terça-feira, 30 de março de 2021

Os Maias – uma obra desmedida?

Eça de Queirós

Os Maias – uma obra desmedida?
por Eugénio Lisboa
"Ao lançar, em 1888, após longos anos de labor, o romance Os Maias, Eça de Queirós estava bem consciente de ter produzido uma obra diferente de tudo quanto, até aí, tinha feito. Cortando claramente com o modelo de romance francês – curto, linear e dramático – Eça, n’Os Maias, arrastava a asa às vastas construções romanescas dos grandes romancistas ingleses, Dickens, Thackeray, Geoge Eliot… Obras de grande dimensão e de “tempo lento”, dentro das quais o leitor era aprisionado e tornado cúmplice daquela paróquia ficcional - quase um habitante dela.
O mais interessante é que Eça, um dissimulador nato, como penetrantemente observou o seu biógrafo Alfredo Campos Matos, iria “fingir”, junto dos amigos mais chegados, que via, nessa “vasta machine” que eram Os Maias, um grande “defeito”: o seu desmedido tamanho. Em carta a Oliveira Martins, datada de 12.6.1888, por exemplo, observa: “Os Maias saíram uma coisa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes.” E, com falsa modéstia, aconselhava o amigo: “Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos demais para ler.” E indicava os episódios do romance que merecia a pena ler, deixando de lado o resto, para não andar “a procurar através daquela imensa massa de prosa.” Em carta a Fialho de Almeida, datada de 8.8.1888, refere-se ao livro chamando-lhe, sucessivamente, “calhamaço” e “grosso cartapácio”. E, em carta a Luís de Magalhães, datada de 10.5.1884, diz o seguinte, em tom de franco auto-denegrimento: “Eu continuo com Os Maias, essa vasta machine, com proporções enfadonhamente monumentais de pintura a fresco, toda trabalhada em tons pardos, pomposa e vã e que me há-de talvez valer o nome de Miguel Ângelo da sensaboria.”
Todo este exercício de auto-apoucamento é, evidentemente, insincero. Ninguém iria dedicar tantos anos de esforçado e obstinado labor a uma obra que tão pouco prezasse. Eça metera ombros à construção desta “vasta machine”, consciente de que a sua grande dimensão era um valor e não um acidente de percurso. José Régio, que também amara a leitura dos longos romances e até empreendera escrever um – A Velha Casa - , aludia a esse “sentimento de intimidade que muitas vezes procuro nos longos romances.” E, falando também dos longos romances de Tolstoi, que tanto admirava, dizia que estes lhe davam “um prazer quase físico.” Por outro lado, Flaubert, igualmente amante e construtor de “vastes machines”, observava: “Les chefs.d’oeuvre sont bêtes; ils ont la mine tranquille comme les productions même de la nature, comme les grands animaux et les montagnes.” E acrescentava que a Bovary andava “a passo de tartaruga”. Citando precisamente esta passagem, no admirável prefácio que escreveu para a edição da Pléiade da obra de Martin du Gard, Albert Camus observava que, sim, que as obras-primas têm a “aparência tranquila” mas que, “no seu sangue correm sempre estranhos e jovens ardores.” Na sua quase imobilidade de “grande animal”, Os Maias, cuja acção avança também a passo de tartaruga e que oferecem ao leitor desprevenido “une mine tranquille” – escondem, no seu interior, paixões e ardores incontidos.
Era esta dimensão dos longos romances, dentro dos quais o leitor apetecidamente se demorava, que Régio tanto viria a apreciar no romance inglês e o levaria a dizer, num depoimento feito, nos anos 60, para Jorge de Sena: “Pelo que da literatura inglesa conheço através de traduções, parece-me que um seu melhor conhecimento me interessaria muito. Porventura não menos que o da literatura francesa. Leio romances ingleses com profundo gosto. Eles me dão esse sentimento de intimidade a que referi numa resposta anterior.” De facto, o romance longo permite-nos um prolongado convívio com os vários personagens e, mais ainda, um convívio presencial e não apenas alusivo. No seu notabilíssimo livro, Ideas sobre le Novela, Ortega y Gasset observa: “Esta distinção entre mera alusão e autêntica presença é, no meu entender, decisiva em toda a arte, mas muito especialmente no romance.”
Em todo o romance mas, especialmente no romance longo – onde há tempo e espaço disponíveis – mão se define um personagem, isto é, não se alude a ele, dizendo, por exemplo, que é engraçado, ou ridículo ou melancólico: o romancista, como ironicamente nota Gasset, deve mostrá-lo a ser engraçado, ou ridículo ou melancólico. Eça, n’Os Maias, não diz que o Ega é espirituoso ou que o Alencar é ridículo: mostra-os no acto de serem, um, espirituoso, o outro, ridículo. Ao romance, mas, sobretudo, ao romance longo, como diz Ortega, “move-o um magnífico apetite de ver.” É o que faz Eça n’Os Maias, onde nos movemos de uma acção para a seguinte, submetendo-nos, pelo meio, a um longo intervalo de paragem, que nos permite termos connosco, duradouramente, os personagens em acção de presença e aprofundamento.
Os Maias são, com efeito, um grande animal que se move lentamente, com longos períodos de “paragem”, entre dois picos de acção e emoção. Por exemplo, no período de “paragem” que imediatamente precede a cena intensa em que Ega, assistido por Cruges, humilha e desfeiteia o Dâmaso, nessa longa e quase exasperante cena de “paragem”, que tem lugar no Grémio Literário, a narrativa oferece-nos, generosamente, as presenças de Gouvarinho, Steinbroken, de Carlos, de Ega, que, diante do leitor, se demoram, quase sadicamente, enquanto este – o leitor - aguarda, com impaciência, o encontro vingador de Ega com Dâmaso. Nestes momentos de “paragem” do romance, o narrador permite um alargado convívio com personagens do romance, que nos vão sendo “mostrados” em acção, desvendando-nos, pelo que dizem e fazem – e não pelo que delas pudesse dizer o narrador – cada vez mais, um pouco da sua natureza e carácter. É nesses momentos em que a acção desacelera e a “autêntica presença” das personagens se impõe ao convívio com o leitor, que este se sente fazer, gradativamente mais, parte daquela “paróquia” ficcional. “A táctica do autor”, observa Ortega y Gasset no seu livro seminal, “há-de consistir em isolar o leitor do seu horizonte real e aprisioná-lo num pequeno horizonte hermético e imaginário que é o âmbito interior do romance. Numa palavra, tem que aldeá-lo, lograr que se interesse por aquela gente que lhe apresenta, a qual, por mais admirável que fosse, não poderia colidir com os seres de carne e osso que rodeiam o leitor e solicitam constantemente o seu interesse.” Eis o que consegue o narrador de Os Maias: pela duração prolongada da narrativa, que muito lentamente progride – a passo de tartaruga - , vai tornando o leitor um “provinciano” daquela província ficcional que é o universo do romance: um habitante dela, um cúmplice das suas intrigas, conversas e polémicas, um verdadeiro paroquiano daquela paróquia ficcional. Trata-se, em suma, de sonambulizar o leitor, de o “fechar” dentro do universo do romance, cortando-lhe todas as saídas para o universo real de que ele se ausentou ao mergulhar na leitura.
De tal forma, n’Os Maias, Eça consegue construir esse mundo hermético, capaz de, para dentro dele, capturar o leitor, que não resisto a contar aqui uma prodigiosa experiência pessoal. Quando, em Janeiro de 1977, fui viver e trabalhar em Estocolmo, no primeiro dia em que me dirigi à universidade, senti-me profundamente desorientado por toda aquela cidade soterrada na neve: tudo, jardins, ruas, parques, se encontrava tapado, feito um universo branco, álgido, uma beleza diferente de tudo quanto até então conhecera. Vindo de uma África encharcada de sol e de calor (e profundamente destapada) para aquele manto de branquidão densa, senti-me completamente alienado, quase perdido, como um náufrago sem costa à vista. De tal forma me senti sufocado que pensei: se não encontro depressa algo que me devolva àqueles mundos em que já vivi, se não mergulho rapidamente num mundo meu, num mundo que conheço e identifico, estou completamente perdido… E foi então que, com um grande sentimento de urgência, me dirigi à directora do departamento de Românicas da universidade e, sem hesitar, lhe perguntei: “Tem aqui, na biblioteca do departamento, alguma edição de Os Maias, de Eça de Queirós?” Disse-me que sim, que tinha uma, mesmo ali à mão, e entregou-ma. Agarrei nela, quase com sofreguidão e levei-a para o meu apartamento. Nessa mesma noite, depois de ter jantado, mergulhei, com apetite devorador, na leitura do romance: o reentrar naquele conhecido universo lisboeta, que eu tão bem conhecia, de outras leituras anteriores, desviou-me, com força salutar, daquela brancura alienante da cidade sueca, que me estava a sufocar. Li, pela noite dentro, com a sensação de me estar a salvar, a voltar à normalidade, ao reinserir-me naquele universo ficcional, que era tão vivo, tão mais real – naquele momento – do que a cidade coberta de neve em que me encontrava a viver. Mas o mais curioso foi que, quando, ao fim de dois ou três dias, acabei a leitura, minha mulher, que se encontrava a meu lado, me pediu o livro, nestes termos: “Também estou precisada de reler Os Maias: passa-mos cá…” E foi a vez dela de mergulhar, salvificamente, no universo ficcional do mago da Póvoa de Varzim. É que Eça criara de facto um mundo alternativo em que a duração permite saturar o leitor com a presença obstinada dos personagens, que se tornam familiares e como que reais, naquele universo ficcional que devém também mais real do que a realidade circundante (para a qual o leitor se fecha). A dimensão de Os Maias, repito, não foi um acidente de percurso, não foi algo de defeituoso que resultou de o autor não ter conseguido fazer o romance mais curto. Mais de um crítico contemporâneo da publicação do livro fez o diagnóstico errado, ao sugerir que, em vez dos dois grossos e desmedidos volumes da obra, Eça teria podido e devido tirar dali vários romances mais pequenos… A extensão do romance teria sido, segundo eles, um percalço. Nenhum se apercebeu de que aquele “tempo lento”, aquele arrastado mover-se a passo de tartaruga, aquela quase imobilidade de elefante ou de grande montanha – era o grande valor do livro. Era essa duração obstinada que permitia ao narrador criar aquele universo hermético, pletórico de criaturas duradouramente presentes ao convívio com o leitor, o qual leitor acabava por se tornar, de direito, um personagem daquela paróquia ficcional."
Ensaio de  Eugénio Lisboa 

