ó cidade bem-amada,  que, em muitas das tuas casas dos bairros centrais, pudéssemos deixar de ver tanta gente em mangas de camisa? 
Já sei que o calor explica tudo... Mas, santo Deus,  se é só para se ver livre do calor, e não por economia ou pobreza, que essa gente quer viver à frescata, por que não adoptar o uso de um leve jaleco de brim, ou de uma leve blusa de linho? A frescura do trajo não é incompatível com a compostura e não há de ser o uso de um ténue paletó de fazenda rala que há de assar em vida essa gente tão calorenta! 
Mas, vamos devagar. Roma não se fez em um só dia. Os convalescentes querem ser tratados com tino e prudência. Depois de uma longa dieta, os primeiros dias têm de ser de uma alimentação moderada e sóbria. Não vá a cidade morrer de pletora, quando escapou de morrer de anemia. Já que evitamos a inanição, não provoquemos a indigestão. 
Tudo virá com o tempo, e a tempo. 
O progresso já é grande, e será cada vez maior. Que é que não é lícito esperar a quem já viu o que era o Rio há cinco anos e vê o que ele é hoje?” 
Crónica publicada no jornal Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 20 Maio 1906. 
Olavo Bilac in  Vossa insolência: crónicas. Organização e introdução de António Dimas. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp. 268-274

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Aquela terra misteriosa

" O Outono chegou. O céu aberto coberto de nuvens abateu-se sobre os negros contornos das colinas; e as folhas mortas dançavam em espirais debaixo das árvores despidas, até o vento , com um profundo suspiro, as deixar descansar nas covas dos vales nus. E, de manhã à noite, em toda aquela  terra, os ramos escuros e nus,  os ramos nodosos e torcidos que uma dor teria forçado a emaranhar-se uns nos outros, balançavam tristemente entre as nuvens e a terra alagada  pelas chuvas. Os regatos límpidos  do Verão , agora turvos, precipitavam-se com fragor , com a fúria da loucura suicida, contra as pedras que lhes barravam o caminho para o mar.  Duma  ponta à outra do horizonte, a grande estrada das areias jazia entre as colinas com uma luz baça, de curvas vazias, lembrando um rio de lama.
Jean-Pierre ia de um campo para o outro, um vulto alto e pouco nítido sob a chuva miudinha, ou calcorreava a crista dos montes sozinho, recortado contra a cortina cinzenta das nuvens à deriva, como se caminhasse ao longo da própria  borda do universo. Olhava para aquela terra misteriosa que, numa imobilidade semelhante à morte, realizava o seu trabalho de vida sob a tristeza velada do céu.  E parecia-lhe  que, para  ele que conhecia um destino pior  ainda que não ter filhos, a fertilidade dos campos não era nenhuma promessa; parecia-lhe  que a terra  se lhe furtava, se lhe negava , se carregava contra ele  como as nuvens , negras e apressadas, por cima  da sua cabeça. Por ter  de lutar sozinho contra os seus campos, sentia  a inferioridade do homem  breve perante o torrão -que é eterno. Teria de perder  a esperança  de ter a seu lado um filho que olhasse  para a terra lavrada  com um olhar de dono? Um homem que pensasse como ele , que sentisse  como ele; um homem que fosse parte de si e no entanto permanecesse, para pisar aquela terra, quando ele se fosse? "
Joseph Conrad , in Os Idiotas de "Histórias Inquietas", Assírio&Alvim Editores, 2010,  pp. 82,83

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Encantamento


ENCANTAMENTO: "É nisso precisamente que reside um dos elementos de sedução da música: ela representa a perfeição de uma maneira suficientemente fluida e ligeira para podermos prescindir do esforço."
                                          Albert Camus ,"Escritos de Juventude" 
 
Rui Massena , em The Tree.
Composição: Rui Massena Rui Massena: Piano / Samplers / Sintetizador Bernardo Fesh: Baixos João Cunha: Percussão Sandro Mota: Percussão Rui Moreira: Viola de Arco Daniela Silva: Violoncelo Tobias Lehman: Guitarra Produtores: Rui Massena e Mário Barreiros Pré-Produção: Rui Massena e Bernardo Fesh Captação e Gravação de Piano e Guitarra: Tobias Lehman - Estúdios Teldex Berlim Captação e Gravação Band: Mário Barreiros - Boom Studios Misturas: Tobias Lehman - Estúdios Teldex Berlim Master: Joe Laporta - Sterling Sound Audio Mastering, New York VÍDEO Realização e Edição: André Tentugal Produção: Joana Cordeiro Operador de steadycam: Tomás Cazaux Make-up: Maria Fontes Actriz: Pipsy Roque Agradecimentos: Hotel Porto Palácio / VIP Lounge; FCDUP Music video by Rui Massena performing The Tree. © 2018 Universal Music Portugal, S.A.
 
