Vamos Ler
por Eugénio Lisboa
"Para ler, qualquer sítio serve. Uma cadeira, um sofá, um degrau de escada, a areia de uma praia, o banco de um comboio ou o assento de um avião, até numa fila de espera de um museu, com a neve a cair-nos em cima, como vi, em Moscovo, quando lá fui num inverno. Os grandes leitores conseguem ler em qualquer lado. André Gide, talvez por masoquismo de protestante, escolhia, para ler e até para escrever, os nichos mais desconfortáveis da sua casa, na Rue Vaneau, em Paris. Mas, tudo visto, o que sobretudo me seduziu, como lugar de leitura, ao longo da vida, foi uma cama. Durante toda a minha infância, juventude e alguma maturidade, li na cama, mais do que em qualquer outro sítio. Logan Pearsall Smith, ensaísta inglês, de origem americana, conhecido pelos seus acutilantes aforismos e epigramas, gostava de dizer: “Dêem-me um livro e uma cama e estou perfeitamente feliz.” E o mesmo Logan Pearsall Smith ia até mais longe, quando não hesitava em afirmar: “As pessoas dizem que o que vale a pena é viver, mas eu prefiro ler.” Na cama, claro. Receio, porém, não ter esgotado a variedade de sítios onde se pode ler. Henry Miller, desbocado como era seu costume, informava: “Todas as boas leituras que fiz, pode dizer-se, foram feitas na retrete.” Que é, de facto, um dos mais assíduos locais de aquisição de cultura. Negue-o quem puder. De resto, esta afinidade entre cultura (aquisição da) e sanita foi sumptuosamente afirmada por um nosso ministro da cultura, por acaso o melhor de todos eles, ao mandar aprimorar, no ministério da dita, uma sanita de luxo, com requintes de palácio de sheik milionário. Críticos ignaros, pouco lidos em clássicos como o autor de Trópico de Câncer, difamaram o investimento gigante na sanita, mal suspeitando que é em tais loci que a cultura prospera! De qualquer modo, o grande leitor, o que se deixa absorver por um bom romance, uma peça de teatro, um belo poema, um bom e apaixonante ensaio, lê em qualquer sítio: num comboio, num automóvel, num buraco de obus, em pleno bombardeamento… Não estou a exagerar. O escritor francês, André Gide era não só um grande escritor, mas era também um grande e insaciável leitor. A leitura absorvia-o de tal maneira, que se alheava de tudo o resto, enquanto lia Tolstoi ou Ovídio. Um dia, foi fazer, com amigos, uma viagem de automóvel por vários países europeus. Levava consigo o romance Guerra e Paz, de Tolstoi. Ia tão absorvido na leitura, que, de uma vez, tendo eles chegado a um museu importante, que tencionavam visitar, os amigos saíram do carro, estacionado próximo do referido museu. Gide, embora tivesse manifestado muito interesse em o visitar, encontrava-se tão “apanhado” pela grande narrativa do escritor russo, que pediu aos amigos que fossem e o deixassem no carro, imerso na leitura, que não conseguia interromper. São estes os grandes leitores, que têm, na leitura, um prazer intenso e nunca desfrutado pelos indivíduos que raramente abrem um livro.
O escritor francês, Claude Roy, notável romancista, ensaísta e diarista, era também um formidável e arguto leitor. Num dos seus livros conta uma pequena história de guerra, durante o conflito que devastou a Europa, de 1940 a 1945. Num momento em que uma unidade aliada se encontrava debaixo de fogo intenso da artilharia alemã, Claude Roy saltou para um buraco de obus, no qual se encontrava já outro soldado. Para seu grande espanto, verificou que o companheiro de abrigo parecia completamente alheio ao inferno de ferro e fogo que os cercava e passava por cima das suas cabeças. Intrigado, tentou perceber o que se passava e acabou por ver que o seu parceiro se encontrava completamente absorvido na leitura dum romance de Richard Hughes, que relatava uma tempestade a bordo de um navio, no mar alto. Tão embrenhado estava naquela tempestade fictícia, que nem dava pelo inferno real que o ameaçava. É isto que a grande ficção faz aos grandes leitores: envolve-os por completo, obturando qualquer contacto com o mundo real."
Eugénio Lisboa, in Vamos Ler, um cânone para o leitor relutante, Editora Guerra & Paz, Março de 2021, pp.39-42
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