segunda-feira, 29 de março de 2021

domingo, 28 de março de 2021

Ao Domingo Há Música


... tudo isso nos acompanha até a morte e forma como o cerne, o tutano dos ossos da própria alma.
                   Miguel  de Unamuno, Andanzas y Visiones Españolas
                                       
Nem sempre os dias são solares, luminosos. Nem sempre os olhos permitem divisar para além da luz que teima em chegar. Há o intervalo entre o que é , o que há e aquilo que se aceita. E é nesse momento que se sente a verdadeira condição humana. Poder ser o que somos, sonhando  por vezes o que se poderia ter sido mas se não foi para poder ser o que hoje se é. Miguel de Unamuno disse-o magistralmente, em Andanzas y Visiones Española, quando chegou ao  topo da Peña de Francia: Ali em cima, envolto pelo silêncio, sonhava com todos os que, havendo podido ser, não fui para poder ser o que hoje sou. (...)Ali, no topo, ali sim, se parece a vida um sonho e um sopro (...) Ali em cima, no cume da Peña de Francia , sentia cair as horas, fio a fio, gota a gota, na eternidade, como a chuva sobre o mar. Melhor do que gota eu diria floco a floco, pois caíam silenciosas, como cai a neve, e brancas. É sobretudo do silêncio o que ali se goza.
Não seremos capitosos nas palavras como o grande Unamuno. Sabemos, porém, quão grandiosa pode ser a música e quantas respostas  pode dar para iluminar momentos, dias que compõem a nossa vida.
  