Bernardo Sassetti, em Blame it on my youth. 
Do Facebook do artista:
"BLAME IT ON MY YOUTH é uma balada muito especial que descobri há muitos anos atrás pela voz do Sammy Davis Jr. A música é de Oscar Levant... Lembram-se do extraordinário pianista do filme musical UM AMERICANO EM PARIS? É dele este tema imortal! Espero que gostem. Obrigado a todos aqueles que aqui seguiram estas primeiras 16 sessões a solo no estúdio TIMBUKTU. Mais gravações virão no futuro. A anunciar... Um abraço a todos! Bernardo" 
Bernardo Sassetti morreu em Maio de 2012, com 41 anos. 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A Arte e os artistas

OS 3 GÉNEROS DE ARTISTAS
por Fernando Pessoa

"1. O artista para quem a arte é uma necessidade como que física, directa, como são a de comer e a de beber. Para este a arte é uma função da vida.
2. O artista para quem a arte é um refúgio, um modo de esquecer a vida; como um narcótico, um vício qualquer, um álcool.
3. O artista para quem a arte é uma tarefa, uma missão a cumprir.

Do 1.º género são homens como Shelley, Byron - como o «romântico», em geral.
Do 2.º género são homens como Verlaine, Baudelaire, e outros assim (incluir Maupassant).
Do 3.º grupo são os grandes criadores como Milton. 
                 s.d. 
Fernando Pessoa, Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990. - 52.

domingo, 18 de outubro de 2020

Ao Domingo Há Música

EM UMA TARDE DE OUTONO

Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.
Outono... Rodopiando, as folhas amarelas
Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto...

Por que, belo navio, ao clarão das estrelas,
Visitaste este mar inabitado e morto,
Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,
Se logo, ao vir da luz, abandonaste o porto?

A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos
A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos...
Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol! 

E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste,
E contemplo o lugar por onde te sumiste,
Banhado no clarão nascente do arrebol...

Olavo Bilac (1865-1918)  - “Obra Reunida”

Quando a sonoridade da voz nos surpreende , rendemo-nos ao fulgor que dela emana. Com a  intensidade da descoberta,  quase nos perdemos num rodopio de emoções até à  serena fruição da magia do canto.
Kaz Hawkins & Ged McMahon, em  One more night with you.
Kaz Hawkins , em Because you love me.
 
Kaz Hawkins, em  NENDRUM
Nendrum é um   histórico local monástico da Irlanda do Norte . Kaz Hawkins considera-o um lugar muito especial para o seu coração. Esta canção é algo de diferente  no seu repertório. 

sábado, 17 de outubro de 2020

O espelho de Narciso


 "Quando Narciso  morreu, as flores do campo curvaram-se de dor, e imploraram ao rio que lhes desse uma gotas de água para o poderem chorar.
- Ainda que metade de todas as minhas gotas de água fossem lágrimas - respondeu o rio - não seriam suficientes para chorar Narciso. Eu amava-o. 
- E como podia alguém não amar Narciso? - perguntaram as flores.
- Ele era tão belo.
- Ele era belo? - perguntou o rio.
- Quem melhor do que tu deveria sabê-lo, - perguntaram as flores - se todos os dias , deitado na tua margem, ele via o reflexo da sua beleza espelhado nas tuas águas.
- Mas eu amava-o - murmurou o rio - porque  quando ele se inclinava sobre mim, eu via o reflexo  da minha beleza nos seus olhos. "
Oscar Wilde, in " Histórias à volta da mesa", Coisas de Ler Edições,  Janeiro de 2008,  p. 77

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Bach pelo Béjart Ballet Lausanne

 
Béjart Ballet Lausanne,  em  Cantate 51 de Johann-Sebastian Bach, com coreografia de Maurice Béjart , direcção artística de Gil Roman e Choir and Orchestra of The Bach Guild, sob a direcção do Maestro Anton Heiller.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

