A
Floresta Adormecida
por
Raul Brandão
30
de Junho (1926)
“As
Flores e o Corvo erguem-se uma defronte da outra, separadas por um canal de quinze
milhas, o Corvo espesso e nu, as Flores violeta e verde com rochas violetas e
os cimos dum pasto delicado. Pelos altos das falésias povoações esparsas, o
Monte, a Fazenda,
Cedros, Ponta Ruiva, entre colinas arredondadas e renques de hortenses que dividem
os campos. Lá para o fundo três pináculos escuros e mais longe alguns cerros de
um azul quase negro. A
costa vai-se aproximando com saliências e negrumes, e o verde tenro das ervas cada
vez mais tenro, destacando-se da massa espessa, onde emergem os píncaros cada vez
mais escuros. Um esguicho de sol cai de entre nuvens pesadas, ilumina e doira, desfaz-se
em poeira sobre o primeiro piano, enquanto o outro se conserva esfumado. Mais
pesada é a massa dos montes, o recorte dos penedos; só a água dum verde-claro estremece
a meus pés. Entramos pelas rochas afiadas do porto de Santa Cruz. Duas outras
ruas muito limpas, a igreja, a praça, o convento, e logo por trás uma colina esmeralda
de formas regulares e perfeitas como um seio túmido apontando o bico para o céu.
1 de Julho
Hoje,
outro dia enevoado. Com este tempo turvo, amanhece tudo cheio de orvalho,
as árvores, os milhos, o trevo em flor, as fitas prateadas da erva, cujas
hastes estremecem
e não podem com o peso. Olho num espanto a volúpia do monte verde cortado
por sebes azuis de hortenses, com uma grande nuvem cor de chumbo em cima; a
falésia monstruosa em roxo e verde, a luz carregada de humidade com clarões esbranquiçados
de nevoeiro, que alastram e se desfazem em névoa peneirada e fina; o Corvo ao
longe, desaparecendo na humidade e reaparecendo, quando a cortina se descerra
– a fisionomia estranha da terra, a vida efémera da água, da chuva e do tempo fantasmagórico.
O carácter desta paisagem é a serenidade com uma pontinha de tristeza...Sempre.
enevoada e fresca, húmida, como aquele monte voluptuoso ao fundo, é uma
paisagem casta, que se oculta e revela, uma paisagem feminina no momento único em
que se desnuda com pudor. A chuva é leve, as névoas molhadas não passam de orvalho
doirado que o sol ilumina e atravessa. E quando cai (cai muitas vezes), é em borrifos
que vêm lá de cima de uma brancura, sobre o calor abafado. De repente aparece o
Sol – de repente tudo muda à vista, como um cenário, tornando-se difuso e
turvo.
As
nuvens nos Açores têm uma vida extraordinária, uma vida que não percebo bem!
Hoje uma sobre o Corvo lembra uma auréola magnética. Amontoam-se no horizonte,
surgem outras em bando, esguias nas extremidades, a que chamam baleotes e que
indicam mudança de tempo. Há-as escuras com claridades extraordinárias pelo
lado de trás; há-as que viajam no céu com importância de deuses... Tenho a
impressão de que há nas Flores a luz mais delicada dos Açores, a luz vaporizada
que se sensibiliza a todos os momentos. É talvez da cor, que é única, do pó
roxo, do verde dos pastos sempre tenro e uniforme – é talvez da mistura dos
nervos do mar, da chuva de Verão, do sol que se desfaz em oiro sobre tudo isto,
e destas nuvens mágicas que interceptam a luz ruborizando-se como grandes
velários de cor – para logo se desfazerem diante de meus olhos em arabescos, em
fios ténues, em farrapos... Todas as cores se fundem e acabam por se apagar em
cinzento, deixando só resquícios na atmosfera húmida. Nunca assim vi ambiente
tão rico em prestigio, sempre diverso e sempre em movimento. É o cinzento que
predomina – mas um cinzento colorido onde bóiam cores húmidas, principalmente o
verde e o violeta –jorrando, atabafando em pardo e violeta montes verdes a
escorrer. Éo que dá prestigio a esta terra molhada, onde o próprio sol parece
molhado molhado e doirado, tão leve que mal trespassa o cinzento... Então, um
momento iluminado, o panorama
respira, arfa devagarinho como um seio, ainda orvalhado do banho e aquecido pelo
Verão, ruborizado e sorrindo por ter de despir a camisa diante da gente. Outras
vezes tudo desaparece ou toma proporções fantasmagóricas e a água goteja
doirada. Água, ar e bruma intimamente se casam para produzirem esta impressão
casta e cinzenta ou toda violeta como a obra de arte de uma individualidade
estranha.