Hélène Grimaud, em Concerto nº 23 para Piano e Orquestra, 2. Adagio, de Wolfgang Amadeus Mozart, acompanhada pela Chamber Orchestra of the Bavarian Radio , sob a direcção do Maestro Radoslaw Szulc.
Kathia Buniatishvili, em Un Violon sur le Sable , Concerto n°2 ,  primeira parte, de Sergei  Rachmaninov (1873-1943).
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sábado, 27 de março de 2021

Era o amor latindo dentro de casa


Para quem já passou pela dor de chorar um cão
Por Eberth Vêncio
"Era amor. Era uma dor diferente, assim, de média para grande, se é que me entendem. Para todos os efeitos, a dor firme e forte. Não era a perda de um parente, de um amigo, de um colega de trabalho. Era o fim da velha fidelidade canina, uma coisa difícil de explicar, um sentimento de afecto mais legítimo do que o de algumas pessoas que eu cria serem confiáveis. Já fui mordido por gente inúmeras vezes. Outro dia mesmo, enquanto me fazia uma visita, um cunhado (cunhados sendo cunhados) vociferou que criar animais de estimação é  um completo absurdo, pois, eles, os bichos, aumentam sobremaneira a emissão de carbono para a atmosfera, além de representar um gasto supérfluo às famílias, movimentando um mercado pet de milhões de reais, blá-blá-blá, blá-blá-blá. Queria que Lola o mordesse na canela, mas, ela não mordia ninguém. Nesse quesito, era mais civilizada do que eu.
Estou de brincadeira. Eu gosto do meu cunhado. Faz mais de 20 anos que estou pegando a irmã dele. Estou só tentando me acalmar, me recompor para continuar escrevendo. Esta é uma curta história de sofrimento, dentre tantas do corolário humano. Há mais tristeza que felicidade, isso é facto. Todo mundo carrega uma desgraça a tiracolo para jogar na roda e impressionar os convivas. Os seres humanos são dramáticos. Não somos como os cachorros. A gente gosta de florear as coisas, de criar comoção, de desfilar os percalços, como se eles fossem exclusivos. As dores são todas iguais, só mudam de endereço.
Acabo de chegar do pet shop. Lá, fui informado pela veterinária responsável pelo estabelecimento que Lola, a cadelinha, personagem assídua das minhas crónicas, tinha morrido.
— Como assim, “morreu?”, eu quis saber, abilolado, aturdido, pois ela aparentava gozar uma saúde de ferro. Era a morte me pegando com as calças nas mãos. Moça, por favor, não chore, eu pedi, com a voz embargada, louco de vontade de chorar junto.
— Ataque cardíaco, ela disse com o rosto ensopado.
— Como assim, “ataque cardíaco?”, eu pensava que isso era uma particularidade dos seres humanos.
Enquanto acariciava Lola morta sobre a bancada, apalpei, com minúcias, cada centímetro do seu corpo já enrijecido, para me certificar se havia ou se não havia algum sinal de ferimento, um hematoma, uma fratura, indícios de maus tratos. Isso é horrível, a gente desconfia das pessoas até nessas horas. Lucubrei que ela pudesse ter caído da maca ou ter sido eletrocutada, acidentalmente, durante a secagem do pelo. Sei lá. Quanta bobagem. Há muita criatividade e liberdade de expressão, em matéria de se conspirar. Apesar do sofrimento e da comoção coletiva dentro do pet shop, eu estava sendo eu mesmo, ou seja, aquele homem de sempre: centrado, aparentemente calmo, racional e capcioso, uma verdadeira lástima.
No final das contas, o que mais eu podia fazer senão aceitar, resignar-me frente as explicações fornecidas pela veterinária? Apesar de ser um animal jovem, Lola tinha sofrido um mal súbito, enquanto tomava banho. Um piripaque. Começou a babar, ficou ofegante e… Pimba! Uma arritmia. Um infarto, provavelmente. Quem diria: os cães também enfartavam. Esses bichos só faltavam falar mesmo, pois, enfartar eles já enfartavam. Estava ali a comprovação do fato. Apesar do fatídico e inesperado transtorno que acometeu a minha tarde, paguei a conta e parti. Claro: se eles eram tão inocentes quanto pareciam ser, não fazia o menor sentido que eu não os remunerasse. Era o trabalho deles. Não eram muito bons em dar más notícias, isso não, porém, era o trabalho deles. Aceitaram a grana com olhos inchados e sorrisos de constrangimento.
Consolei a minha companheira da forma que eu dei conta, nunca fui muito bom em acarinhar. Catei os trecos da Lola que estavam esparramados pela casa, guardei-os num depósito para, quem sabe, um dia, perdê-los. Não chorei, mas, fiquei triste, tão triste, que decidi escrever esse texto, uma espécie de tributo, não para Lola, uma cadelinha branca da raça “lhasa apso”, o animal mais feliz, dócil, brincalhão e adorável que conheci na vida, mas, àqueles que, melhor do que eu, entram de sola nos sentimentos, a ponto de amar os animais como se eles fossem alguém da família, às vezes, cometendo os excessos de que falou o meu querido cunhado. São essas as mesmas pessoas sensíveis que amam os amigos, os parentes (inclusive, os cunhados), um emprego, uma planta, um livro, uma banda de rock, um artista famoso do cinema, um desconhecido que pede ajuda.
Lola não era apenas uma cadela. Era o amor latindo dentro de casa, como se a alegria fosse durar para sempre. E todos nos já sabemos que isso, simplesmente, não é possível."
Eberth Vêncio, em Crónica publicada na Revista Bula 