The Teatro del Silenzio

  
Andrea Bocelli - live at Teatro del Silenzio 2020 (waiting for “Il mistero della bellezza 2021”) The Teatro del Silenzio lives on. It lives in the imagination and in the hopes of tens of thousands of spectators, who anxiously await 2021. Ideally, its wonderful audience is already here, embodied by multicolored flags from around the world as a reminder of the festive atmosphere and the cultural elevation of the kermesse, which has been going on for fifteen years now. People is an evocative installation, fruit of the creative vitality of Alberto Bartalini, a strong message of confidence and positivity in the certainty of carrying on in the very near future”. - Andrea Bocelli
 Track list: 
-Ave Maria by Franz Schubert
 -La Bohème, O Soave Fanciulla by Giacomo Puccini 
-Non ti scordar di me by Ernesto De Curtis 
-Parlami d’amore Mariù by Cesare Andrea Bixio
-Inno d’Italia (Inno di Mameli) by Goffredo Mameli 
Artists: 
Andrea Bocelli; 
Tenor- Alessandra Marianelli;
Soprano- Carlo Bernini; 
Piano- Brittany O' Connor. 
Dancer Produced by City Sound&Events and Almud Executive Producers: Vittorio Quattrone and Veronica Berti Assisted by Francesco Pasquero for Maverick and Sara Formicola for Almud Associate Producer: Marco Marchesi Morselli.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

As memórias falam

                                     Eugénio Lisboa na Universidade de Aveiro  

CONSIDERAÇÕES
por Eugénio Lisboa
                                                                 Nunca falar de si próprio é uma
                                                                forma muito refinada de hipocrisia
                                                                                                   Nietzsche