Esta
atmosfera explica que a ilha esteja quase toda a regime pastoril. Deixam de cultivar
os campos para obter mais erva: é o menor esforço. O gado que não dá leite, farta-se
e engorda para o mercado. Anda durante o Verão, dia e noite, nas relvas; só
de Inverno o trazem para a porta e o metem nos palheiros. Quase não há
lavrador, mesmo pobre, que não tenha três vacas leiteiras. Erva – erva – erva
fofa que cresce, é logo devorada e sai pelas tetas dos bichos. De todo este
verde casto brota, incha, corre um jorro constante de leite que todos os dias
se transforma em manteiga. Não se vê correr como as águas da Fazenda ou da
Ribeira, mas o seu volume é muito maior. Carne e leite, eis o resultado do
calor abafadiço e da nuvem persistente que cobre a ilha e não a larga,
amornando-a e humedecendo-a. Todas as aldeias do litoral, viradas para o mar, têm
uma dúzia de campos de milho e de batata-doce e cultivam alguns olheiros de inhames
necessários para a sua alimentação. O resto é pasto. À volta e sempre, relvas, ondulações
verdes de colinas. Dão leite os montes e vales, e até dão leite as crateras dos
pacíficos vulcões, que às vezes abrigam uma aldeia no seio. Um grande jorro
branco corre de toda a parte para as fábricas, se transforma em manteiga e é
embarcado para esse mundo. A grande canseira da lavoura florentina é ordenhar
duas vezes por dia as vacas enormes que trazem a rasto um úbere monstruoso como
uma doença. Da transparência verde e oiro, mágica e aérea, toda molhada e
calma, com grandes píncaros aparecendo e desaparecendo nas nuvens desgrenhadas
– quase imaterial – sai leite branco e tépido, como se o ar, o verde, a chuva,
os clarões esbranquiçados, a atmosfera móvel, se convertessem em leite, e esta
fantasmagoria cinzenta e roxa que a gente só vê nas nuvens fugidias, doiradas
pelo sol e que arremedam todas as imagens, fosse gerada de propósito para ama
de criação. Tudo tende para o mesmo fim. A erva vê-se crescer dum dia para o
outro, regada pelo céu e sob uma luz velada de estufa. Por isso aquele grande
monte voluptuoso se me afigura simbólico. É um seio que se tumifica: do bico apontado
para o céu escorre um jorro perene de leite.
(…)
Subo
lá acima àquele seio túmido e doirado, cuja pele atinge a magnificência dos veludos.
Lá do alto abrange-se parte da ilha, os vales cheios de árvores, a costa recortada,
os grandes plainos do fundo retalhados como uma manta pobre, farrapo mais claro
de trigo, farrapo amarelo de centeio já maduro. Às vezes vem do mar um chuveiro
e toda a amplidão desmaia ou se turva e afasta. Entre a cortina vaporosa
distingo o dorso arredondado das relvas, uma casota branca donde irrompe um
cedro dum verde de sepulcro, riscos escuros de pinheirais, e pouco a pouco
desvendando-se, toda a amplidão sossegada, o anfiteatro da Ribeira de
Barqueiros, a chapada quase negra da falésia, o Corvo violeta, e a meus pés a
vila em relevo. A impressão é de frescura e calma, de névoas misturadas de
oiro. Esta paisagem molhada e verde é vaga como um sonho: entreabre-se,
fecha-se, sorri e adormece... Um silêncio enorme (todos os ruídos são abafados
pela névoa), uma amplidão de ervas gotejando, uma luz serena e toldada.