sexta-feira, 26 de março de 2021

O paradoxo de Cordelia


 " Ao fim de mais de cinquenta anos passados a tentar ler a grande literatura e textos filosóficos com os meus alunos, há uma possibilidade que me assombra. Chamo-lhe o « paradoxo de Cordelia». Depois de lermos e relermos os actos III, IV e V  do Rei Lear, de assistirmos ao seu desempenho num palco, de tentarmos, ainda que imperfeitamente, elucidar e ponderar as experiências que lhes correspondem, acontece que o grito que se solta do texto ou em cena possui a nossa consciência. Enche o nosso ser. A ficção sobrepõe--se àquilo a  que Freud chamava o « princípio de realidade ».  O grito de um Lear torturado, a aflição de Gloucester e de Cordelia toldam o mundo. Não ouvimos o grito que se solta na rua. Ou , se o ouvimos, não o escutamos, e menos ainda correremos em auxílio daquele que o solta. Longe de humanizarem os nossos reflexos como pretenderam Aristóteles ou Mattew Arnold, a grande ficção , as obras-primas da arte, as melodias que nos fascinam, inibem a nossa responsabilidade  [ answerability] - termo fundamental - perante a necessidade humana imediata, perante o sofrimento e a injustiça. Através de um efeito mobilizador , podem desumanizar.  Saber se não será possível impregnarmo-nos da agonia de Lear, interiorizando-a e repercutindo-a, de modo a que as nossas capacidades cívicas e morais  se tornem mais efectivas, eis uma questão para a qual não tenho resposta. Tolstoi respondia-lhe pela negativa.
O que subjaz à crise das humanidades, no plano político, social ou psicológico, é a erosão da religião organizada a que de início me referi. A literacia tradicional e a cultura  e tipo de ensino a que deu origem assentavam , na realidade, em pressupostos e valores teológicos.  À medida que a nossa civilização passa a evoluir à deriva, a literacia torna-se incerta. Como o chamado «pós-modernismo» proclama, « vale tudo» . O que  não significa que deixaremos de produzir e ler livros, alguns dos quais estimáveis, de visitar museus  ou de construir  salas de concertos. Continuaremos, evidentemente, a fazer tudo isso. As audiências talvez cresçam.  É muito o que se pode ler na Internet, ou admirar em reprodução holográfica. Porque não faríamos um download   da Missa Solemnis? O pessimismo tem um veio snob. O que se passa é que semelhantes fontes de alegria, e os esforços que aceder-lhes implica, terão de competir, nos termos de uma escala comum de prestígio e apoios  económicos, com uma diversão de massa da espécie mais brutal e ensurdecedora, e com o desporto ( a teodiceia real  é a do tiro à baliza). A livraria séria ver-se-á em concorrência , em condições absurdas e viciadas, com o grande armazém pornográfico vizinho. Mandarins e artistas cada vez mais esporádicos multiplicarão esforços visando conquistar o estrelato no âmbito dos meios de comunicação de massa. Serão cada vez mais difíceis de alcançar as austeras condições auspiciosas da intimidade e do silêncio, bem como da impopularidade, das quais tantas vezes dependem o pensamento e a criação original. A democracia desconfia da solidão. É possível que os critérios  do supermercado comecem a aplicar até aos casos de Platão, Goethe ou Proust , o galicismo cínico e arrasador: ce n'est que de la littérature."
George Steiner,  in  Os livros que não escrevi, Gradiva Publicações, S. A., pp. 216,217,218

quinta-feira, 25 de março de 2021

Famous Blue Raincoat


Leonard Cohen é um nome maior da música contemporânea. Cantor, compositor, poeta tinha uma voz e uma marca inconfundíveis. Construiu uma imensa e magnífica obra. Desde  sempre, que me encanta ouvi-lo. Rememorá-lo é um redobrado prazer. 
Hoje reapresento-o em magnífico desempenho,  seguido de interpretações por  outras vozes que lhe prestaram tributo  na festa de homenagem , em 2017.
 
Leonard Cohen , em  Famous Blue Raincoat , num espectáculo em Dublin.
   
Aurora, em  Famous Blue Raincoat (Leonard Cohen-cover), no espectáculo de tributo a  Leonard Cohen,  "So Long, Leonard Cohen",  no  Oslo Spektrum,  em 25 de Abril de  2017.
 
Leonard Cohen, em  First We Take Manhattan, num espectáculo em Londres. 
 
Åse Kleveland & The Salmon Smokers , em  First We Take Manhattan, no espectáculo de tributo a  Leonard Cohen,  "So Long, Leonard Cohen",  no  Oslo Spektrum,  em 25 de Abril de  2017.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Tudo isto aconteceu