"(...) Fiz, ao redigir estas memórias, bom uso da memória e melhor uso, ainda, de um diário que, em Londres, me pusera a reescrever. A memória ajuda, mas tem um inconveniente: por muito selectiva que seja e tenda sobretudo a recordar o que, de importante, profundamente nos marcou, pode meter, por vezes, no mesmo saco, jóias e pedras sem valor: guarda essa pedraria secundária, não se sabe bem porquê. Talvez porque, em certo momento, em certa circunstância particular, esse marco secundário e aparentemente insignificante – no tempo de hoje – nos perturbou de modo significativo. Dizia Lord Halifax que “as memórias de certos homens são como uma caixa onde se misturam jóias com sapatos velhos.” E é bem verdade. Mas só quem os guarda poderá – se puder! – ter, às vezes, a possibilidade de descortinar a razão que o levou a guardar, com tanto cuidado os “sapatos velhos”, que desfeiam o conteúdo da caixa. Talvez eles tenham (ou tivessem tido, na altura) um significado profundo qualquer, talvez guardem (ou quisessem, então, guardar) a memória de um momento mágico da vida de quem assim os preserva, mas que o tempo foi apagando, ficando apenas o sapato, pobremente desligado da magia que fora sua missão perpetuar… Um par de sapatos velhos pode ombrear, em importância, na memória de quem os arrecada, com uma jóia preciosa ou com um livro inesquecível: tudo remete para outros  seres, para emoções que foram fortemente vividas e se quereria eternas, na memória própria e dos outros.
O território da memória é um reino complexo e nem sempre de fácil decifração. De qualquer modo, correndo o risco de ter seleccionado mal – ou não tão bem como seria desejável – deixei-vos, até aqui, um acervo de minudências que achei bem preservar e, agora, divulgar. Mas é evidente que não poderei continuar a este ritmo vagaroso e com este luxo de minúcias – apesar de ter seleccionado, isto é, suprimido, com austeridade espartana. Vou ter que suprimir muita coisa que considero interessante e que os meus diários registam. Ficará tudo isso, para uma publicação integral póstuma, embora não esteja fora de cogitação, a edição, ainda em vida minha, de uma secção ou outra desse acervo diarístico*. Será, por assim dizer, o complemento destas minhas memórias, ou seja, um natural anexo a elas.
Neste 5º volume, transcreverei, de aqui até ao final, passagens que considero importantes, relativas ao desaparecimento de pessoas (mãe, sogro, irmão, animais domésticos), viagens que fiz (mas não todas) e uma ou outra “entrada” que me apeteça sublinhar. Tudo foram componentes desta recta final da minha vida, que se aproxima do fim: não que o sinta, mas porque é a ordem natural das coisas e a cabeça assim o aceita.
Nestes cinco volumes (de que me falta concluir este e, depois, escrever o 2º), tenho falado bastante dos outros e, também, alguma coisa, de mim. Embora um livro de memórias não seja bem uma autobiografia, não é menos verdade que contém um bom teor de valências que compõem o género autobiográfico. As memórias falam, sobretudo, dos “outros”, mas são outros que gravitam à volta de um “eu”. Não há que ter vergonha de assim se falar de si próprio. Uma certa complacência com a narrativa do próprio eu até nem será pecado de maior. Thomas Mann, num seu livro célebre – Goethe e Tolstoi – pergunta, sem pudor: “Poder-se-á distinguir o amor de si próprio do amor do próximo?” E julga poder e dever responder a esta pergunta, nestes termos: “O amor que temos por nós próprios e o amor que temos pelos outros confundem-se psicologicamente; eis por que a velha questão de se saber se o amor não passa de um sentimento egoísta em vez de ser um sentimento altruísta pôs o mais ocioso dos problemas. A oposição do egoísmo e do altruísmo é completamente suprimida no amor.” Neste mesmo livro, Mann acrescenta isto, como um suplemento de afronta aos “recatados”, que têm medo de parecerem narcisos: “Goethe vituperou, durante toda a sua vida, a afectação de recato com que se pretende interditar a complacência com o próprio eu. Dava ele a entender que tal sentimento só era bom para as pessoas a quem não assistia a mínima razão para se estimarem a si próprias. Tomou mesmo a defesa descarada da pequena vaidade corrente, declarando que a sua desaparição faria perecer a sociedade e que um snob tem ao menos a vantagem de nunca chegar a ser demasiado grosseiro.”
Com tão ilustres advogados de defesa a “protegerem” a minha desfaçatez de autobiógrafo (em cinco volumes), permito-me, pois, continuar e tentar levar até ao fim este meu empreendimento de guardador de memórias.