Duas
estradinhas de alguns quilómetros acabam logo ali, uma no Boqueirão, outra na
Ribeira da Cruz, seguindo por entre casinhas brancas, quintalejos, hortas,
milhos envernizados
de novo, renques de faias formando abrigo para o vento. Pastos e mais pastos,
e os tourinhos deitados na erva com a barriga cheia e que já não podem comer mais.
Todos os bichos estão fartos. Dos taludes rebentam moutas de sardinheiras, pés
de malvões ou de hortenses viçosas. Mais postos sempre... É o paraíso das
vacas: negras, amarelas, malhadas, com uma grande dignidade e o sentimento da
sua importância, tomam o caminho, com o extremo das pontas doirado e os úberes
enormes a rasto pelo chão. Outras afogam-se na erva tenra e comem e digerem,
dormem e comem de dia e de noite, olhando quem passa com desprezo. Por um
rasgão vê-se o mar espelhado onde a luz esbranquiçada das nuvens se reflecte, e
lá no fundo a Ribeira de Barqueiros com um biombo de montes muito verdes. Todos
os tons do verde estão aqui representados, cheios de viço e frescura − o
verde-azul e derretido nos fundos, o verde-escuro dos lagos de inhames,
o verde macio das relvas, o verde-negro das faias, apagados e fundidos no
orvalho. Em direcção oposta segue outra estrada pelas Alfavacas, cultivadas a
milho, a batata-doce e a tabaco, disposto em linhas regulares e com as folhas
pontiagudas entreabertas. Sempre a mesma humidade e a mesma cor... E este verde
sossegado insinua-se pouco e pouco e pacifica. Fica-nos na retina a cor verde e
nos ouvidos a flauta afastada dos melros que assobiam sem interrupção no
arvoredo formando biombo aos campos de milho. Esta linda estrada estaca de
repente diante da falésia e em frente da baiazinha de S. Pedro. Espero o pôr do
Sol doirado por trás das nuvens cinzentas, espero a irrealidade do crepúsculo
nesta luz sempre cheia de surpresas. A costa para o nascente desdobra-se em
cinzento, em roxo e negro no primeiro plano, com uma grande nuvem cor de chumbo
a desfazer-se-lhe em cima e um rasgão de céu mais alto e claro, de planície
etérea cor-de-rosa. Da névoa esfarrapada sai um clarão de fogo – riscos de oiro
atravessam a poeira incendiando tudo em explosão. Por baixo a falésia alta
derruba-se sobre o mar, com filamentos verdes derretidos nas águas. No segundo
plano o azul mistura-se ao roxo e ao negro requeimado de grandes penedos. E
no fundo anda pó verde do mar entranhado no pó roxo que dilui tudo na mesma tonalidade
– as águas, o céu, as rochas aguçadas e dramáticas. Mais um momento e o drama
chega ao auge: um crepúsculo em que a gente vê as cores despenharem-se num abismo
uma atrás da outra – o azul, o roxo, o lilás, enquanto o horizonte se
incendeia.
Tudo isto, diante dos meus
olhos deslumbrados, escurece, torna-se violeta, afoga-se em névoa, morre num
estertor violeta e cinzento. E, por trás dos montes já negros, levanta-se, aumenta
e nunca mais cessa a fumarada prodigiosa das nuvens...”
Raul
Brandão, in As Ilhas
Desconhecidas, Quetzal Editores
"Este livro é feito com notas de viagem, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões. Tinha ouvido a um oficial de marinha que a paisagem do arquipélago valia a do Japão. E talvez valha... Não poder eu pintar com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nas leitores o desejo de os verem com os seus próprios olhos!..."
1926.
R.B ( Raul Brandão)
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