Guernica ,1937, Pablo Picasso 

Recordações da Guerra Civil Espanhola
por George Orwell
II
(...) "Tenho poucas provas directas de atrocidades cometidas na Guerra Civil espanhola. Sei que algumas foram da responsabilidade dos republicanos, e muitas mais (que ainda prosseguem) forma cometidas pelos fascistas. Mas o que me impressionou então, e impressiona ainda, é que se dê ou não crédito a atrocidades unicamente em função de simpatias políticas.  Toda a gente acredita nas atrocidades do bando inimigo e recusa acreditar nas atribuídas ao seu, sem se dar ao trabalho de examinar os indícios. Recentemente , uma tabela de atrocidades cometidas entre 1918 e o presente; não houve um único ano em que não se tivessem cometido atrocidades em qualquer lugar do mundo, e dificilmente se encontra um caso em que a esquerda e a direita tivessem dado  crédito simultaneamente  aos mesmos relatos.  Mais estranho  ainda é que a qualquer momento  a situação pode inverter-se  rapidamente  e a atrocidade  que ontem era dada como absolutamente  provada  pode hoje  ser tida como uma mentira ridícula, simplesmente porque  a paisagem política se alterou.
Na guerra actual , encontramo-nos  na curiosa situação de a nossa campanha de propaganda  por meio de difusão  de atrocidades ter sido largamente efectuada  antes do início da guerra e sobretudo pelos esquerdistas , que normalmente  se orgulham da sua incredulidade. Durante o mesmo período, a direita responsável pelas atrocidades de 1914-18, olhava para a Alemanha nazi e recusava-se terminantemente  a ver no país qualquer mal.  Depois, assim que rebentou a guerra, foram os pró-nazis de ontem quem começou a repetir histórias de horror, enquanto os antinazis se puseram de súbito a questionar se a Gestapo existia realmente.  Esta atitude  não se devia apenas ao Pacto Germano-Soviético. Devia-se  em parte ao facto de até 1939 os esquerdistas terem acreditado, erradamente, que a Grã- Bretanha  e a Alemanha  jamais entrariam em guerra, o que lhes permitia serem simultaneamente  antibritânicos e antigermânicos; e em parte à propaganda de guerra oficial, cuja chocante hipocrisia  e pretensão se superioridade moral tendem a levar a classe pensante a identificar-se com o inimigo.  Parte do preço que pagámos pelas sistemáticas mentiras de 1914-18 foi a exagerada reacção  germanófila que se seguiu. Entre 1918 e 1933, nos círculos de esquerda , éramos vaiados se sugeríssemos que a Alemanha tivera alguma responsabilidade pelo deflagrar da guerra.  Em todas as denúncias  do Tratado de Versalhes que ouvi durante esses anos, penso que nem por uma vez ouvi  perguntar, e muito menos discutir a questão: " O que teria acontecido se tivesse sido a Alemanha a ganhar ?"  O mesmo sucede com as atrocidades. A verdade, sente-se, torna-se mentira quando é o nosso inimigo a pronunciá-la.  Recentemente, reparei que as mesmas pessoas que engolem todo e qualquer relato de horror a respeito de japoneses em Nanquim em 1937,  recusam dar crédito a relatos similares  a respeito de Hong Kong em1942. Havia até uma certa tendência a acreditar que as atrocidades de Nanquim se haviam tornado , por assim dizer , retrospectivamente falsas pelo facto de o governo britânico ter chamado agora a tenção para elas. 
Mas infelizmente  a verdade sobre atrocidades é muito pior do que o facto de serem objecto de mentiras e transformadas em propaganda. A verdade é que elas acontecem. O facto que amiúde  se invoca como motivo de cepticismo -o de que os mesmíssimos relatos  de horror  tendem  a reaparecer  em todas as guerras - apenas torna mais provável que esses relatos sejam verdadeiros.  Claramente, trata-se  de fantasias muito comuns, e a guerra fornece o ensejo de as pôr em prática. Além disso, e apesar de já não estar na moda dizê-lo , não há grandes dúvidas  de que aquilo a que podemos chamar ,  grosso modo, os " brancos" cometem muitas e mais graves atrocidades  do que os "vermelhos".  Não existe a menor dúvida , por exemplo, a respeito do comportamento dos japoneses na China. Tal como não há a menor dúvida  a respeito da longa lista  de selvajarias fascistas cometidas na Europa  durante os últimos dez anos . O volume de testemunhos é enorme e uma respeitável proporção deles provém da imprensa e rádio alemãs.  Estas coisas aconteceram realmente e é isso que temos de ter em mente.  Aconteceram, apesar de Lord Halifax ter dito que aconteceram. As violações e morticínios nas cidades chinesas, as torturas nas caves da Gestapo, os professores idosos judeus atirados para fossas, o metralhamento de refugiados nas estradas espanholas - tudo isto aconteceu, e não é menos real pelo facto de o Daily Telegraph  o ter descoberto de repente, com cinco anos de atraso. "
George Orwell,in Ensaios Escolhidos, Relógio D' Água Editores, Abril de 2016,pp.114,115, 116

terça-feira, 23 de março de 2021

Lisboa , 1981 - a pensão residencial


Lisboa , 1981 - a pensão residencial
por Jorge Amado
"Sabendo-nos de partida para Lisboa, um amigo roga-nos um favor: buscar para ele e a esposa acomodações numa residencial , a capital portuguesa é bem servida de pensões familiares. Nosso amigo obteve uma bolsa de estudos, vai fazer pesquisas para um livro , creio ter sido Luiz Henriques mas não tenho a certeza . Quem sabe Edivaldo Boaventura.
Pelas quatro horas da tarde subíamos a Avenida da Liberdade em direcção à Praça Marquês de Pombal, passámos em frente a uma escadaria , chama-nos a atenção os corrimãos forrados de veludo vermelho, deve ser a residencial mais confortável da cidade. Decidimos entrar , cumprir o compromisso, galgámos as escadas. Somos acolhidos por uma senhora amável, de meia-idade, queremos ver os quartos, saber os preços, estamos interessados. Olhou-nos um tanto surpresa mas nos atendeu com polidez: o quarto à direita no momento estava ocupado mas abriu a porta do apartamento à esquerda, acendeu a luz, meia luz, deu para ver o luxo do leito, as cortinas de cetim, os tapetes, o banheiro ao fundo, impossível pedir melhor. Restava-nos obter as informações : o preço completo, morada e refeição.
- Incluindo a comida para o casal quanto custa por mês?
- Poe mês? - admirou-se: - Cobramos por hora mas pode ser também por uma tarde ou por uma noite. Não servimos refeições ... - sorriso cúmplice para os dois velhinhos sem-vergonhas: - Mas podemos fornecer champanhe , vinho do porto , uísque.
Entendemos, Zélia belisca-me, com que intenção? Desistimos de outras perguntas, vãs. Não fosse o Tivoli tão confortável, bem poderíamos tomar quarto por algumas horas, encomendar champanhe: tentação fugidia de quem em tempos de outrora fora frequentador. No outro lado da Avenida conseguimos reserva na Residencial Sanco para o casal bahiano - teriam sido Laurita e Luisinho? Ou Solange e Edivaldo?"
Jorge Amado, in Navegação de Cabotagem, Publicações Europa-América, 1992,  pp.356,357