Não cultivei nunca o estilo do português deprimido e lamecha e dei, naturalmente, à minha escrita, aquela energia e brio de que fui capaz e que suponho estarem na minha natureza profunda. Tenho uma visão pessimista do mundo em que vivemos e sei que a aventura do homem sobre a terra é coisa efémera. Tudo vai desaparecer e, disto tudo, nem a memória ficará. Sou um pessimista mas não sou nem triste nem amargurado. A vida é o que é e o universo também. Na pequenina parcela de universo que habito, olho, friamente e sem ilusões, o quotidiano grotesco que não anuncia nada de bom: posso dizer, com alguma pompa e circunstância, que vivo crucificado, mas não entristecido. De um livro de Montherlant, recolho isto: “être patriote, et être Français, en 1932, c’est vivre crucifié. La France est en pleine décomposition.” Eu digo: “ser patriota e ser português, em 2015, é viver crucificado. Portugal está em plena decomposição.” Repito: crucificado, sim, mas não deprimido. Não dou para esse peditório. Sem ilusões, mas também sem tristeza e sem lágrimas. Portugal, em 2015, está em decomposição avançada ( e a Europa não está melhor)."
Eugénio Lisboa, in "Acta Est Fabula, Memórias-V- Regresso a Portugal, (1995-2015), Editora Opera Omnia, Outubro de 2015, pp.229-232

*Eugénio Lisboa já publicou dois volumes do  seu Diário , sob o título " Aperto Libro". No prelo, estão três volumes que completarão este magnífico registo diarístico.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

A Origem do Conto do Vigário

UM GRANDE PORTUGUÊS
por Fernando Pessoa
"Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.
Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa. 
Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Sr. Vigário, tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar. O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.». «Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.» O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.
Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos, negociantes de gado como ele, a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis. No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem.
Houve então a troca de outro olhar.
O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais para elas. O Vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho.
Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão. Ditava ele o recibo, disse, pois queria as cousas todas certas. E ditou o recibo — um recibo de bêbado, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano, e «estando nós a jantar» (e por ali fora com toda a prolixidade frouxa do bêbado...), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto de réis em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e daí a um tempo foi-se embora.
Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a primeira nota, o que ia a recebê-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez à segunda e à terceira... E os irmãos, olhando então verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar.
Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora inocente, estivesse perdido.
Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. «E se eu tivesse pago em notas de cem», rematou o Vigário, «nem eu estava tão bêbado que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens honrados, mas receberiam.» E, como era de justiça, foi mandado em paz.
O caso, porém, não pôde ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a história do «conto de réis do Manuel Vigário» passou, abreviada, para a imortalidade quotidiana, esquecida já da sua origem.
Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do estratagema exemplar. Por isso é com ternura que relembro o feito deste grande português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para os hábeis, como constou que o havia para os bons, ali lhe não deve ter faltado o acolhimento dos próprios grandes mestres da Realidade — nem um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso momentâneo de George Savile, Marquês de Halifax. "
                                                                                    1926 
Fernando Pessoa.Ficção e Teatro.  (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986 - 95. 
1ª publ. in Sol, nº1. Lisboa: 30-10-1926; 2ª publ. in Notícias Ilustrado , 2ª série. Lisboa: 18-8-29, com o título “A Origem do Conto do Vigário”

