Escutar os sons do mundo
por Rubem Alves
"Lembro-me do livro de contabilidade do meu pai. Ao lado esquerdo ficava a página do “Deve”, onde ele anotava os pagamentos feitos, dinheiro que não era mais seu. Ao lado direito estava a página do “Haver”, onde se registravam as entradas, sua pequena riqueza.
Na alma também se encontra um livro de contabilidade. Tanto assim que o Vinicius escreveu um poema com o título “O haver”. Ele já estava velho e fazia um balanço final do que restara. “Resta”: é assim que cada verso se inicia.
.
Resta […]
Essa intimidade perfeita com o silêncio […]
Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado […]
Resta essa vontade de chorar diante da beleza […]
Resta essa comunhão com os sons […]
Resta […]
essa súbita alegria
"Lembro-me do livro de contabilidade do meu pai. Ao lado esquerdo ficava a página do “Deve”, onde ele anotava os pagamentos feitos, dinheiro que não era mais seu. Ao lado direito estava a página do “Haver”, onde se registravam as entradas, sua pequena riqueza.
Na alma também se encontra um livro de contabilidade. Tanto assim que o Vinicius escreveu um poema com o título “O haver”. Ele já estava velho e fazia um balanço final do que restara. “Resta”: é assim que cada verso se inicia.
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Resta […]
Essa intimidade perfeita com o silêncio […]
Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado […]
Resta essa vontade de chorar diante da beleza […]
Resta essa comunhão com os sons […]
Resta […]
essa súbita alegria
Ao ouvir na madrugada passos
que se perdem sem memória…
Quem diria que o som de passos
na madrugada poderia ser parte da herança de felicidade de um poeta! Os poetas
são seres muito estranhos. Ficam felizes com nada. A poesia se faz com nadas…
Bem disse o Manoel de Barros:
Todas as coisas cujos valores
podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia. […]
As coisas que não servem para
nada têm grande importância…
Fernando Pessoa sofria da
mesma peculiaridade auditiva do Vinicius. Lembro-me de um verso seu que não
consegui encontrar, que é mais ou menos assim: “Por esse barulho do vento nos
meus ouvidos valeu a pena eu ter nascido”. Se o verso não foi dele, fica sendo
meu, porque eu já tive a mesma experiência várias vezes. Caminhando sozinho no
silêncio das árvores, o vento me sussurra segredos de felicidades, como revela
Fernando Pessoa:
Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.
Ouvir os sons do mundo é
uma felicidade que somente os artistas recebem por nascimento. Os outros têm de
aprender. Para isso há de haver os mestres da escuta. Como John Cage que compôs
uma curiosa peça para piano. É assim: o pianista faz precisamente o que fazem
todos os pianistas. Entra no palco, encaminha-se para o piano, assenta-se,
regula a distância do banco, concentra-se – e não faz o que todo pianista faz.
Ele não toca! Não, não! Não está certo! Eu errei! O pianista toca, sim. Ao
piano ele executa o silêncio. O piano toca uma grande pausa! Cage faz o piano
tocar silêncio para que se ouçam os delicados sons do mundo que não seriam
ouvidos se o piano tocasse: as batidas do coração, a respiração, o ranger de
uma cadeira, uma tosse, um sussurro… “Há quem não ouça até que lhe cortem as
orelhas”, disse Lichtenberg. O não fazer é a forma suprema de fazer, afirma a
filosofia tao. Fazer nada é estar à espera. Por isso se aconselha meditação,
que nada tem a ver com a meditação ocidental. A meditação ocidental é falar
baixo os próprios pensamentos de uma forma metódica. O piano toca. Mas a
meditação oriental é silenciar os próprios pensamentos para que os sons do
mundo possam ser ouvidos. O piano não toca. Pra que serve isso? Pra nada. Não é
ferramenta. Não tem utilidade. É coisa da caixa de brinquedos. Só dá felicidade.
O mundo está cheio de música. Há os sons que não existem mais, que estão perdidos na memória. Meu amigo Severino Antônio, poeta de voz mansa, sugeriu aos seus alunos que um passo primeiro para a poesia seria chamar do esquecimento os sons que um dia ouviram e que não se ouvem mais. A música do realejo, o canto do carro de bois, o apito das fábricas, das locomotivas, o “din-din” dos bondes, o canto dos galos, o repicar fúnebre dos sinos, o crepitar do fogo nos fogões de lenha, a gaita do sorveteiro, a buzina das charretes… Parece que a poesia fica guardada nos sons que não mais se ouvem. Há também os sons da cidade, os gritos dos vendedores, o vozerio nas feiras, a algazarra das crianças ao sair das escolas, os bate-estacas das construtoras, o canto dos pardais, os rádios ligados dos trabalhadores, o latido ardido dos poodles… E há os sons da natureza: o assobio do vento, o barulho da chuva, os mantras das cachoeiras, o canto dos pássaros, dos sapos, dos grilos (tantos haicais sobre os grilos…), dos galos, o barulho das ondas…
Todo homem – até mesmo o rico – é poeta entre os quinze e os vinte anos. A nova educação deverá fazer do homem um poeta em todas as idades, sem que lhe seja necessário escrever versos. Viver a poesia é muito mais necessário e importante do que escrevê-la, assim disse Murilo Mendes. Poesia é música. A primeira poesia que se ouve é uma canção de ninar. Depois, é a música do mundo…
“Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram”, escreveu Cummings. Acordar os ouvidos! Não me consta que essa tarefa tenha sido jamais mencionada em tratados sobre a educação. É compreensível. Para isso os professores teriam que ser artistas, pianos que não tocam nada e que só fazem ouvir. Quando isso acontecer, quem sabe, os nossos jovens aprenderão a identificar o canto dos pássaros e ficarão subitamente alegres “ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória…”
Rubem Alves,in A educação dos sentidos, Paidos.
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