domingo, 21 de março de 2021

Ao Domingo Há Música


Canção de embalar 
 
Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será p'ra ti
 
Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar

Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor
 
Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme qu'inda a noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer.
 Zeca Afonso

 A poesia marca a rubrica deste domingo. A música e a poesia entrelaçam-se, caminham de mãos dadas. Têm ambas  ritmo e harmonia. Há cantores que souberam dar voz a belos poemas de grandes poetas. Neste dia Internacional da Poesia, evocamos algumas dessas vozes. Por vezes, o cantor é também poeta. Assim é Zeca Afonso: Um grande intérprete das suas próprias composições. 
Ei-lo , em Canção de Embalar , voz ,  poema e Música de Zeca Afonso.
A magnifica voz de Amália Rodrigues, em Fado Português . O poema é de José Régio e a  música de Alain Oulman.
 "Sei de um rio", Camané canta Pedro Homem de Melo .
 
Cuca Roseta , em Com que voz, no Museu Islâmico de Tavira.  Poema de Luís Vaz de Camões e Música de Alain Oulman.
Léo Ferré , em Frères humains, l'amour n'a pas d'âge (Villon - Ferré). Registo extraído  do  DVD "Léo Ferré chante les poètes" (Théâtre libertaire de Paris, 1986) Poema  do poeta François Villon. Música de  Léo Ferré.
  
India Martínez , em Nana  del Caballo Grande ,  poema retirado da obra "Bodas de Sangre" de Frederico Garcia Lorca (1898-1936) e Música de Camarón De La Isla
A bela voz de Maria Bethania, em  Prece , poema  de  Fernando Pessoa, retirado do livro  Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, de Fernando Pessoa .Textos estabelecidos por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática. 1966. Piano e Música de Denis Bevenuto.  
 

sábado, 20 de março de 2021

Sobre a Poesia XXI


Todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas.
 Frederico Garcia Lorca, "Conversa Sobre o Teatro"

Um dos méritos da poesia, que muita gente não percebe, é que ela diz mais que a prosa e em menos palavras que a prosa.
  Voltaire , "Miscelânia de Filosofia"

"Sobre a Poesia" é um espaço que se enche com as palavras dos poetas. Não tem tido uma edição regular . Se a poesia é o mistério de todas as coisas , nem sempre é explicável  uma constante presença organizada em rubrica. A Poesia faz parte intrínseca deste blog. Tem enchido páginas e rivalizado em são critério com a prosa. Há quem dê à métrica e ao ritmo a mais bela vestimenta de um poema. Um grande fabro labora em apetrechada  oficina poética.   A beleza da escrita manifesta-se em várias formas. Há poemas de um grande rigor poético que se erguem na perfeição dos seus alicerces e há poemas que não são mais que fascinante prosa poética que se impõem  pela nudez crua da sua forma. De todos eles nos temos banqueteado, ao longo deste tempo de existência, A poesia anda por aí. Não esmorece. Não abandona. Tem contrato firme e rubricado. Invade-nos em sobressalto ou  em requebrado  apaziguamento. Hoje , em jeito de antecipação, retomamos esta rubrica, a XXIª edição, para celebrar o Dia Internacional da Poesia que acontece amanhã, dia 21 de Março.  A voz e a palavra são dos poetas .São eles que vão  reflectir sobre a própria arte .
A poesia 
por Octavio Paz
"A poesia alimenta-nos e aniquila-nos, dá-nos a palavra e condena-nos ao silêncio. É a percepção necessariamente momentânea (não resistiríamos muito mais) do mundo sem medida que um dia abandonamos e ao qual regressamos ao morrermos. A linguagem crava as suas raízes nesse mundo mas transforma os seus sucos e reacções em signos e símbolos. A linguagem é a consequência (ou a causa) do nosso desterro do universo, significa a distância entre nós e as coisas. É também o nosso recurso contra essa distância."
Octavio Paz, in  O Macaco Gramático, Bibliotex Editora, 2004

Destino do Poeta
Palavras? Sim, De ar
e perdidas no ar.
Deixa que eu me perca entre palavras,
deixa que eu seja o ar entre esses lábios,
um sopro erramundo sem contornos,
breve aroma que no ar se desvanece.

Também a luz em si mesma se perde.
Pedra nativa
(fragmento)
Como as pedras do Princípio
Como o princípio da Pedra
Como no Princípio pedra contra pedra
Os fastos da noite:
O poema ainda sem rosto
O bosque ainda sem árvores
Os cantos ainda sem nome

Mas a luz irrompe com passos de leopardo
E a palavra se levanta ondula cai
E é uma extensa ferida e puro silêncio sem mácula
Octavio Paz, em Transblancoem Torno a Blanco, [tradução Haroldo de Campos]. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
Arte Poética
por Sophia de Mello Breyner Andresen,
"A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. 
Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.
Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema fala não de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulos da janela, ressonâncias das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.
É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. […]
Se um poeta diz “obscuro”, “amplo”, “barco”, “pedra” é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o “obstinado rigor” do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.
E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida."
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Geografia, Edição Assírio & Alvim, Setembro  de 2014  
As Fontes
Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal, 
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora
A plenitude , o límpido esplendor 
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Poesia, Editorial Caminho, p. 54
Apesar  das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão, 
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Poesia, Editorial Caminho,p.9