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Os prodígios portugueses


Onésimo Teotónio Almeida. Os prodígios portugueses foram revolucionários? 
por Pedro Miranda 
"Qual a participação dos portugueses no contexto universal das ciências, no século XVI? Eis a grande questão que se coloca Onésimo Teotónio Almeida e à qual, em definitivo, tenta responder no multipremiado livro “O Século dos Prodígios. A Ciência no Portugal da Expansão”.
1. Nem em/com Portugal se tinha dado uma revolução científica antes daquela (propriamente dita), reconhecida oficialmente, em Galileu e Newton, no século XVII – como pretenderiam alguns historiadores nacionais -, nem, muito menos, Portugal pode ser esquecido ou ignorado, como o é pela generalidade da historiografia anglo-americana, no que aos importantíssimos impulsos à ciência - que a expansão marítima nacional alcançou, nos séculos XV e XVI -, diz respeito. É este entendimento – in medio virtus, recusando sub e sobrevalorização do empreendimento luso no que ao aduzir à ciência importa - que leva Onésimo Teotónio de Almeida a rever o estado da arte – que específico contributo português no que à ciência concerne, durante o seu período de Expansão, e respectiva valoração no quadro global do acquis de sucessos científicos e de mentalidades/forma mentis então prevalecentes? - em um conjunto de ensaios recolhidos em “O Século dos Prodígios. A Ciência no Portugal da Expansão” (Quetzal, 2018), multipremiado livro (Prémio Gulbenkian, História da Presença de Portugal no Mundo (atribuído pela Academia Portuguesa de História); Prémio Mariano Gago (atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores); Prémio D. Diniz, da Fundação Casa de Mateus, Prémio John dos Passos, atribuído pela Secretaria Regional da Cultura), do Professor na Universidade de Brown.
2. Durante a Alta Idade Média, o enfoque na natureza e no conhecimento empírico desta adquire certa proeminência nos (melhores) espíritos. Ora, um dos momentos/expoentes dessa viragem para a noção da experiência como “madre de todas as cousas” teve lugar em Portugal, durante o Período da Expansão. A experiência, em realidade, levada, já, em linha de conta por Aristóteles e Galeno é, agora, revalorizada. Todavia, não pode falar-se, ainda, em revolução científica.
3. Expressão crescentemente polémica no nosso espaço público, com ganhos de grande visibilidade em anos recentes – embora a sua controversão recue bem mais no tempo -, a palavra “Descobrimentos” é usada por Onésimo Teotónio Almeida, neste contexto. Sabendo, claro, que os “descobrimentos” são-no do ponto de vista europeu - a Europa Ocidental descobriu que havia mais mundos para além do seu -, ainda que, evidentemente, os povos há muito existissem e se encontrassem em latitudes a que só então (sécs.XV/ XVI) os portugueses – os europeus - conseguiam aceder, e contactos com outras zonas culturais – prévios, por parte de tais povos - podiam estabelecer-se; uso, ademais, do vocábulo “descobrimentos”, porque, sem as “descobertas” científicas a Expansão portuguesa não poderia ter ocorrido - e, além do mais, “descobertas”, pois, porque “nunca fui dado a purismos linguísticos (puritanismos?) e não é com esta idade que vou começar a sê-lo”, p.29).
4. Frente a uma «pré-ruptura epistemológica» de que os Portugueses teriam sido parteiros, e que culminaria na revolução científica do século XVII – tese do historiador Barradas de Carvalho, o qual, bem como sua obra, não deixa de ser elogiada, na globalidade, por Onésimo Teotónio Almeida que, no entanto, lhe aponta a sobrevalorização e não correcta ponderação/interpretação dos êxitos portugueses no todo do então concebido/conhecido em termos internacionais -, opõe o Professor da Brown a noção de que esse tempo é descontínuo e recua muito mais no tempo e que, portanto, não se dão suficientes razões para se aceitar a ideia de estarmos perante uma “revolução em gestação”. Um exemplo muito claro: 300 anos antes de Duarte Pacheco Pereira, já Roger Bacon se tinha referido à experiência como critério de verdade, pelo que a importância de Duarte Pacheco Pereira fica confinada, neste específico item, ao caso português (p.41). Segundo Onésimo Teotónio Almeida, a história do conceito de “experiência” é vastíssima e começa, sem exagero, um milénio antes do que diz Barradas de Carvalho (p.45). Em Aristóteles, é certo, a “experiência” seria sinónimo de “acumulação de experiências”, enquanto em Duarte Pacheco Pereira (e no seu “Esmeraldo De Situ Orbis”, uma “obra notável, nunca mencionada em nenhum livro de história da ciência escrito por um autor não lusófono”, p.139) traduzir-se-á por “conhecimento que advém dos sentidos”. E, todavia, já Galeno chamava a atenção para a importância dos “experimentos”, sendo, pois, que Galeno e Aristóteles usam o mesmo método que (é utilizado por) Duarte Pacheco Pereira (p.49). É, ainda, para consumo interno, segundo Onésimo, a importância de Pacheco Pereira no uso (em maior quantidade) dos números árabes face aos romanos. Ineditismo, pois, só houve, no contexto português, dado que, efectivamente, a percentagem de algarismos árabes usada até ao século XVI, no nosso país, é pequena; a sua divulgação é devida a estrangeiros; os introdutores são homens ligados ao comércio e á navegação (p.53). Todavia, fora de Portugal, já há textos a utilizar apenas numeração árabe no século XII – e, aí por volta de 1400, estes encontram-se generalizados, em termos europeus, nomeadamente em tratados de ciência, astronomia. 
5. Qual a participação dos portugueses no contexto universal das ciências, no século XVI?, eis, pois, a grande questão que se coloca e à qual, em definitivo, interessa responder. Onésimo Teotónio Almeida louva-se na síntese de Jaime Cortesão, elogiando também os trabalhos do historiador Joaquim Bensaúde (p.68). Os portugueses foram:
- criadores da ciência náutica; 
- inventores do navio próprio para os Descobrimentos – a Caravela; 
- adaptadores do astrolábio – instrumento que devemos aos árabes (p.156) - aos usos da navegação, nomeadamente para determinar a posição das Descobertas;
- forjadores de novas estradas nos oceanos;
- estabelecedores do roteiro de todos os mares e de todos os ramos da rosa dos ventos.
6. Se Garcia da Orta fixou os fundamentos da medicina tropical e Pedro Nunes aperfeiçoou a tradição da navegação científica, da astronomia e da matemática, porém, considera Oliveira Marques, estes cientistas eram poucos e o seu experimentalismo nunca ultrapassou a fase empírica sistemática. Sendo que, no dizer de W.G.L. Randles o peso dos modelos bíblico aristotélico, da dinâmica dos graves de Lactâncio ou da geografia de Ptolomeu, ou seja, os “utensílios mentais” não permitem àqueles renascentistas uma completa renúncia ao modelo clássico e aceitação total do modelo empírico. De aí não se poder falar em «pré-ruptura epistemológica». Não há uma atitude completamente inovadora; há uma extensão, um alargamento de horizontes, um crescimento de dados que, mais tarde, sim, possibilitarão a rutura (p.70):
- o contributo português dá-se ao nível da observação, da constatação empírica;
- excepto na astronomia, cartografia e geografia, não se vai além da descrição causal. Não se produz uma elaboração sistemática ou pelo menos compendiada;
- realizam-se poucos experimentos. Buscam-se soluções apenas para as dificuldades (a necessidade do Know how chega a impulsionar o to know that na gesta portuguesa; o desejo de saber subjaz a uma preocupação utilitarista, p.242); 
- raramente surgem generalizações nomológicas, porque os dados empíricos raramente são coligidos meticulosamente ou consequentemente classificados; 
- tão-pouco surge uma elaboração teórica que tome os dados empíricos e as leis, ou quase-leis, com base neles formuladas. 
Eis a súmula de Onésimo Teotónio Almeida, que refere, adicionalmente, que na Biologia, na Botânica e na Etnografia o avanço português foi muito precário. Numa palavra, a revolução científica do século XVII terá recebido em Portugal um “prévio e significativo impuslo”(p.84), mesmo que não constitua, ainda, uma exata ruptura epistemológica com o modelo clássico que herda e de que participa. Neste revisitar do legado que homens como Garcia da Orta, Pedro Nunes, Duarte Pacheco Pereira, João de Castro, Fernando Oliveira deixaram (compulsando-se as suas obras, como com afinco fizeram Luís de Albuquerque, Francisco Contente Domingues ou Henrique Leitão) terá, contudo, de reconhecer-se nestes (p.87):
- a rejeição dos antigos [nomeadamente, da Antiguidade Clássica] per se [por exemplo, Garcia da Orta foi ao ponto de escrever: “aprende-se mais com os portugueses num só dia, do que em cem anos com os Romanos”, p.106);
- aceitação da experiência como critério de verdade; 
- desenvolvimento de uma perspectiva e metodologia científicas; 
- interface de teoria e prática entre eruditos, artesãos e marinheiros;
- consciência generalizada da importância dos novos conhecimentos adquiridos pelos navegadores portugueses.
A necessidade de tradução das nossas melhores obras na área da História, quanto ao contributo português para o impulso da – de uma nova – ciência, é imperativo, considera o ensaísta, assim responsabilizando-nos, também, pela escassa divulgação internacional de tais feitos (são necessários “editores em língua inglesa” para divulgar a ciência portuguesa, p.191). 
De entre os não muito numerosos historiadores internacionais, como se vem de dizer, que atentaram, devidamente, no papel dos Portugueses no avanço e impulso para (o que veio a ser) a revolução científica do século XVII, Onésimo Teotónio Almeida destaca Hooykaas, o holandês que entende que uma atitude científica como a de D. João de Castro é raro de observar antes deste em qualquer parte da Europa – que, não obstante, segue a mundividência aristotélica, com o seu modelo organicista face ao modelo mecanicista de Newton e Galileu (p.117); trata-se de uma “figura emblemática, representando um estado intermédio entre o antigo e o moderno, nas ciências naturais”(p.117) -, e observa como única a relação entre pensadores e homens de acção, no nosso país, sendo certo que o nosso contributo não foi o de avanços teóricos (p.114). 
Tomando este acervo de sublinhados, dir-se-ia que se impõe, de novo, um balanço sobre o que se passou em Portugal enquanto espelho do que se passa com a ciência (de um modo geral) (p.118):
- a ciência avança por impulsos; 
- há uma sobreposição de paradigmas em conflito;
- criações paralelas e redescobertas por desconhecimento de criações prévias;
- desenvolvimento desigual das ciências individualmente consideradas.
7. A mentalidade destes homens portugueses de quinhentos irá repercutir-se inclusivamente em homens da Literatura. Teotónio de Almeida aprofunda a intuição de António José Saraiva quanto à modernidade, e a especificidade nesse âmbito, do canto V de “Os Lusíadas”, contraria J.S.Silva Dias - que repreendera o poeta por este não estar informado acerca da mudança representada pela consciência da importância de se conhecer o mundo empiricamente -, e conclui que apenas de Pedro Nunes não revela, Luís Vaz de Camões, conhecimento. Ele que se encontrará com Garcia da Orta na Índia (p.220). Um dos ensaios, este sobre a modernidade de Camões plasmada no Canto V d’Os Lusíadas que convidam, e de que maneira, à leitura dos prodígios de Onésimo.
Ao seu jeito, despede-nos com um texto seu, inserto no Diário de Notícias, de 1989, onde compendiava uma série de prémios, atribuídos em Portugal (quantos adstritos à Literatura, quantos às Ciências) que mostravam o nosso pendor para valorizar mais a literatura do que as ciências (embora hoje, porventura, dificilmente as estatísticas fossem semelhantes, o que também ilustra um caminho percorrido) e afiança-nos, sobre o nosso descuido com o “empírico”, que quase sempre - antes dele, a anteceder tal vocábulo - antepomos um advérbio de modo: meramente. Meramente empírico."
Pedro Miranda, em artigo publicado no Jornal i, em 9.08.2020