POESIA E ORALIDADE
por Manoel de Andrade
"A Poesia, ao longo do tempo, foi perdendo a nítida feição com que nasceu: a oralidade. Conta-se que há 2.500 anos, o poeta grego Simónides de Ceos — célebre pelo hino que compôs aos heróis das Termópilas e que treinou sua memória para correr a Grécia declamando os poemas de Homero, de Safo e de poetas que o antecederam — encontrou um dia seu discípulo e conterrâneo Baquílides, escrevendo suas odes sobre uma placa de cera e o acusou de trair a poesia cuja magia e encanto, dizia, estava em sua expressão declamatória e não na palavra escrita. “A Poesia, afirmava ele, é uma pintura que fala”. A poesia oral consta dos mais antigos registros literários da Grécia micênica e embora, no terceiro mundo, ainda se encontrem hoje culturas ágrafas, cuja expressão poética se manifesta apenas pela oralidade, é necessário lembrar que a literatura nasce da littera(letra), como pressuposto da escrita e da leitura. Assim, um fenômeno não pode excluir o outro e é tão importante valorizar a tradição oral da poesia, quanto reconhecer que sem a escrita, parte de todo o seu acervo histórico se perderia com o tempo. Nesse sentido tanto a poesia escrita, como a vocalizada ou dramatizada são expressões por onde permeia a mágica dimensão poética. Nas antigas culturas de tradição oral os poetas eram tidos como os receptores e transmissores do Conhecimento e reverenciados como os guardiões da Sabedoria e por isso considerados tão importantes como os reis, sendo que os reis podiam ser mortos, mas matar um poeta era considerado um sacrilégio. O premiado poeta nicaraguense Ernesto Cardenal, em seu notável Prólogo a la antología de la poesía primitiva, afirma que “ el verso es el primer linguaje de la humanidade. Siempre ha aparecido primero el verso, y después la prosa; y ésta es una espécie de currupción del verso. En la antigua Grécia todo estaba escrito en verso, aun las leyes: y en muchos pueblos primitivos no existe más que el verso. El verso parece que es la forma más natural del lenguaje”.
(…)
Nós, os poetas, temos plena consciência de que não podemos mudar o mundo, embora nosso DNA seja feito de sonhos. Por isso somos tão poucos e estamos cada vez mais sozinhos. Quem sabe por sermos os herdeiros solitários de tantas utopias!? A pós-modernidade aniquilou o homem. Tentou matar Deus, tentou matar a Verdade, está tentando matar a Arte e a Poesia. Na década de 70 perguntaram a Pablo Neruda o que aconteceria com a poesia no ano 2000. Ele respondeu que, com certeza, não se celebraria a morte da poesia. Que em todas as épocas deram por morta a poesia, mas que ela está sempre ressuscitada e que parece ser eterna. O grande poeta e revolucionário argentino Juan Gelman, prémio Cervantes de 2007, afirma que “Lo extraordinário es como la poesía, pese a todo, a las catástrofes de todo tipo, humanas, naturales, viene del fondo de los siglos y sigue existiendo. Ese es el gran consuelo para mí. Va a seguir existiendo hasta que el mundo se acabe si es que se acaba alguna vez”.
(…)
A poesia está inscrita no âmago da alma humana e ela é de todos os tempos. Desde Homero, há 3.000 anos, cantando as peripécias de Ulisses e os combates de Aquiles; desde Camões cantando a saga dos grandes descobrimentos, até Castro Alves cantando a liberdade para os escravos e Drummond de Andrade, dizendo-nos, poeticamente, que há sempre “uma pedra no caminho” de nossas vidas. A palavra, na poesia, foi e será sempre a mais bela forma de resistência contra um mundo desumano, e um profético aceno para um tempo melhor.
(…)
Eis porque nós, os poetas, sentimos que só resta a nossa própria plenitude, esse misterioso monólogo com a história e o incognoscível, porque habitamos o território do encanto e do amanhecer. Cantamos porque vivemos dessa partícula de sonho que nos sobrepõe ao real, como disse Ingenieros. Cantamos porque acreditamos na missão imperecível da beleza, apesar de todo esse desamparo e essa perplexidade ante um mundo cada vez mais violento e cruel. Cantamos “porque a canção existe” e essa é a nossa fortuna. Cantamos para dizer nossas verdades e repartirmo-nos em cada verso. Cantamos porque cada palavra, cada poema nosso é uma esperança de busca e de encontro, um mágico roteiro para a liberdade, uma proposta de diálogo com o mundo, um gesto de amor para legitimar a condição humana e também nossa gota de lirismo para salvar a poesia de sua angustiante agonia. (...)”
Manoel de Andrade, poeta brasileiro, em ensaio publicado no Blog Palavras todas as palavras, Novembro 4, 2008
Travessia

A praia quase deserta
a manhã despertando na luz dos elementos
o céu e o mar buscando os seus azuis
as águas que se iluminam lentamente
o vôo preguiçoso das gaivotas

a serenidade de uma vela na distância
as ondas que se quebram mansamente
o enigma dessa paz que só o mar nos concede.

Meus olhos perscrutam o impossível
na invisível beleza marítima da vida.
Minha alma penetra no âmago majestoso da paisagem
e viaja longamente pelo instante mágico do tempo.

Mar, imenso mar
meu olhar flutua na imobilidade do teu corpo iluminado
nestas canoas batidas pela luz ao largo da baía
nestes pescadores curtidos pelo sol e pelo azul
a recolher, de longe em longe, seus frutos de escamas coloridas.
Beijo-te na salgada madeira destes barcos recolhidos,
te abraço no velho homem remendando sua rede.

Caminho neste estuante cenário de água e areia
recordo-me menino neste banquete de espumas flutuantes
na frescura das ondas que morrem aos meus pés
mergulho no teu ritmo
e danço contigo no encanto desta valsa milenar.

Atlântico, meu Atlântico
águas que não conheço nas distâncias do horizonte
esse mar visto apenas das areias
da foz exuberante das correntes
da barra destes rios que tu acolhes
águas fundas, águas rasas
águas doces que cruzei.

Recortados litorais do sul
meu norte
minha praia
meu idioma açoriano
meu salgado fruto
minha fritura, meu peixe, meu pirão
roteiro prematuro dos meus passos
itinerário incansável em meus pés descalços
íntimos recantos de baías e enseadas
antigo esconderijo dos corsários
história nas estórias de velhos habitantes.
Mar, imenso mar
planície total e palpitante
miragem e sedução
misteriosa superfície nos caminhos do destino
o mar de todas as proas
esse território dos meus sonhos.

Navegar, não naveguei...
as águas do Titicaca foram minha gota de oceano no alto da Cordilheira
navegar como quisera navegar, nunca naveguei...
rota costeira de Quayaquil à Callao,
minha única travessia
meu mar sem horizontes
minha comovida migalha de aventura
.
Curitiba, Março de 2004
Manoel de Andrade , in Cantares - Poemas, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil ,2007, pp. 33,34, 35
Breve programa para uma iniciação ao canto
por Ruy Belo
(...)Escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida , agredir. Alguém se encarregará de institucionalizar o escritor, desde os amigos, os conterrâneos, os companheiros de luta, até todas aquelas pessoas ou coisas que abominou e combateu. Acabarão por lhe encontrar coerência, evolução harmoniosa, enquadramento numa tradição.  Servir-se-ão dele, utilizá-lo-ão, homenageá-lo-ão. Sabem que assim o conseguirão calar, amordaçar, reduzir.
É claro que falo do poeta e não do poetastro , do industrial e comerciante de poemas, do promotor  da venda das palavras que proferiu. Falo do homem que nunca repousou sobre o que escreveu, que se recusou a servir-se a si e a servir, que constantemente se sublevou. 
Falo do homem que, ombro a ombro com os oprimidos , empunhando a palavra como uma enxada ou uma arma encontrou  ou pelo menos procurou na linguagem um contorno para o silêncio que há no vento , no mar , nos campos.
O poeta sensível e até mais sensível porventura  que os outros homens, imolou o coração à palavra, fugiu da autobiografia, tentou evitar a todo o custo  a vida privada. Ai dele  se não desceu à rua, se não sujou  as mãos nos problemas do seu tempo, mas ai dele também se,  sem esperar por uma imortalidade rotundamente incompatível com a sua condição mortal, não teve sempre os olhos postos no futuro, no dia de amanhã , quando houver mais justiça, mais beleza sobre esta terra sob a qual jazerá, finalmente tranquilo, finalmente pacífico, finalmente adormecido, finalmente senhor e súbdito do silêncio que em vão tentou apreender com palavras, finalmente disponível não já tanto para o som dos sinos como para o som dos guizos e chocalhos dos animais que comem a erva que afinal pode crescer no solo que ele , apodrecendo, adubou com o seu corpo merecidamente morto e sepultado,"
Ruy Belo, in Todos os Poemas II,  Assírio & Alvim, p. 10.
Um Dia Não Muito Perto Não Muito Longe
Às vezes sabes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim
Um dia não muito longe não muito perto
um dia muito normal um dia quotidiano
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada pra te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto?
Ruy Belo, in Homem de Palavra[s], 5.ª edição, introdução de Margarida Braga Neves, Junho de 1997, Editorial Presença, p. 83.

Povoamento

No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera.
Ruy Belo, in Aquele Grande Rio Eufrates, Assírio & Alvim. 

O poema
 por José Tolentino Mendonça
"O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há verdadeiro poema que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para além daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia."
José Tolentino Mendonça, in A noite abre meus olhos, Edição Assírio & Alvim, Dezembro de 2014  

Machico, Madeira

Caminho do Forte, Machico

No caminho onde aprendi o outono
sob o azul magoado
os pescadores cruzavam ainda linhas
províncias clareiras
e esse gesto masculino de apagar a dor

chegava pelos percalços da terra
o carro do gelo
e os miúdos tiravam bocados para comer às dentadas
em retrato selvagem mas, juro-vos, havia encanto
havia qualquer coisa, outra coisa
nesse instante em perda

as mulheres sentavam-se à porta com os bordados
quando passavam estrangeiros

ficavam sempre a sorrir nas suas fotografias
José Tolentino de Mendonça, in  Longe não sabia,  Editora Presença

A casa onde às vezes regresso

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes,estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

José Tolentino de Mendonçain A noite abre meus olhos,  Assírio & Alvim Editores

A voz de Natália Correia em Defesa do Poeta, um poema da sua autoria , que faz parte do CD Amália/Vinicius. Gravado num serão de 1968, em casa de Amália Rodrigues com os poetas Vinicius de Moraes, David Mourão-Ferreira, José Carlos Ary dos Santos e Natália Correia. Este  disco foi proibido pela Direcção dos Serviços de Censura da Emissora Nacional, em 1970. O poema está publicado no livro,  de Natália Correia ,Poesia Completa Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000. Vem acompanhado  com a seguinte nota em rodapé: "Compus este poema para me defender no Tribunal Plenário de tenebrosa memória. O que não fiz a pedido do meu advogado que sensatamente me advertiu de que essa insólita leitura no decorrer do julgamento comprometeria a defesa, agravando a sentença." Em 1966, Natália Correia  foi condenada a três anos de cadeia – com pena suspensa – pela publicação da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica.